28/03/2024

Sociabilidade burguesa, consciência de classe e luta de classes: desafios do cenário contemporâneo

Por

 

Lívia Neves Ávila (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

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Resumo:
Este estudo propõe uma reflexão voltada para a dinâmica da sociedade capitalista contemporânea e da condição da luta de classes frente a esse contexto, considerando a questão da consciência e da consciência de classe do ser social. Para tal, discute os fundamentos do modo de produção capitalista e seu movimento na contemporaneidade. Em seqüência é realizada uma discussão sobre o fetichismo da mercadoria, alienação e reificação como base de sustentação para o debate das condições atuais do ser social “desprovido de sua consciência”. Logo, perpassa de maneira sintética pela questão da ideologia burguesa implantada para beneficiar o sistema capitalista e sua contribuição com a superficialidade do ser social que se encontra submetido a um “modo capitalista de se comportar e de pensar”. Por fim, é elencada a discussão da reificação e sua influência negativa na consciência do ser social, considerando a consciência de classe e o desafio da luta de classes frente ao cenário contemporâneo. Ressalta-se que o tema aqui abordado é, decerto, pertinente à discussão da “violência e marxismo” tema do VII “Colóquio Internacional – Teoria Crítica e Marxismo Ocidental”, pois, o ser social encontra-se submetido à violência do sistema capitalista pensada de uma força que o domina, reprime e o submete aos seus meios de reprodução.
 
Palavras chave: Alienação; Reificação; Ser social; Consciência; Luta de classes.
Introdução
O presente artigo traz uma breve reflexão acerca do movimento do capital na sociedade do modo de produção capitalista.  Para tal, serão abordados conhecimentos elementares e centrais do movimento do capital como o trabalho, o ser social e a mercadoria como centro das relações capitalistas. Trata-se de um trabalho de desconstrução do movimento cotidiano que nos esconde traços que marcam a sociedade capitalista. Compreender os principais mecanismos que estão atrelados e movimentam a sociedade capitalista é uma imposição para se conseguir um avanço à essência dos fenômenos da sociedade capitalista contemporânea.
Na seqüência será abordada a questão do fetichismo e da alienação na sociedade capitalista contemporânea. Esses fenômenos causam a reificação da sociedade em geral, bem como da consciência do ser social, conjuntura tal que proporciona a negação da consciência de classe do ser social e coloca a luta de classes em uma condição submissa ao domínio capitalista.
Sociedade capitalista: características elementares
O modo de produção capitalista[i], característica evidente na sociedade contemporânea, representa um extraordinário e absoluto desenvolvimento das forças produtivas, remetendo-se ao trabalho, e presumi o domínio humano sob a natureza, o que possibilita o ser social adquirir consciência de si mesmo como sujeito histórico:
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, como sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil a vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. (Marx, 2012: 211)
Do mesmo modo que foi possibilitado o surgimento do ser social e relações engrandecedoras das capacidades humanas, o mesmo movimento viabilizou também artifícios para a negação das mesmas capacidades. Trata-se da contradição que expressa o mais significante grau de desenvolvimento do ser social e seu maior grau de alienação. Segundo Netto (1981), o paradoxo coloca a contradição: como pode a atividade prática – o trabalho – do ser genérico consciente que é o homem conduzir não ao seu florescimento pessoal, ao despertar das duas potencialidades, mas, ao contrário, à sua degradação? É a resposta para essa pergunta que será trazida por Marx, em uma análise do fenômeno geral da alienação[ii], onde o autor parte de uma constatação concreta que exprime o fato de que no capitalismo o trabalhador fica mais pobre em função da riqueza que produz, cria mercadorias e se torna também uma mercadoria como outra qualquer.
Para Marx (2012: 57) “a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em “imensa acumulação de mercadorias” e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza”. A mercadoria em sua forma misteriosa, remetendo ao fetichismo, designa e sustenta uma forma particular de alienação da sociedade capitalista e potencializa a reificação das relações sociais.
O mistério e a complexidade da forma mercadoria podem ser explicados diante das proposições do movimento do trabalho e do movimento do valor, ou seja, duas categorias atreladas com fidelidade às formas burguesas. Dessa forma, refletir sobre a mercadoria subjaz refletir sobre os segredos dos artifícios do capital.
Como sugere o termo, “a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Mas essa utilidade não é algo aéreo, determinada pelas propriedades materialmente inerentes à mercadoria, só existe através dela” (Marx, 2012: 58). Desse modo, o caráter misterioso não está no valor de uso da mercadoria. Nem observada como um objeto que satisfaz necessidades humanas, nem como produto do trabalho humano. Aqui a mercadoria é uma coisa física e não mais que isso.
Ora, mas se o valor de uso não tem nada a se aproximar com o caráter misterioso da mercadoria, a questão que devemos nos deter se segue adiante: De onde procede o caráter misterioso do produto do trabalho na forma mercadoria?
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivadas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalhado total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas [...] produtos da mão humana parecem dotados de vida própria, que mantém relações entre si e com os homens. (Marx, 2012: 711)
Dessa forma, norteia-se que o caráter fetichista da mercadoria está ligado ao caráter social do trabalho, ou ao montante dos trabalhos privados que produz mercadorias. Isso se da porque os produtores só entram em contato social, ou seja, ficam diante das relações sociais, na troca de seus produtos do trabalho. É nessa situação que a característica social terá exaustão, pois é o único momento em que as características sociais de seus trabalhos aparecem, ou seja, na troca.
Com esse limite imposto, as relações sociais aparecem aos produtores “como relação entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre coisas” (Marx, 2012: 71).
Percebe-se que o produto do trabalho adquire forma de mercadoria, esta com aparência misteriosa, pois o modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que releva o caráter social do trabalho exclui “fantasmagoricamente” qualquer participação social do seu produto. Essa é a questão do fetichismo da mercadoria que engendra a questão da alienação e reificação das relações sociais[iii].
Torna-se então claro o problema do fetichismo, que se traduz em relações sociais entre homens que assumem a forma de relações entre coisas, ou seja, a coisificação das relações sociais. É um mecanismo próprio do modo de produção capitalista, logo, universal e que está colado aos produtos do trabalho como uma fita adesiva invisível e permanente.
O ser social, que vive na aparência das relações sociais, tem dificuldades imensas de alcançar a essência desse processo e devido a isso, não percebe o fetichismo da mercadoria, ou seja, encara a mercadoria como se ela tivesse “vida própria”, naturalizando as relações sociais mediadas pela “coisa”. As relações sociais aparecem como relações entre objetos ou coisas.
É importante entender que as coisas se tornam mercadorias porque são produtos dos trabalhos privados. O conjunto desses trabalhos resulta na totalidade do trabalho social. “Para os produtores, as relações sociais entre seus trabalhos aparecem, como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas e não como relações sociais diretas entre indivíduos em seus trabalhos” (Marx, 2012:75).
A questão da troca das mercadorias é também determinante no entendimento do problema do fetichismo, uma vez que a proporção em que os produtos são permutados interfere. O valor fixado aos produtos pela repetição se torna um feito e os produtores realizam essa tarefa sem consciência. Esse momento da princípio a uniformização do trabalho, onde os produtos são materializados sem a consideração do seu valor social. Para Marx (2012: 95):
Só com a troca, adquirem os produtos do trabalho, como valores, uma realidade socialmente homogênea, distinta da sua heterogeneidade de objetos úteis, perceptível aos sentidos. Esta cisão do produto do trabalho em coisa útil e em valor só atua, na prática, depois de ter a troca atingindo tal expansão e importância que se produzam as coisas úteis para serem permutadas, considerando-se o valor das coisas já por ocasião de serem produzidas. Desde esse momento, manifestam, efetivamente, os trabalhos dos produtores duplo caráter social. De um lado, definidos de acordo com sua utilidade, tem de satisfazer determinadas necessidades sociais e de firmar-se, assim, como parte componente do trabalho total, do sistema da divisão social do trabalho que espontaneamente se desenvolve. Por outro lado, só satisfazem as múltiplas necessidades de seus próprios produtores na medida em cada espécie particular de trabalho privado útil pode ser trocada por qualquer outra espécie de trabalho privado com que se equipara. A igualdade completa de diferentes trabalhos só pode assentar numa abstração que põe de lado a desigualdade existente entre eles e os reduza ao seu caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho, de trabalho humano abstrato. [...] Assim, percebe o caráter socialmente útil de seus trabalhos particulares sob o aspecto de o produto do trabalho ter de ser útil, aos outros, e o caráter social da igualdade de valor que se estabelece entre essas coisas materialmente diversas, os produtos do trabalho.
Essa aparência misteriosa, em que o próprio trabalhador não consegue reconhecer seu trabalho na mercadoria, cria a ilusão de que as mercadorias tenham nascido por si só. Essa é uma pendência histórico-social alicerçada pela universalização da produção mercantil.
Ao se dizer que o trabalhador não se reconhece na mercadoria que foi criada em suas mãos, importa remeter esse fato à alienação. O ser social se conserva por manter sua práxis, ou seja, por manter suas objetivações. A alienação é um modelo exclusivo de objetivação humana e o trabalho como uma das objetivações humanas também se torna alienado:
[...] a alienação é uma forma específica e condicionada de objetivação. O trabalho que constitui aquela atividade prática negativa é um trabalho unidimensional: reduz-se a dimensão da lucratividade, produção de valores de troca, mercadorias. E não só produz mercadorias em geral: produzindo-as, produz-se a si mesmo e ao produtor como mercadorias. Trata-se de uma forma histórica do trabalho – o trabalho alienado. (Netto, 1981: 57)
No trabalho alienado, o trabalhador não se reconhece no seu próprio produto. É como se o produto fosse algo autônomo. A alienação penetra na esfera da produção tanto pelo produto do trabalhador, a mercadoria, quanto pela própria atividade laboral do trabalho, que cria uma alienação de si próprio, ou seja, do próprio trabalhador. É uma forma dupla de alienação no trabalho.
A alienação do trabalho é imputada à propriedade privada dos meios de produção que por sua vez sustenta o modo de produção capitalista. Diante disso, Marx afirma que é sustentável fazer ligação de todas as categorias da economia política à alienação, mas nos seus Manuscritos de 1844, ele favorece três delas: a divisão social do trabalho (expressão político-econômica do caráter social do trabalho alienado), a troca e o dinheiro como força alienada da própria sociedade. Como relata Mészáros (2006: 93):
Como Lênin percebeu brilhantemente, a ideia central do sistema de Marx é sua crítica da reificação capitalista das relações sociais de produção, da alienação do trabalho por meio das mediações reificadas do trabalho assalariado, da propriedade privada e do intercâmbio.
Dessa forma, a sociedade alienada se configura como um oposto por inteiro. As relações sociais são mudadas de ordem para seu sentido contrário, o ser social não se realiza como ser social em sua essência além de ser dominado pelo objeto de seu trabalho, ou seja, a mercadoria domina os indivíduos.
Quando tratamos acima a respeito da natureza do problema do fetichismo, percebe-se que as determinações histórico-econômicas que o permeiam se encontram na problemática da alienação, pois para Marx, fetichismo é uma modalidade de alienação e essa alienação aderida ao fetichismo e arquitetada na sociedade capitalista é a reificação. Explica com clareza Netto (1981: 71):
O fetichismo põe, necessariamente, a alienação – mas fetichismo e alienação não são idênticos. A alienação, complexo simultaneamente de causalidades e resultantes histórico-sociais, desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção; assim, aquelas formas e, no limite, a sua própria motivação à ação aparecem-lhe como alheias e estranhas. É possível afirmar (estendendo a investigação para além das sugestões marxianas de 1844) que em toda sociedade, independentemente da existência de produção mercantil, onde vige a apropriação privada do excedente econômico estão dadas as condições para a emergência da alienação.
E completa Mészáros (2006: 92):
O que é vitavelmente importante, sob esse aspecto, é o fato de que “a ideia básica de todo o sistema de Marx” – “o conceito das relações sociais de produção” – é precisamente seu conceito da alienação, isto é, a desmistificação crítica marxiana do sistema da “auto-alienação do trabalho”, da “auto-alienação humana” da “relação praticamente alienada entre o homem e sua essência objetiva” etc. [...]
Isso posto, a alienação fica qualificada como um método pelo qual os indivíduos  passam a não ser mais “proprietários de si”, como se perdessem a posse do seu próprio “eu” e de seu vigor criativo e emancipador de ser social. As mediações sociais que fazem o elo com a vida social do indivíduo ficam destorcidas e muitas vezes invisíveis aos olhos do sujeito. Diante disso, a alienação se enrijece em todas as coisas e fendas da sociedade capitalista, das relações de produção e relações sociais.
O que é vitavelmente importante, sob esse aspecto, é o fato de que “a ideia básica de todo o sistema de Marx” – “o conceito das relações sociais de produção” – é precisamente seu conceito da alienação, isto é, a desmistificação crítica marxiana do sistema da “auto-alienação do trabalho”, da “auto-alienação humana” da “relação praticamente alienada entre o homem e sua essência objetiva” etc. [...] (Mészáros, 2006: 92)
Sendo assim, o fetichismo traz consigo a alienação especial e típica do modo de produção capitalista - a reificação - adquirida na sociedade burguesa constituída, que carrega fielmente as formações econômico-sociais que refletem a sociedade capitalista consolidada. A reificação é uma feição própria de alienação na sociedade do fetichismo generalizado, pois nessa sociedade existem dinâmicas particulares aplicadas pelo fetichismo que estabeleceram formas particulares de alienação exprimidas na reificação.
Importa ressaltar que sociedades precedentes contribuíram para a formação histórica da sociedade burguesa e as formas de alienação que dessas vieram também somam e fazem parte da alienação da qual tratamos neste trabalho – a alienação própria da sociedade burguesa constituída. Por meio disso, é importante o entendimento de que tudo que é reificado é alienado e nem tudo que é alienado é reficado, tornando claro que a alienação pode ser expressa de diversas maneiras e a alienação específica da sociedade capitalista madura – a reificação – é uma delas, a que estamos considerando no presente debate. Afirma Netto (1981: 76):
Já sublinhei que Marx afronta o problema do fetichismo (e da alienação) sempre que o seu objeto de investigação se situa na moldura da economia política, teoria e prática da sociedade burguesa. Desde que ele ultrapassa a impostação filosófica (especulativa) para indagar diretamente do ser social, coloca-se-lhe a problemática do modus da aparência fenomênica (imediata) deste ser. Dada a sua preparação teórica, Marx tem sempre presente que a manifestação imediata do ser social não revela a sua estrutura e dinamismo – caso contrário, coincidindo a aparência com a essência, o conhecimento imediato identificando-se com o conhecimento teórico, pôr-se-ia a inutilidade da reflexão.
Algo claro e evidente para essa problemática é a questão do produto mercantil, que é o que carrega o mistério do objeto estranho e autônomo ao ser social. Esse traço se encontra na base da manifestação econômico-social. A mercadoria é o embrião que vai esboçar os processos alienantes na sociedade, que são de caráter social. Para Lukács, Marx expressa a reificação da seguinte maneira:
Com esse quiproquó, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos sentidos ou serem coisas sociais [...] É apenas a relação social determinada dos próprios homens que assume para eles a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (Lukács, 2012: 198-199).
Por conseguinte, os processos alienantes tem descendência clara do fetichismo, atributo da produção mercantil. A mercadoria se reproduz em todas as “gretas” da sociedade e a torna inteiramente mercantilizada. A isso se referencia a reificação, que transforma até as relações sociais em relações entre coisas e a essa forma se agrega a vida interna e externa da sociedade, como torna claro Lukács (2012: 198):
Nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento do objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo.
É a esse sentido de “submissão da consciência dos sujeitos às formas nas quais essa reificação se exprime” que Lukács se refere. E é nesse caminho que a sociedade burguesa apoiada na divisão social do trabalho vai barganhar para influenciar de maneira decisiva as formas de objetivação dos sujeitos e o processo de reificação de sua consciência para que a troca de mercadorias satisfaça qualquer necessidade de sua vida.
A “imposição” das normas burguesas
Em continuação, importa exaltar que a intenção e a tendência das sociedades são que nossas condutas, ações e comportamentos se moldem pelas condições em que vivemos nas famílias, escolas, religiões, etc., para que sejamos formados pelos costumes já naturalizados. Como consequência se tem a reprodução dos valores propostos, que parecem inquestionáveis e enrijecidos na sociedade.
Na sociedade classista em que vivemos, a classe dominante determina uma orientação moral, que advém dos interesses econômicos capitalistas e que se dissipa por toda a sociedade e todas as classes como uma orientação moral única e indubitável. Todos os indivíduos se subordinam à ela como uma exigência de integração social. Essa orientação moral, na sociedade contemporânea se manifesta em um determinado “código de ética burguesa” instaurado na sociedade capitalista. 
Diante disso, a reificação, fenômeno diretamente relacionado à alienação e ao fetiche da mercadoria, é tema essencial para o entendimento das condições atuais do ser social. Portanto, elevar-se-ia aqui ao ponto central, que traz a questão das relações sociais superficiais e coisificadas e a não percepção do indivíduo dessa condição – sugere a perdição do sujeito e a sua negação diante de suas objetividades. Explicita Mészáros (2006: 98):
Embora o sistema monetário atinja seu clímax como o modo capitalista de produção, sua natureza mais íntima não pode ser entendida num contexto histórico limitado, mas sim no quadro ontológico mais amplo do desenvolvimento do homem por intermédio do seu trabalho, isto é, do autodesenvolvimento ontológico do trabalho, pelas intermediações necessárias relacionadas com a sua necessária auto-alienação e reificação numa determinada fase (ou fases) se seu processo de auto-realização.
Para sustentar essa condição de regresso da auto-realização do ser social, não basta apenas a usurpação no mundo do trabalho e a supervalorização do produto do trabalho – a coisa – como o problema central que sabe-se ser. Como relata Lukács (2012: 193), “a mercadoria não é um problema isolado [...] mas um problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”. É necessário também outras artimanhas.
Desta forma, o mundo burguês, com sua excelência em criar artifícios astuciosos, tem seu jeito especial de determinar o comportamento do sujeito submetido à célula central das relações capitalistas – a mercadoria. E a essa forma de se comportar se agrega toda a vida exterior e interior da sociedade. Para Lukács (2012:198):
Nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento do objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para submissão de sua consciência às formas nas quais essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge desse modo.
Para que a consciência dos sujeitos se torne um reflexo da moral capitalista e seja expansível para cada greta da sociedade, a elite burguesa vai padronizar e fazer parecer natural um “modo capitalista de se comportar, ou ethos burguês” regido por “leis naturais” também chamadas de ética burguesa.
Para isso, segundo Lukács (2012: 214) “o desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura”. Diante disso, para entender-se a respeito do que se trata de fato esse modo capitalista de se comportar, importa fazer uma breve apreensão dos seres sociais, como agem, se portam e encaram as situações constantes da vida cotidiana.
Os sujeitos na sociedade capitalista são vítimas de uma sociabilidade regida pela mercadoria que produz comportamentos coisificados e dão imensa importância para a posse material, a competitividade entre indivíduos e o individualismo.
Barroco (2010) demarca o que é o modo capitalista de se comportar, as atitudes, ações, necessidades e peculiaridades dos sujeitos sociais com a consciência reificada. Esse modo exala desejo de posse e transforma as escolhas dos sujeitos, capacidades e sentimentos em desejos de adquirir algo material, pois para esses seres o dinheiro é a satisfação máxima que tudo compra.
O utilitarismo moral também é algo marcante no modo capitalista de se comportar, pois as relações entre os sujeitos são valorizadas segundo sua utilidade material – satisfação das necessidades materiais. Essa valorização está voltada para a quantificação da utilidade material e não para a qualidade das relações humanas e seus valores.
Pode-se realçar também a homogeneização das necessidades, fato que exprime a redução das necessidades ao “ter”, ao possuir algo material. Os indivíduos dominados pelo ethos burguês são individualistas e egoístas, pensam apenas na sua ascensão, no seu bem. São totalmente voltados ao “seu eu” e seguem a liberdade da ética burguesa: a liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro, ou seja, um ser social é livre sem o outro. Para o ser individualista, o outro é sinônimo de estorvamento, objeto descartável. Para esses, não existe uma ética fundada em valores comuns. Sendo assim, o individualismo reproduz a ética impessoal e permite que as relações sejam superficiais e fragmentadas.
Os valores morais fazem parte da lógica mercantil e se tornam, nesse contexto objetos de consumo, que podem ser comprados. A moral como mercadoria é reproduzida diariamente e toda a fragmentação da realidade que rodeia esses indivíduos em todas as esferas da vida cria uma sociabilidade que torna a ética uma instância abstrata.
Nesse quadro, várias dimensões da vida não são apreendidas como totalidade e o indivíduo fica alienado em partes da sua vida, valorizando-as como dimensões opostas. Para Barroco (2010: 161):
O modo de ser capitalista se reproduz e se legitima eticamente através do sistema de normas, deveres e representações pertinentes às necessidades objetivas de (re)produção da sociabilidade mercantil; nesse sentido, precisa da ideologia dominante, enquanto conjunto de ideias e valores que buscam a coesão social favorecedora da legitimação da ordem burguesa.
Ou seja, o fato de o consumo de objetos – ou o consumo de quase tudo que existe na superfície terrestre – fornecer integração social e identidade social é funcional para manter o modo de produção capitalista. Logo, na sociedade de classes a moral faz parte da ideologia que contribui para a legitimação da ordem dominante. Contribui para a disseminação, fortalecimento e reprodução de uma cultura, ou um modo de se comportar e pensar, favorável ao capitalismo.
Essas condições impostas são reproduzidas como um sistema normativo, onde é preciso que todos aceitem para legitimar o cenário e ocultar as contradições impostas. Desta forma, são valores da realidade dominante.
É nesse sentido que a ideologia dominante da sociedade de classes unifica as contradições e dissimula a realidade impedindo os indivíduos de alcançarem a essência da mesma, possibilitando a reprodução da reificação.
Lukács (2012: 210-211) releva sobre a consciência do ser social:
Embora essas formas do capital estejam objetivamente submetidas ao processo vital do próprio capital, à extração da mais-valia na própria produção, elas só podem ser compreendidas, a partir da essência do capitalismo industrial, mas aparecem na consciência do homem e da sociedade burguesa, como formas puras, verdadeiras e autênticas do capital. Para a consciência reificada, essas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, justamente porque nelas se esfumam, a ponto de se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados à satisfação real de suas necessidades. Tais relações são ocultas na relação mercantil imediata. O caráter mercantil da mercadoria, o modo quantitativo e abstrato da calculabilidade aparecem aqui sob sua forma mais pura.
Por ser um movimento essencial à reprodução do modo de produção capitalista e funcional à ordem burguesa, as maneiras de agir são, sem o menor pudor da classe dominante, impostas, e passam sempre despercebidas aos olhos do ser social que está submetido a elas. Parecem-lhe naturais e com vida própria. O sujeito social não toma conhecimento da totalidade, vive na aparência e desconhece a essência da própria realidade em que vive. Esse artifício de naturalizar esse modo de se comportar e pensar é imprescindível para manter a ordem, como relata Lukács (2012: 220): “Trata-se de uma intensificação ainda mais monstruosa da especialização unilateral na divisão do trabalho, que viola a essência humana do homem”.
Nesse sentido, não é de interesse da classe burguesa que o ser social tome conhecimento da realidade em que vive, pois seria difícil desta forma manter um controle das atitudes do mesmo. Para Lukács (2012: 226-227):
Esse sistema de leis deve não somente se impor aos indivíduos, mas ainda jamais ser inteiramente e adequado cognoscível. Pois o conhecimento completo da totalidade asseguraria ao sujeito desse conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a economia política.
Diante disso, a reificação geral penetrou nas objetivações do ser social e a deixou condenada por não ser realizada em sua essência, em sua plenitude, pois encontra-se reificado e tem suas capacidades negadas. Para Lukács (2012: 221):
A submissão necessária e total do burocrata individual a um sistema de relações entre coisas, a ideia de que são precisamente a sua “honra” e o seu “senso de responsabilidade que exigem dele semelhante submissão, tudo isso mostra que a divisão do trabalho penetrou na ética – tal como, no taylorismo, penetrou no “psíquico”.
Reificação, consciência de classe e luta de classes
Esse processo descrito acima corresponde a um momento no qual o ser social vive uma ideologia que foi desenvolvida para beneficiar a classe dominante e porta uma consciência que não corresponde com a sua própria existência de classe. Os indivíduos não se reconhecem em uma classe social e menos ainda, em uma sociedade onde existem classes sociais antagônicas e sequer reconhecem em sua história a luta de classes, como nos elucidaram sabiamente Marx e Engels (1998: 39):“A história de toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes”.
Essa negação da consciência dos seres sociais, em especial da consciência de classe, além de impactar no desenvolvimento pleno de sua práxis, reflete diretamente na luta de classes, uma vez que:
A consciência de classe é inseparável das lutas de classes. Ela é condição para uma luta revolucionária, que vá para além da mera reivindicação pontual [...] elaborando o conhecimento científico dos fundamentos da sociedade que pretende transformar (Montaño/ Duriguetto, 2010: 111).
Essa discussão diz respeito à necessidade do conhecimento do movimento do real, ou seja, o contato com a essência das relações societárias pelos seres sociais para alcançarem sua consciência de classe e constituírem-se de meios para a luta de classes.
Deste modo, elencando a polarização das duas classes fundamentais e antagônicas – trabalhadora e capitalista - o ser social é elemento crucial para se pensar a luta de classes com vistas ao processo revolucionário. O indivíduo da classe subalterna (proletariado) é o sujeito protagonista da transformação social. “O proletariado precisa combater o capital, nos seus fundamentos, pois necessita transformar as relações que o oprimem e exploram...” ( Montaño/Duriguetto, 2010: 129)
Ora, difícil pensar em tomada de consciência do ser social e efetivação da luta de classes em tempos de reificação exacerbada. O desafio é gigantesco. Em virtude disso, a importância em apontar perspectivas que exijam um esforço de decifrar o movimento societário e compreender as atuais configurações da atualidade. Essa tarefa se coloca a todo pesquisador interessado em traçar horizontes para a formulação de propostas que façam frente ao cenário atual, pois, mesmo a mercê das alternativas impostas por uma sociedade reificada, impõem-se vislumbrar possíveis formas de defrontar a situação exposta, pois, a “única luta que se perde, é a luta que se abandona” e a luta por uma sociedade para além da exploração do homem pelo homem nunca deve ser abandonada, pois, como Lessa conclui brilhantemente, “só por esta via será possível colocar em primeiro lugar o que sempre deveria ter ficado em primeiro plano: as necessidades humanas, tanto dos indivíduos como da sociedade como um todo” (Lessa, 2006: 97).
Referências Bibliográficas
Barroco, Maria Lucia S, Ética – fundamentos sócio-históricos. São Paulo: Cortez, 2010.
Lessa, Sergio, Lukács: vida e obra. 2006. Disponível em: http://www.sergiolessa.com/no_published/Lukcs_Vida_Obra000.pdf. Acessado em: 25/06/2014
Lukács, Georg, História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Traducción: Rodnei Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
Marx, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos. Traducción: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010.
- , O Capital – Crítica da Economia Política. Livro I, Volume I. Traducción: Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
- ; Engels, Friedrich, O manifesto do partido comunista. Traducción: Marcos Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópoles: Editora Vozes, 1998.
Mészáros, István, A teoria da alienação em Marx. Traducción: Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006.
Montaño, Carlos e Duriguetto, Maria Lúcia, Estado, Classe e Movimento Social. São Paulo: Cortez, 2010.
Netto, José Paulo, Capitalismo e Reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.
- ; Braz, Marcelo, Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2008.


[i] Modo de produção diz respeito às forças produtivas e às relações de produção. (Netto; Braz, 2008: 58-59)
[ii] Em 1844 Marx analisou o fenômeno geral da alienação condensando suas anotações em um conjunto de manuscritos que só foram publicados em 1932, com o título de Manuscritos econômico-filosóficos (Marx, 2010).
[iii] “De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma mercadoria? Evidentemente, dessa forma mesmo. A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispêndio de força de trabalho do homem, por meio da sua duração, assume a forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho, finalmente, as relações entre os produtores, em que aquelas características sociais de seus trabalhos são ativadas, assumem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho” (Marx, 1989: 70)

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