23/04/2024

O olhar sobre o outro em A hora da estrela de Clarice Lispector

Por

 

Tânia Borges
 
 
O que pretendo expor aqui é uma parte da minha pesquisa de mestrado que tem como tema o estudo do romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, a partir da análise e da interpretação do lugar ambíguo do intelectual brasileiro dos anos 1970 no jogo de classes, tomando como perspectiva as relações entre a classe social à qual pertence a protagonista e a posição do narrador. Este trabalho teve início em fevereiro do ano passado e tem como previsão de conclusão dezembro de 2013. Dessa forma, antecipo que diante de seu andamento, os resultados alcançados são ainda pouco conclusivos; mas como os estudos que têm se dedicado à dimensão estética e social da obra da autora são escassos, embora Lispector já acumule uma vasta crítica, que cresce numericamente a cada década, com destaque para pesquisas biográficas, acredito poder contribuir de algum modo para as reflexões desta mesa.
 A questão social abrange toda a produção da autora, não sendo, a meu ver, uma novidade do romance em questão, como parte da crítica clariceana afirma - desconsiderando a introspecção como uma marca da vida social, como se por meio do mergulho na interioridade não fosse possível refletir os aspectos histórico-sociais do país -; no entanto, se até a publicação de 1977 a sua narrativa investia na subjetivação psíquica do foco, ou seja, na figuração do conflito interno das personagens cerceado pelos antagonismos de classe – e pelas especificidades que daí decorrem (os dilemas do casamento e da família pequeno-burguesa, por exemplo) –, em A hora da estrela a explicitação do conflito de classes sociais traz novo elemento a sua obra, que garante a objetivação da matéria histórico-social, não para abandonar a expressão da constituição da subjetividade, mas para apreendê-la por meio desse conflito, cuja base é material e histórica, além de psíquica.
A mudança do centro da forma literária pode ser acompanhada no percurso produtivo da autora; porém darei apenas um breve exemplo a título ilustrar a proposição. A partir do lançamento de Laços de família (1960), alguns conflitos psíquicos das personagens são desencadeados por meio de personagens externos, em situação social diversa do protagonista, sem que isso, porém, seja o centro do enredo. É o caso do conto “Amor”: que narra o trajeto de uma pacata dona-de-casa, chamada Ana, às compras e seu perturbador encontro no bonde com um cego mascando chicletes; ainda que a tensão seja mediada pelo cego, o confronto entre a protagonista e sua reflexão subjetiva sobre o mundo é o cerne da narrativa, e o desfecho deixa entrever que o conflito vivido pela dona-de-casa Ana se apaziguará (voltando ao estado de latência inicial), resolvendo-se em epifania sem transformação efetiva da personagem. Muito diverso é o conflito entre Rodrigo S.M e Macabéa, de A hora da estrela: a protagonista põe em xeque o estatuto de saber do narrador, o qual, diante do impasse, precisa matar sua personagem após enunciar: “Macabéa me matou”.
Em 1964, Clarice aborda pela primeira vez, e de modo significativo, o problema do conflito de classes no Brasil, através da oposição entre G.H. e a empregada, Janair, no romance A paixão segundo G.H., - embora esse conflito mais direto apenas acione o mergulho na subjetividade e nos pensamentos metafísicos da protagonista, que abrange grande parte da narrativa. No entanto, em A hora da estrela essas questões, nas palavras da crítica Vilma Arêas: “surgem agora transfiguradas, submetidas a um novo metabolismo”[1], como veremos a seguir.
 Na difícil tarefa de representar uma mulher pobre e o trajeto de sua vida e da morte, a partir de um ponto de vista de um intelectual que tem dificuldades de compreender o trajeto da protagonista, de origens alheias à sua vivência como representante das classes médias, Clarice utiliza a estratégia autoral de revelar os procedimentos literários: Macabéa, a personagem principal, é revelada como ilusão ou convenção: “O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas” (LISPECTOR, 1998:13). Se em Vidas Secas,de 1938,Graciliano Ramos retrata personagens pobres por meio do uso contundente da introspecção mesclada a omnisciência, no final da década de 1970, um retrato da pobreza aos moldes da narrativa clássica já não é mais possível, à medida que o problema da representação do outro não é mais passível de formalização, uma vez que o intelectual nos anos de 1970 já não tem mais o direito de falar em lugar do povo e em seu nome como outrora - ressalto aqui que a representação da Macabéa é antes enunciada do que propriamente formalizada. Diante da impossibilidade de narrar sem questionar a narrativa e o sentido de realidade (numa alusão a ADORNO), o romance mostra na sua própria forma as estruturas que a compõem, de modo que o narrador e a protagonista são revelados como ilusão ou convenção formal. Esse caráter de ilusão da construção literária se faz presente na Dedicatória de A hora da estrela, onde a autora escreve explicitamente: “DEDICATÓRIA DO AUTOR (Na verdade Clarice Lispector)”. Para Benedito Nunes o recurso da falsa autoria utilizado por Lispector em outras obras, como, por exemplo, nas matérias realizadas para a revista Senhor no início de 1960, tem referente em outros autores, entre eles, Machado de Assis. Esse antigo recurso formal, destinado a reforçar a verossimilhança do relato, criando no leitor um anseio de verdade, é aqui curiosamente invertido por Clarice em A hora da estrela, que, em vez de disfarçar a figura autoral, comportando-se como editora de sua personagem (tal qual Defoe realiza com Moll Flanders, ou Machado com Aires), a autora declara-se a verdadeira autora na dedicatória para só depois apresentar ao leitor o pseudo-autor Rodrigo S.M. nas primeiras páginas do romance. O artifício que preside a criação artística do romance é característico de um traço significativo das estéticas da modernidade, marcadas pela denúncia da verdade indubitável da enunciação. Segundo Rosenfeld, em uma época em que a realidade deixa de ser um “mundo explicado” e todos os valores nos quais o ser humano se apoiam são incoerentes, adaptações estéticas capazes de incorporar esta insegurança dentro da própria estrutura da obra são imprescindíveis.
Tal questão remete a um importante eixo do estudo: a constituição do ponto de vista do narrador e de sua autoimagem. Ao dar forma às inquietações de Rodrigo S.M, a escritora lida com os incômodos objetivos próprios à forma romance e também às condições sociais em que se insere o intelectual brasileiro no período. Na busca da constituição da nordestina, inserida em meio às circunstâncias objetivas da pobreza brasileira e a gritante desigualdade social, o narrador se tortura com as questões referentes ao papel do intelectual como depositário do saber, o alcance social da arte, e as relações entre arte e engajamento político: “Mas por que estou me sentindo culpado? E
procurando aliviar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça” (LISPECTOR,1998:23).
A mediação instaurada pelo narrador Rodrigo S. M. imprime um caráter de classe conflitivo, revelando o caráter de contradição de sua própria classe social, média e ilustrada, que ora se culpabiliza diante da pobreza, ora busca apartar-se completamente dela, como podemos observar em dois dos treze subtítulos que compõe o romance, “A culpa é minha” e “Ela que se arranje”. Embora Rodrigo faça parte de uma classe média letrada, que no Brasil significa privilégio de classe, ele se autodenomina sem classe social: “Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim” (LISPECTOR, 1998:19). Assim, nosso narrador-protagonista adota, em muitos momentos, um tom de discurso de esquerda para criticar a classe média - “Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia” (LISPECTOR, 1998:31). - ao mesmo tempo se defende da identificação com o desvalimento social exibindo todo seu refinamento e cultura - “para poder captar sua alma tenha que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei” (LISPECTOR,1998:22) - Todas as contradições apresentadas pelo narrador o identificam a classe média e o que é aparentemente marginal se mostram totalmente inclusivo no confronto com a realidade. Enzenberger, no texto “A irresistibilidade da pequena burguesia, um capricho sociológico”, demonstra que a classe média se define justamente pela negação: “nem domina nem possui aquilo que interessa”, os meios de produção e a mais-valia, respectivamente. Deste modo se define Rodrigo, nas palavras de Vilma Arêas: “não tem classe social definida; embora consciente não reage ao mundo reificado e administrado; e não tem ética, pois aceita ser financiado pela Coca-Cola”(ÂREAS, 2005: 77). Além de negar sua própria posição, ao afirmar: “Eu não sou intelectual, escrevo com o corpo” (LISPECTOR, 1998:16).
Mas, ao mesmo tempo em que o narrador procura marcar suas diferenças sociais, torna o outro um prolongamento da própria identidade. Ao procurar definir os traços compositivos de sua protagonista, em muitas passagens, o narrador também os justapõe aos seus próprios traços , “mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás – descubro eu agora – também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria” (LISPECTOR,1998: 22)  , evidenciando a dificuldade de se aproximar de outra classe social e como se portar diante dela. A propósito, as primeiras quinze páginas da narrativa são dedicadas à dificuldade do narrador na apreensão do seu objeto. O que o leva a protelar o romance? Talvez, o medo do confronto. Por outro lado, retratar o desvalido sem ser oportunista e, ademais, conferindo-lhe dignidade é uma dificuldade eminente - e não à toa Rodrigo S.M. dá umas escorregadas, como na cena que Macabéa vê sobre a mesa do patrão, inclinado à literatura, o título de Dostoievski, “Humilhados e Ofendidos” e fica pensativa: “Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social” (LISPECTOR, 1998:40). Ocupando o narrador-personagem grande parte do enredo, Macabéa é obrigada a entrar “pelas portas dos fundos”, quase no meio da narrativa. A construção de Macabéa é gradual e aos poucos vai ganhando contorno, nascendo de “dentro para fora”, se fazendo presente e dizendo de si: ela aparece pela primeira vez como parte da coletividade - “Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes” (LISPECTOR, 1998:11) – ganha uma vaga individualidade – “É que numa rua do Rio de Janeiro, peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de urna moça nordestina” (LISPECTOR,1998:12)  – até a revelação de seu nome, já quase na metade do livro, em uma cena de seu primeiro diálogo com Olímpico. São nessas cenas dialogadas, uma espécie de flash fotográfico dentro da narrativa, que Macabéa consegue o máximo de sua visibilidade, uma vez que Rodrigo abandona momentaneamente o palco e deixa seus personagens ocupar o primeiro plano.
 O ponto de vista do narrador, que também é personagem da trama e, nas suas palavras, “um dos mais importantes”, estrutura o descompasso da narrativa, pois na busca da apreensão da trajetória de sua protagonista que, não obstante, é imposta por sua própria imaginação, há uma oscilação constante, e muitas vezes abrupta, entre o tempo da enunciação – a descrição dos pensamentos, sentimentos, percepções do Rodrigo S.M. – e o tempo do enunciado – narração da história da Macabéa -, além da contínua fusão dos dois tempos, que é tematizada pelo romance: “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor- no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos” (LISPECTOR, 1998:22). Se retomarmos os subtítulos, veremos que essa oscilação já está dada de antemão: “A culpa é minha” ou “Ela não sabe gritar”? “Eu não posso fazer nada” ou “Ela que se arranje”? “Saída discreta pela porta dos fundos” ou “A hora da estrela”? Mas, é essa posição oscilante que permite a fatura do romance e a revelação das contradições sociais, estando o narrador no centro dessas contradições.
Interessante notar que as treze sentenças, que buscam intitular o romance, simbolizam já de antemão, mais do que alternância ou ênfase entre as ideias, a incerteza do escritor quanto ao nome apropriado à história. Diante da impossibilidade da apreensão da totalidade social, um só título não seria capaz de identificar o assunto a ser representado na obra. No entanto, a multiplicidade de títulos tampouco dá conta da totalidade e acaba por refletir o ponto de vista irresoluto do narrador do romance. Irresoluto porque a ânsia de dar conta da matéria narrada, o trajeto de vida e morte de Macabéa, não pode ser dissipada, uma vez que mimetiza uma fratura social do país, historicamente enraizada: a pobreza sem enfeites, feia e inóspita.
O modo de representação das camadas pobres, que se caracteriza por encenar um contato entre a figura do escritor-intelectual e a pobre retirante nordestina, nos dá indicações dos impasses vividos pelo intelectual no Brasil na década de 1970 diante (da possibilidade) de constituição de um novo sujeito histórico. Após o golpe de 1964, há um vertiginoso desenvolvimento da urbanização e industrialização no país, com a questão novo surto dedo êxodo rural e a marginalização dos habitantes da cidade, que não atende às necessidades básicas da população pobre, embora a insira na indústria cultural – é nesse contexto que se constitui, contextualiza a trajetória do narrador Rodrigo S.M. e sua protagonista Macabéa. O último romance de Clarice insere-se justamente em uma sociedade de consumo fetichizada e extremamente desigual, como assinala Walnice Nogueira Galvão, onde a crença na transformação social da realidade encontra-se fraturada, devido ao fracasso das perspectivas revolucionárias da década de 1960. Aqui então cabe lembrar, para encerrar, um trecho do prefácio de Roberto Schwarz presente no livro Os pobres na literatura brasileira:
 
As crises da literatura contemporânea e da sociedade de classes são irmãs, e (que) a investida das artes modernas contra as condições de sua linguagem tem a ver com a impossibilidade progressiva, para a consciência atualizada, de aceitar a dominação de classe. Assim, num sentido que não está suficientemente examinado, a situação da literatura diante da pobreza é uma questão de estética radical. (SCHWARZ, 1938: 8).
 
 
Bibliografia:
ÂREAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. Companhia das Letras: São Paulo, 2005.
CHIAPPINI, Ligia. “Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar: leitura de Clarice Lispector.” In Revista Literatura e Sociedade, n. 01, São Paulo, 1996, p. 60-80.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. “A irresistibilidade da pequena burguesia”. In: Com raiva e paciência. Trad. Lya Luft. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1985, pp. 87-95.
KAHN, Daniela. Mercedes. A via crúcis do outro: aspectos da identidade e da alteridade na obra de Clarice Lispector. São Paulo, DTLLC da FFLCH/USP, 2000.  (Dissertação de Mestrado sob orientação da Profa. Dra. Regina Pontieri).
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rocco: Rio de janeiro, 1998.
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rocco: Rio de janeiro, 1998.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rocco: Rio de janeiro, 1998.
NUNES, Benedito. “Filosofia e Literatura: A Paixão de Clarice Lispector”. In.: Cadernos de Literatura e Ensaio. Brasiliense: São Paulo, 1981.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro de. A Barata e a Crisálida: O Romance de Clarice Lispector. José Oympio/INL: Rio de Janeiro/ Brasília, 1985.
SCHWARZ, Roberto. Os pobres na Literatura Brasileira. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1983.
                   .   Seqüências brasileiras. Companhia das Letras: São Paulo, 1999.
 


[1] Parte da proposta da pesquisa de mestrado é seguir algumas indicações dos ensaios de Vilma Arêas, reunidos no livro “Clarice com a ponta dos dedos”, resultado de sua tese de pós-doutorado.

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