19/04/2024

Personalização na internet: reapropriação e resignificação dos esquemas da indústria cultural

Por

 
Renato Crioni[1]
 
Resumo
Esse estudo tem como objetivo discutir a base econômica da indústria cultural e suas repercussões subjetivas, no que concerne a alguns aspectos da internet. Mais especificamente, os processos de personalização já em franco desenvolvimento na rede mundial de computadores, e sua íntima relação com a publicidade. A publicidade, a propósito, é central nessa discussão, pois se configura como a única fonte de renda significativa de gigantes da internet como Google e Facebook. Fruto dos desenvolvimentos tecnológicos mais recentes e da dinâmica econômica da internet, a personalização é uma tendência que abre perspectivas alarmantes para os processos formativos, especialmente com a publicidade individualizada já em curso. Desse modo, constata-se um processo de reapropriação e resignificação dos esquemas de personalização, já presentes na década de 1940 na formulação do conceito de indústria cultural por Adorno e Horkheimer, o que reforça a validade atual do conceito. A análise da economia na era da internet, que se faz nesse estudo, tem como fio condutor a hipótese de que a indústria cultural expresse os limites objetivos do capitalismo. Desse modo a indústria cultural mostra-se não apenas como a dominação sans phrase, mas também como reflexo mediado dos limites do capitalismo.
 
Introdução
Atualmente, o conceito de indústria cultural parece perder sua validade, já que a homogeneização dos bens simbólicos é desmentida num processo de produção e distribuição que abarca cada vez mais a possibilidade plural de diversas fontes culturais, para um consumo crescentemente individualizado e personalizado segundo as demandas de consumidores, mais e mais exigentes. Verificam-se sucessivas revoluções tecnológicas numa frequência crescente, onde os meios de comunicação aumentam sua capacidade de transmissão de informações, tanto em volume, quanto na flexibilidade de produção e distribuição personalizada.
No que tange ao aspecto econômico, Duarte (2003: 187) conclui que os desenvolvimentos tecnológicos, coadunados com processos de concentração de capital, reforçam as “[...] tendências já presentes no modelo ‘clássico’ da indústria cultural, criticamente analisado por Adorno e Horkheimer no início dos anos 40”. Assim, Duarte traz uma contribuição importante ao destacar de que forma os capitais estão se organizando na atual indústria cultural, de modo que, no ramo de comunicação de massa, constata-se uma concentração de capitais onde “[...] pouco mais de uma dúzia de grandes corporações controlam quase toda a oferta de mercadorias culturais posta à disposição no mercado mundial” (DUARTE, 2003: 159).
Chama a atenção a recente onda de compra dos tradicionais estúdios de cinema de Hollywood por empresas de outros ramos, destacadamente as fabricantes japonesas de aparelhos eletroeletrônicos. Para ilustrar esse processo, Duarte (2003: 162) indica a compra da Columbia Pictures pela Sony, que desde 1988 já controlava a gravadora CBS, também sediada em Hollywood; e a Matsushita – concorrente da Sony e proprietária das marcas Panasonic, JVC e Technics – que adquiriu o estúdio MCA/Universal em 1990. Também, verifica-se que os veículos midiáticos passam a controlar diretamente a produção de conteúdo.
A consolidação da internet como meio de comunicação de massa é tão cheia de potencialidades, que suas previsões de realização provocam-nos vertigem – mesmo se considerarmos também as possibilidades emancipatórias. As revoluções se dão não “apenas” no campo tecnológico. Sobretudo, são transformações que alteram a forma e o conteúdo da produção cultural, as noções de público e privado, de propriedade intelectual, de formatos dos veículos de comunicação, de fruição estética e experiência, etc., num espaço de tempo muito exíguo.
Pariser (2012) alerta para uma tendência já estabelecida na internet que ameaça a maneira como vemos o mundo e nos relacionamos com ele. Graças a tecnologias da informática, nossos movimentos na rede podem ser rastreados, armazenados, classificados e processados, de modo que nos retornem como um “reflexo”, em nome de interesses que podem nos ser bastante alheios. Nesse procedimento de pseudointeração, no qual nos é prometida a realização de nossos desejos e inclinações, se oculta um desenvolvimento que, baseado em nossas ações (nosso cliques na internet), reforça nosso próprio monólogo por meio dessa filtragem. Veremos então, como a dinâmica atual da internet, moldada pelas novidades tecnológicas e pelo movimento capitalista, cada vez mais produz uma “bolha dos filtros”, nas palavras de Pariser, que sorrateiramente forja nosso comportamento, justamente ao nos deixar livres para opções que já estão determinadas por nossas escolhas anteriores.
 
 
Internet personalizada
Pariser (2012) destaca como marco desse processo a data de 4 de dezembro de 2009, quando o site de pesquisas Google passa a utilizar uma ferramenta de buscas personalizada. Desse modo, a busca que se supõe como universal pelo Google é direcionada segundo o perfil do usuário, o protocolo de acesso à internet e, principalmente, por registros de buscas anteriores. Os algoritmos do Google armazenam e processam esses dados, e nos devolvem como uma resposta personalizada, de modo que, virtualmente, podemos ser identificados em qualquer lugar, independente do computador a que estamos conectados.
Parece bastante claro que as opções apresentadas são desse modo, pautadas de acordo com uma filtragem pré-estabelecida, que reforçam nossas ações anteriores em face da relevância estatisticamente testada em frações de segundo. Mas, se o Google fala em relevância, seria apenas do ponto de vista do usuário? Não haveria nada que fosse “relevante”, do ponto de vista do Google, que ele quisesse nos apresentar?
Com o advento e popularização da internet, as empresas de informática (especialmente as do Vale do Silício) notaram a proximidade de um colapso da atenção, em vista do crescimento vertiginoso de informações que se disponibilizava para cada usuário do sistema (PARISER, 2012: 27). Desse modo, a atenção alheia mostra-se como um recurso escasso, cuja estratégia para retê-la concentra-se na capacidade de oferta de conteúdo que atenda aos desejos e interesses individuais dos usuários. A loja virtual Amazon, por exemplo, não divulga o volume de rendimentos trazido pelos sistemas de conteúdo personalizado, porém, frequentemente aponta esses mecanismos de publicidade individualizada como a principal razão para o sucesso da empresa, que começou como uma livraria virtual (PARISER, 2012: 31).
Vale ressaltar que é através de procedimentos, como classificação e síntese, que se torna viável nossa própria cognição. O que falar então, quando temos à disposição uma tecnologia que nos põe em contato com uma quantidade infindável de informações, como é o caso da internet. A crítica, portanto, não é dirigida a essa obviedade, e sim à centralidade que a “economia da atenção” (PARISER, 2012: 61) tem nas tendências que estão moldando a internet, visto a importância atual desta no processo de socialização. Assim, há que se entender a base econômica da internet; não especificamente a que está por trás da infraestrutura tecnológica da rede, mas sim os motivos de sua expansão enquanto espaço de disputa de poder, que em última instância se mede pela “audiência”[2], a capacidade de concatenar a atenção alheia.
Para muitas organizações, inclusive empresas, a internet ainda é basicamente um meio de comunicação; para outras, como o Google, o Facebook e a Amazon, a web é sua própria razão de ser. A Amazon é um ponto de venda que já nasceu no ambiente virtual, mas que “realiza” mercadorias ao fazê-las circular no processo de troca mercantil, à semelhança do comércio tradicional – a fonte de seus lucros provém de parte da mais-valia gerada na produção das mercadorias. Já o Google e o Facebook são prototípicos por serem determinados pela “economia da atenção”. Eles exploram ramos diferentes na internet. Fundamentalmente, o primeiro oferece serviços de busca na rede, enquanto que o segundo fornece serviços de relacionamento social. Mas, diferenças à parte:
 
A questão é que a base dos dois negócios é essencialmente a mesma: publicidade direcionada, altamente relevante. Os anúncios contextuais que o Google coloca ao lado dos resultados de pesquisas e em sites são sua única fonte significativa de lucro. E, embora as finanças do Facebook não sejam reveladas ao público, alguns insiders já deixaram claro que a publicidade está no âmago dos rendimentos da empresa. O Google e o Facebook tiveram pontos de partida e estratégias diferentes – um deles apoiou-se nas relações entre informações, o outro nas relações entre pessoas –, porém, em última análise, os dois competem pelos mesmos dólares advindos da publicidade. (PARISER, 2012: 41)
 
Acima foi colocada a questão de qual seria a “relevância” que o Google tem interesse em apresentar para o usuário. Vejamos qual seja: um negócio que se sustenta com os recursos de anúncios publicitários, tende a coincidir aquilo que é “altamente relevante” para os usuários do site, com os interesses comerciais daqueles que pagam as contas, os anunciantes. Em primeiro lugar os sites da internet disputam a atenção dos usuários para conquistar a maior audiência possível. Isto tem uma relação com o conteúdo que os sites oferecem. Porém, no caso dos gigantes Google e Facebook, que já possuem uma audiência consolidada, a quantidade bruta de usuários não é mais o suficiente:
 
Do ponto de vista do anunciante on-line, a questão é simples: qual empresa irá gerar o maior retorno por cada dólar investido? É aí que a relevância entra na equação. As massas de dados acumuladas pelo Facebook e pelo Google têm dois propósitos: para os usuários, os dados são a chave para a oferta de notícias e resultados pessoalmente relevantes; para os anunciantes, os dados são a chave para encontrar possíveis compradores. A empresa que tiver a maior quantidade de informações e souber usá-las melhor ganhará os dólares da publicidade. (PARISER, 2012: 41)
 
É aí que entra o papel dos filtros: aumentar a eficiência do capital despendido com publicidade, fazendo com que a propaganda dirigida a determinado usuário da internet acerte em cheio a seus desejos e anseios. Os anunciantes apenas continuam pagando o Google e o Facebook porque o investimento em publicidade obteve retorno satisfatório, ajudou a realizar mercadorias. Eles permanecerão a dispor parte da mais-valia das mercadorias (direta ou indiretamente), enquanto o processo de troca continuar se efetivando. Mas, num determinado momento, o anúncio generalizado para toda a audiência deixa de surtir efeito. Então os filtros vão refinando uma dada localidade, um determinado aspecto cultural (como a língua e os costumes de um país), etc., até o ponto em que exista um perfil específico para cada usuário (e consumidor em potencial).
Se é altamente questionável que a perfeição dessa adaptação seja endereçada aos usuários da internet, a assertiva se ajusta perfeitamente aos interesses dos anunciantes. E a verdadeira questão é que essa dinâmica tem moldado o funcionamento de toda a internet. No fundo o problema reside na base econômica da rede, que não gera recursos próprios, especialmente aqueles portais de grande fluxo (como o Google e o Facebook), que passam a ter como seu único “ativo financeiro” os dados de seus usuários – não somente aquelas informações que nos são claramente solicitadas, mas essencialmente nossos movimentos de cliques durante a navegação. “Tudo isso significa que nosso comportamento se transformou numa mercadoria, um pedaço pequenino de um mercado que serve como plataforma para a personalização de toda a internet” (PARISER, 2012: 45).
Para além do fenômeno que é mais manifesto no Google e no Facebook, verifica-se nos Estados Unidos um florescente mercado de informações, destacadamente por empresas de dados pessoais pouco conhecidas. Uma delas, a Acxiom, possuía em 2010 cerca de 1.500 informações sobre cada pessoa incluída na sua base de dados, desde classificação de crédito, compra de remédios, até se tinham animais de estimação. Esse contingente de informações referia-se a 96% da população americana, além de aproximadamente 500 milhões de pessoas ao redor do mundo (PARISER, 2012: 12: 43). Com protocolos ultravelozes, qualquer site da internet torna-se atualmente um participante em potencial desse processo: “Para os comerciantes do ‘mercado do comportamento’, cada ‘indicador de clique’ que enviamos é uma mercadoria, e cada movimento que fazemos com o mouse pode ser leiloado em microssegundos a quem fizer a melhor oferta” (PARISER, 2012: 12-13).
Vale destacar que esse tipo de empresa tem como negócio a comercialização desses dados, que pode adquirir de qualquer site da internet que esteja disposto a vendê-los, e repassá-los processados a qualquer empresa que tenha interesse. Existem também empresas especializadas no marketing eletrônico, que atuam como intermediários dessa troca mercantil, ou que preparam a publicidade (como outrora as grandes agências do ramo) com perfil individualizado.
 O exemplo da loja virtual Amazon, citado acima, serve para ilustrar que, apesar dela ter nascido na internet, ela não faz mais do que transferir para o ambiente virtual as relações comerciais que antes eram realizadas por meios tradicionais. Nada indica que o comércio na internet seja uma nova fonte de valor, com um fluxo cada vez mais ampliado de circulação de mercadorias e serviços. É por isso que Google e Facebook são emblemáticos para a compreensão da dinâmica econômica da internet, já que os serviços que eles oferecem são específicos do mundo virtual e de suas potencialidades; pagos, porém, pelo setor da circulação de mercadorias, mais especificamente o serviço de anúncios publicitários. O Facebook apresentou receita de 3,7 bilhões de dólares em 2011. Entretanto, cerca de 86% de seus proventos são oriundos da publicidade (AÇÃO, 2012).
A tendência da personalização, onde nossos cliques transformam-se em mercadorias, faz com que o conteúdo vá perdendo a relevância de outrora. “Os anunciantes já não precisavam pagar ao New York Times para ter acesso aos leitores do jornal: poderiam abordá-los onde quer que estivessem na rede (PARISER, 2012: 49)”. Assim a adaptação dos jornais ao modus operandi das empresas de dados comportamentais, passa a ser de enorme importância para sua sobrevivência. A “mão invisível” do mercado de dados age como coerção cega dessa dinâmica econômica “[...] – em outras palavras, a menos que [os jornais] conseguissem se adaptar ao mundo personalizado da bolha dos filtros –, eles iriam naufragar” (PARISER, 2012: 49).
A questão que se apresenta é até que ponto os usuários da internet estão sendo moldados por essa lógica imediatista e restritiva da classificação e da personalização. A efetividade desse processo se mede pela satisfação dos anunciantes, se estão de fato incrementando suas vendas ou, na pior das hipóteses, forçando a concorrência a entrar num novo patamar de disputa. Além do mais, as empresas de dados (como a Acxiom, citada acima) estão em franca expansão, investindo em infraestrutura, como a construção de enormes galpões e tecnologia informática para aumentar a capacidade de armazenamento e processamento. Isso por si só indica que a personalização não é mais tratada como uma virtualidade. Mas a questão da recepção dessa dinâmica pelos usuários ainda permanece aberta.
Um indício claro de que a forma de recepção e fruição parece se coadunar aos tempos da personalização e da economia da atenção, é que os feeds de notícias, como o do Facebook, tem se transformado na principal fonte de informações de muitas pessoas, a despeito do que representavam os jornais impressos e telejornais até a bem pouco tempo. Cerca de 36% dos americanos abaixo dos 30 anos de idade têm as redes sociais como principal noticiário (PARISER, 2012: 13).
O conhecimento prévio dos estímulos e informações que nos é oferecida através da personalização da internet, também propicia o poder de nos manipular de forma individualizada. Isso hoje não é apenas uma hipótese: “[...] uma empresa de dados chamada PK List Management oferece uma lista de ‘Compradores Impulsivos’; as pessoas incluídas na lista são descritas como altamente suscetíveis a ofertas apresentadas como prêmios” (PARISER, 2012: 111).
Mas, diante dessa séria ameaça, perguntamo-nos sobre as leis que protegem a privacidade dos cidadãos. Pois, ao que pese as variações e nuances dos instrumentos legais de cada país, a questão da privacidade do indivíduo é uma característica central no arcabouço jurídico do Estado moderno. Porém, diante da novidade que representa a internet na vida social, e sua dinâmica cambiante e efêmera, ainda existem muitas brechas no sistema legal que permitem sua utilização distorcida. Entre outras coisas, “[...] as empresas às quais estamos entregando esses dados [de perfil de persuasão] não têm nenhuma obrigação jurídica de guardá-los só para si” (PARISER, 2012: 111).
 
Considerações Finais
Diante dessas constatações assustadoras, surgem questionamentos de como proceder para que esse “Admirável Mundo Novo” não se efetive com todas suas consequências deletérias. Pariser argumenta que a internet não está condenada, justamente por ser um meio extremamente plástico: “Sua grande virtude, de fato, é a capacidade de mudar. Por uma combinação de ação individual, responsabilidade empresarial e regulamentação governamental, é possível modificar o seu curso” (PARISER, 2012: 194). O presente estudo partilha das iniciativas de esclarecimento, tais como essa proposta por Pariser. Entretanto, qual seria a efetividade de um projeto nesses moldes?
Assim como na sociedade muitos sistemas auto-organizados (como a internet) persegue metas segundo o critério da performance, de modo que os próprios executores agem inconscientemente segundo regras cegas, também nossa psique é profundamente determinada pelo nosso inconsciente. Não basta, portanto, trazer à tona os “mecanismos ocultos” dos sistemas sociais, mas buscar a compreensão dessa dinâmica com o funcionamento íntimo de nossa psique, e em que ponto a dominação que nos sujeita, coaduna-se com a gratificação íntima que sentimos.
Do ponto de vista do conceito de indústria cultural, constata-se sua atualidade na continuidade da colonização da produção cultural e simbólica, até os refinamentos comportamentais. Horkheimer e Adorno (1991) abordam a questão da personalização, na relação com a mercadoria cultural, na “Dialética do esclarecimento”. Mesmo a indústria cultural de seu tempo, caracterizada pela homogeneização da cultura produzida em larga escala, conseguia, através de esquemas narrativos e determinadas técnicas psicológicas, tocar o íntimo das pessoas.
O preço pela subjugação sofrida no cotidiano, confirmada na narrativa da cultura industrializada, era pago com recompensas afetivas. A publicidade de mercadorias produzidas em larga escala conseguia (à semelhança de hoje) mobilizar desejos que faziam as pessoas sentirem-se gratificadas como se fossem as únicas, como se a mensagem da propaganda as chamassem pelo nome, entendesse seus anseios e desse exatamente aquilo que as pessoas desejavam. A indústria cultural se encarregava de criar um ambiente em que o desejo das pessoas fosse paulatinamente se ajustando às gratificações que lhes seriam oferecidas – a interação com o meio social terminava por reforçar os esquemas para a perpetuação de suas estruturas.
Portanto, nota-se uma reapropriação e uma resignificação da personalização na indústria cultural com as tecnologias recentes da internet destinadas à publicidade individualizada. A personalização, no tempo de Adorno e Horkheimer, era marcada por uma produção em massa, que fosse capaz de tocar individualmente os afetos das pessoas; a personalização atual, da internet, é uma produção individualizada (realizada em massa) que busca o contato afetivo das pessoas, na qual os próprios indivíduos a moldam por meio de suas ações anteriores.
No que tange à hipótese central desse artigo, a de que a indústria cultural expressaria os limites objetivos do capitalismo, há que se fazer duas considerações importantes. Em primeiro lugar refere-se à análise de Duarte que, se por um lado, ressalta a atualidade do conceito de indústria cultural que seria confirmado especialmente nos movimentos de concentração de capital, por outro lado, ele faz ressalvas à interpretação do conceito conforme as análises dos frankfurtianos na década de 1940.
 
Do ponto de vista da própria indústria do entretenimento, ela se adensou economicamente tanto que hoje pode ser incluída entre os setores de vanguarda do capitalismo mundial, não sendo mais dependente, como afirmaram Adorno e Horkheimer, da indústria eletroeletrônica, petrolífera, siderúrgica, química, etc. (DUARTE, 2003: 177-178)
 
Essa conclusão é baseada na atual constatação da compra de empresas de software (estúdios de cinema, principalmente) por empresas de hardware (fabricantes de aparelhos eletroeletrônicos) conforme vimos anteriormente, e que parece, de acordo com Duarte, “[...] ser um indício inequívoco dessa nova situação”; de modo que, “[...] é importante reter o fato de que o âmbito das imagens há muito não está mais a reboque da produção material propriamente dita” (DUARTE, 2003: 178).
Entretanto, também podemos citar exemplos onde a produção material apropria-se da produção simbólica, justamente para se autoafirmar: “Em 2010, a Walmart e a Procter & Gamble anunciaram uma parceria para produzir [os filmes para TV] Secrets of the Montain e The Jensen Project, filmes nos quais os personagens usarão os produtos das empresas o tempo todo”. O argumento básico é que os meios de comunicação sempre foram veículos para a venda de produtos, e sendo assim, “[...] por que não eliminar o intermediário e permitir que a indústria produza ela própria o conteúdo?” (PARISER, 2012: 182).
Mas, o que se quer ilustrar aqui é o fato de uma empresa do setor produtivo, fabricante de bens de consumo não duráveis (Procter & Gamble), associada a um gigante do setor de circulação de mercadorias (Walmart), passa a produzir diretamente uma mercadoria cultural com a finalidade de realizar as mercadorias que fabrica. Aqui entra a segunda consideração, anunciada acima, com relação à hipótese central desse estudo. A validade do conceito permanece também na afirmação de Horkheimer e Adorno (1991: 115) de que os monopólios culturais, apesar de sua aparente onipotência, são fracos e dependentes em relação aos setores do aço, petróleo, eletricidade, química, etc.
Também no que tange à vanguarda do capitalismo mundial – a rede mundial de computadores –, denota-se a dependência do setor produtivo. A internet se caracteriza, em relação à base econômica, fundamentalmente pela circulação de mercadorias. Vimos que sites como Google e Facebook – pela capacidade de fluxo de informações e imensa quantidade de usuários, valor econômico de suas empresas, e por serem serviços típicos da internet, cuja existência se mistura com a própria rede – são emblemáticos para a compreensão da dinâmica expansiva da internet, e o modo como ela nos afeta tanto socialmente como individualmente. O fato de que a base dos negócios de Google e Facebook (ao que pese as diferenças nos serviços oferecidos) seja essencialmente a publicidade, e de que esse modelo de negócios não possui outra fonte de receitas significativa que não seja a dos anunciantes, os caracteriza como entes da indústria cultural e do setor de circulação, dependentes da mais-valia gerada no setor produtivo, de modo semelhante ao que ocorria na época da formulação do conceito de indústria cultural.
Assim, a tendência à personalização na internet, com infindáveis repercussões para a subjetividade e o processo formativo, é fruto da confluência entre o desenvolvimento tecnológico e a dinâmica capitalista, onde a internet passa a tratar os dados gerados por nosso movimento na rede, como ativos financeiros da “economia da atenção”, reforçando a utilização de nosso “comportamento como mercadoria” (PARISER, 2012).
Portanto, essa constatação apenas assevera a interpretação de que a indústria cultural expresse os limites objetivos do capitalismo. Num mercado já supersaturado (especialmente no caso da maior economia do planeta, os EUA), o controle sobre as informações pode ser crucial não apenas para a expansão dos negócios, mas como necessidade de sobrevivência no mercado. Mas, a publicidade personalizada que se vislumbra, e os dados expressos por nossos comportamentos transformados em mercadorias, não tem a capacidade intrínseca de produzir valor. No processo social capitalista, a “mercadoria comportamento” somente se efetiva como valor, ao auxiliar a realização da mercadoria na circulação, quando essa é vendida no mercado. Desse modo, parte da mais-valia gerada na produção é repassada à “economia da atenção”.
A liquidez ampliada de capitais, em busca de investimentos rentáveis cada vez mais escassos, tem agora como “bola da vez” essa economia da atenção na internet. Os processos especulativos somados à importância estratégica de se desenvolver uma publicidade personalizada (como tendência necessária à sobrevivência no mercado) podem estar produzindo bolhas financeiras de capital fictício, semelhante às recentes crises capitalistas, e que estiveram na base dos atritos do sistema nas últimas quatro décadas[3].
 
 
Referências bibliográficas
AÇÃO do Facebook cai 6,3%, e Zuckerberg “perde” US$ 600 milhões. G1: economia mercados, 18 ago 2012. Disponível em:
Acesso em: 21 fev. 2013.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural.  Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. (Coleção Humanitas).
HARVEY, D. Condição pós-moderna:uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 16ª ed. São Paulo: Loyola, 2007.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Tradução: Guido Antonio de Almeida. 3ª ed. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1991.
KURZ, R. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Tradução de Diego Alfaro. Rio de janeiro: Zahar, 2012.


[1] Doutorando em Educação, sob orientação do Prof. Dr. Antônio A. S. Zuin, Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, Brasil – Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP. [email protected].
 
[2] Em referência a: número de pessoas que assistem a determinado programa de rádio ou de televisão.
[3] Sinteticamente, essa é a interpretação de autores como Harvey (2007) e, especialmente, Kurz (2004).

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