18/04/2024

O fenômeno da alienação em Max Stirner

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Sabina Maura Silva
 
Max Stirner, filósofo neo-hegeliano, publica em 1844 sua principal obra, O Único e Sua Propriedade. O pensamento de Stirner é uma louvação ao individualismo. Identificando na marcha da história um processo de destituição da individualidade, o qual, segundo ele, atinge o ponto culminante em sua época, sendo legitimado de modo incontrastável pela doutrina política do liberalismo e pelas filosofias hegeliana e pós-hegeliana, Stirner tem em vista salvaguardar de todas as formas a autonomia do indivíduo.
Buscando recuperar o indivíduo empírico, afirmá-lo e valorizá-lo, o pensamento de Stirner é, pois, um clamor pela singularidade contra qualquer tipo de universalização, seja ela filosófica ou política, tanto como contra qualquer forma de determinação extrínseca sobre a individualidade. A questão determinante para Stirner é o reconhecimento por parte dos indivíduos singulares de que são eles, em sua unicidade, os criadores de sua esfera existencial. Assim sendo, a realização suprema de cada indivíduo consiste na conquista de sua autonomia, resultado da tomada de consciência de sua autarquia originária. Ou seja, o indivíduo ascende à autenticidade de seu ser quando atinge a percepção de que é o princípio de seu próprio mundo e, portanto, o soberano de sua vida, o árbitro de sua existência. A defesa intransigente da individualidade o leva a rejeitar a preponderância de todas e quaisquer condicionantes exteriores ao Eu, sejam elas materiais ou espirituais, por representarem, aos seus olhos, forças que oprimem, limitam e escravizam os indivíduos, expropriando-os de si. Rebelando-se contra a determinação de que algo possa ter conteúdo fora do indivíduo, Stirner submete à crítica todas as formas de alienação que, segundo ele, têm vitimado os homens.
Stirner empreende a crítica do existente e o demonstra como resultado de representações, de ideias que os indivíduos têm de si mesmos e das coisas. Do ponto de vista stirneriano, o existente, tal como é percebido pelos indivíduos, corresponde a momentos do evolver da consciência de si. Esta determinação encontra-se ilustrada nas fases do desenvolvimento individual, em que, na sequência de suas etapas, os indivíduos obtêm os graus de autoconhecimento. De modo que Stirner encerra os estágios da vida nas experiências da consciência, tanto com o que lhe é exterior, quando a consciência percebe-se como tal, quanto consigo própria, quando o indivíduo capta-se e apossa-se de si, atingindo a culminância de seu ser.
 
A crítica de Stirner
No interior do pensamento stirneriano, a apreciação do fenômeno da alienação está diretamente ligada àquela do desenvolvimento da individualidade, que Stirner aborda analisando as fases da infância, adolescência e idade adulta.
Segundo ele, desde o nascimento o indivíduo luta com o mundo, no qual é lançado como um dado entre tantos, buscando encontrar e afirmar a si próprio, pois “tudo com o qual a criança entra em contato se opõe às suas intervenções, afirmando sua própria existência”(Stirner, 1991: 9). A criança observa e experimenta as coisas visando desvelar o que nelas está encoberto, a fim de desvendar seu fundamento. Teme e respeita o que lhe é exterior até descobrir em si forças capazes de superá-lo. E “quanto mais Nos sentimos Nós mesmos, tanto menor se mostra o que antes parecia invencível. E o que é Nossa astúcia, Nossa inteligência, Nossa coragem, Nossa obstinação? Que mais, senão Espírito!” (Stirner, 199: 10).
Descobrindo seu espírito, o jovem adota um comportamento teórico. Porém, não se confrontando mais com as coisas, passa a se defrontar com os imperativos de sua consciência. Ocupando-se tão somente de seus pensamentos, interessando-se pelo mundo somente quando vê nele a manifestação do espírito, sacrifica sua vida visando realizar seus ideais. Buscando desenvolver e enriquecer seu espírito, o jovem reconhece que “embora Eu seja espírito, não sou, contudo, espírito completo e devo primeiramente procurar o espírito perfeito” (Stirner, 1991: 2). Mas, com isso, “Eu, que tinha acabado de Me encontrar como espírito, perco-me novamente, humilhando-me diante o espírito perfeito como diante algo que não me é próprio, mas que está além de mim , sentindo, com isso, meu vazio” (Stirner, 1991: 13).
Diferentemente do jovem, o adulto “afeiçoa-se a si como pessoa e encontra prazer em si mesmo como homem corpóreo e vivo”, adquirindo “um interesse pessoal ou egoísta, isto é, um interesse não somente por nosso espírito, mas pela satisfação total do indivíduo” (Stirner, 1991: 13). Repelindo o espírito da mesma forma que o jovem repelia o mundo, o homem egoísta usa as coisas e os pensamentos segundo seu prazer e põe adiante de tudo seu interesse pessoal. De modo que “o homem evidencia uma segunda descoberta de si. /.../ O homem se descobre como espírito corpóreo” (Stirner, 1991: 14).
Enfim, “A criança, perturbada pelas coisas deste mundo, era realista até que, pouco a pouco, atinge o que há por detrás das coisas; o jovem, entusiasmado pelos pensamentos, era idealista, até progredir em direção ao homem, ao egoísta que se comporta à vontade com as coisas e com os pensamentos e põe acima de tudo seu interesse pessoal” (Stirner, 199: 15). As etapas da vida, portanto, revelam os caminhos trilhados pelo indivíduo em direção a si próprio. As fases de seu desenvolvimento são delimitadas a partir do autoconhecimento oriundo das relações da consciência, seja com o que lhe é exterior, quando a consciência percebe-se como tal, seja consigo própria, possibilitando ao indivíduo apossar-se da consciência de si, atingindo a culminância de seu ser. Delineia-se, pois, a determinação fundamental da individualidade stirneriana, que vem a ser o autocentramento na consciência de si.
Transpondo este processo para o curso histórico, Stirner mantém o mesmo procedimento analítico, dando conteúdo ao que referiu nas fases do desenvolvimento individual ao analisar os Antigos e os Modernos.
A antiguidade, período demarcado até o advento do cristianismo, representa a infância, a fase realista da humanidade. Para os antigos, a verdade lhes era evidente através das manifestações do mundo objetivo. Consequentemente, eram dominados por ele, submetidos a uma ordem inalterada, vivendo na certeza de que o mundo e as relações por ele impostas - os laços familiares e comunitários, por exemplo -, eram os princípios incontestáveis ante os quais deviam se curvar. Esta sujeição perdurou até que os sofistas proclamaram o entendimento como uma arma que o homem dispõe contra o mundo. Porém, como o entendimento sofista permanecia sujeito ao mundo, Sócrates, aponta para a negação de seu caráter prático e indica a necessidade de o entendimento não sucumbir aos apelos do mundo. A partir dessa indicação socrática, estoicos e epicuristas, buscando encontrar o prazer de viver, consideravam que a sabedoria da vida consistia no desprezo do mundo, numa vida sem desenvolvimento, sem extensão, enfim, numa vida isolada. A ruptura definitiva se dá com os céticos, para os quais toda relação com o mundo é privada de valor e verdade, restando em relação a ele somente a ataraxia e a afasia, ou seja, “o isolamento da interioridade” (Stirner, 1991: 25). Com a indiferença cética “a antiguidade acaba com o mundo das coisas, com a ordem e a totalidade do mundo” (Stirner, 1991: 25).
A impugnação da objetividade como algo dotado de verdade dá início à modernidade, identificada por Stirner ao cristianismo. Embora os antigos tenham descoberto o espírito, não puderam ir além; a tarefa de realizá-lo coube aos modernos. A modernidade se caracteriza por um processo de independentização do espírito em relação ao concreto, ou seja, pelo esforço para transcender toda e qualquer determinação sensível, pois para que o espírito seja efetivamente espírito, ele nada pode ter a ver com a matéria. Todavia, como o espírito “para se tornar independente se afasta do mundo sem poder aniquilá-lo realmente, o mundo permanece irremovível” (Stirner, 1991: 26) e ao espírito liberto do mundo impõe-se, portanto, a necessidade ineliminável de tornar-se espírito livre no mundo. Os modernos tornaram isto possível transfigurando o mundo, transformando-o em mundo do espírito. O espírito se converte assim no princípio que engendra e se manifesta nas coisas, que as faz ser o que são, que as vivifica, enfim, no que há de verdadeiro nelas. 
Esta transfiguração não se limita ao âmbito das coisas, pois o cristianismo, tendo “como fim específico Nos libertar da determinação natural (a determinação pela natureza), /.../ queria que o homem não se deixasse determinar por seus desejos” (Stirner, 1991: 67). Considerando seu espírito como o que há de verdadeiro, os homens, porque não se resumem absolutamente ao espírito, julgam-se menos que espírito e este se revela, assim, algo distinto da individualidade. O espírito torna-se o ideal, o inatingível, o além; torna-se Deus, o espírito puro que existe fora do homem e do mundo humano. Obcecados, os indivíduos passam a ver fantasmas por todos os cantos, pois o mundo se transforma em simples aparência, objeto de manifestação do espírito que habita as coisas. Possuídos pela convicção de que há um ser supremo do qual tudo emana, obstinam-se à tarefa de determinar seu fundamento, compreender e descobrir sua realidade, visando conferir existência ao imaterial.
Reconhecendo o espírito como superior e mais poderoso, os indivíduos são forçados a cultivar apenas interesses ideais, pois “quem quer que viva por uma grande ideia, uma boa causa, uma doutrina, um sistema, uma alta missão, não deve deixar nascer em si os apetites do mundo, os interesses egoístas” (Stirner, 1991: 82), isto é, os interesses concretos, sensíveis, pois não devem se deixar levar por qualquer determinação de caráter material. Princípios, noções e valores, que reconhecem expressamente a existência de um ser supremo, fundamentam a crença e o respeito em relação a ele e passam a dominar os indivíduos como ideias fixas que orientam todas as suas ações e relações, engendrando e estimulando a negação e o desinteresse de si. Os dogmas religiosos, os princípios filosóficos, morais e políticos constituem para Stirner exemplos destas ideias fixas, que têm como meta zelar pelo espírito e moldar os indivíduos de acordo com seus imperativos.
 
As doutrinas do espírito
Segundo Stirner, a modernidade segue um processo análogo à antiguidade. Assim, sob a égide do catolicismo, o espírito ainda se encontrava ligado ao mundo. Foi apenas a partir da Reforma que se começou a considerar o espírito como algo absolutamente independente da matéria. O protestantismo destrói o mundo santificando-o, isto é, introduzindo o espírito em todas as coisas. Reconhecendo o espírito santo como essência do mundo, este se torna sagrado por sua simples existência. Ao mesmo tempo em que redime o concreto, preenchendo-o com o espírito, Lutero preconiza a necessidade de rompimento da consciência para com toda dimensão sensível. A soberania do espírito que se estabelece plenamente a partir da Reforma é referendada pela filosofia, ocorrendo a legitimação teórica do caráter absolutamente espiritual do ser. Este processo se inicia com Descartes, que identifica o ser ao pensar, e se completa com a filosofia hegeliana, na qual se dá, enfim, a reconciliação entre as esferas espiritual e objetiva, pois “Os pensamentos devem corresponder totalmente à realidade, ao mundo das coisas e nenhum conceito pode ser desprovido de realidade” (Stirner, 1991: 80). Em suma, o resultado alcançado pelos modernos é que tanto no homem quanto na natureza somente o espírito vive, somente sua vida é a verdadeira vida. De modo que a modernidade culmina em uma abstração: “a vida da universalidade (Allgemeinheit) ou do que não tem vida” (Stirner, 1991: 94).
Sobre a crítica de Stirner à filosofia idealista, cabe destacar três aspectos. O primeiro diz respeito ao apontamento da inversão ontológica que o idealismo opera, transformando o imaterial, o não sensível em origem e realidade do concreto, do sensível; o segundo se refere à censura da dissolução do particular na universalidade abstrata. Nisto se põe em consonância com a crítica de Feuerbach e Marx à especulação, distinguindo-se os três, entretanto, quanto ao que é determinado como o efetivamente concreto e quanto ao que é apontado como o princípio geral de determinação - para Stirner, apenas o indivíduo singular e o egoísmo. O terceiro aspecto, que constitui um dos pontos determinantes da crítica que Marx dirige a Sancho[1], revela, a nosso ver, o núcleo do pensamento stirneriano. Stirner ressalta a concretude que os ideais adquiriram ao longo da modernidade, o que poderia levar a supor que visa recuperar o mundo objetivo, livrando-o do peso da abstração. No entanto, para ele, o que constitui a falha capital deste período vem a ser precisamente a não superação da objetividade, condição fundamental para a afirmação da individualidade. Nesse sentido, argumenta,
 
Como se pode alegar que a filosofia ou a época moderna trouxe a liberdade, já que ela não nos libertou do poder da objetividade? [...] Ela somente transformou os objetos existentes [...] em objetos representados, isto é, em conceitos, diante os quais não só não se perdeu o antigo respeito, mas, ao contrário, o intensificou. [...].  Por fim, os objetos apenas sofreram uma transformação, mas conservaram sua supremacia e soberania; enfim, continuou-se submerso na obediência e na obsessão, vivendo na reflexão, com um objeto sobre o qual refletir, um objeto para respeitar e acolher com veneração e temor. Apenas se transformou as coisas em representações das coisas, em pensamentos e conceitos e a dependência em relação a elas tornou-se tanto mais íntima e indissolúvel. (Stirner, 1991: 94/95).
 
Não escapa ao crivo de Stirner o humanismo ateu que se desenvolveu em sua época, atentando para o fato de que, embora se ataque a essência sobre-humana da religião, não se abandonou a postura religiosa, uma vez que o posicionamento antirreligioso resultou tão somente na humanização da religião, simplesmente operando a substituição de Deus pelo homem. Permanecem prisioneiros do princípio religioso porque o homem que se torna o novo ser supremo não se refere ao indivíduo singular, mas à espécie, ao gênero humano. Se outrora o espírito de Deus ocupava o indivíduo, agora ele se encontra ocupado e se pauta pelo espírito do Homem. A conquista da humanidade torna-se, assim, o ideal diante o qual o indivíduo deve se curvar, o alvo sagrado que deve atingir.
Com a vitória do Homem sobre Deus, dá-se a substituição dos preceitos religiosos pelos preceitos morais. Esta moral puramente humana - que segue sua própria rota orientando-se pela razão - obtém sua independência do terreno religioso propriamente dito com o liberalismo. Representando a última consequência do cristianismo, o liberalismo, tendo como finalidade realizar o homem verdadeiro, apenas pôs em discussão outros conceitos - conceitos humanos no lugar de divinos, o Estado no lugar da Igreja, a ciência no lugar da fé.
Sob o termo liberalismo, Stirner designa genericamente o liberalismo propriamente dito, o socialismo e o humanismo ‘crítico’ de Bruno Bauer, chamando-os, respectivamente, liberalismo político, liberalismo social e liberalismo humano. Na perspectiva stirneriana, estas três variações, que se identificam pela rejeição à individualidade e a quaisquer modos de particularismos, diferenciam-se apenas quanto ao elemento mediador capaz de levar ao florescimento do homem no indivíduo. O liberalismo político estabelece o estado, o liberalismo social, a sociedade, e o liberalismo humano a realização universal da humanidade.  Portanto, por representar a última forma conferida ao ideal, resta então romper com o espectro do Homem para com isso quebrar definitivamente a dominação espiritual. Isso, somente o egoísta pode fazê-lo.
 
A categoria da alienação
Stirner considera que o egoísmo é ineliminável e se manifesta mesmo naqueles que se devotam ao espiritual porque, ressalta,
 
o sagrado existe apenas para o egoísta que não se reconhece como tal, o egoísta involuntário, que está sempre à procura do que é seu e ainda não se respeita como o ser supremo, que serve apenas a si mesmo e pensa ao mesmo tempo servir sempre a um ser superior; que não conhece nada superior a si e se exalta, contudo, pelo ‘superior’, enfim, para o egoísta que não gostaria de sê-lo e se rebaixa, ou seja, combate o seu egoísmo, rebaixando-se, contudo, ‘para elevar-se’ e satisfazer, portanto, seu egoísmo. Querendo deixar de ser egoísta, ele procura em seu redor, no céu e na terra, por seres superiores para lhes oferecer seus serviços e se sacrificar. Mas, embora se agite e se mortifique, ele age, no fim das contas, apenas por si mesmo e pelo difamado egoísmo que não o abandona. Por isso, eu o chamo egoísta involuntário. (Stirner, 1991: 39).
 
Mas se assim o é, por que isso se dá? Ou seja, por que seres essencialmente egoístas se alienam? Na descrição das fases da vida, encontra-se explícito que o indivíduo é, ele próprio, não só a fonte do que é mas também de sua negação, de sua perda, uma vez que mesmo quando é dominado pelos pensamentos, ele é dominado por seus pensamentos que, por não serem reconhecidos como seus, adquirem existência autônoma em relação ao eu que os produziu. No entanto, é a partir de outro texto, intitulado Arte e Religião, escrito em 1842, que se pode compreender com mais clareza o que constitui este fenômeno. Analisando a relação entre arte e religião, Stirner aponta que a arte é manifestação da “ardente necessidade que o homem tem de não permanecer só, mas de se desdobrar, de não estar satisfeito consigo como homem natural, mas de buscar pelo segundo homem, espiritual” (Stirner, 1994: 46). A resolução desta necessidade se dá com a obra de arte, dado que ela configura, objetivamente, o ideal do homem de transcender a si. Com a obra de arte, o homem fica em face de si mesmo; porém, “O que lhe está defronte é e não é ele: é o além inatingível em direção ao qual fluem todos os seus pensamentos e todos os seus sentimentos, é seu além envolvido e inseparavelmente entrelaçado no aquém de seu presente”(Stirner, 1994: 46). Enquanto a arte é posição de um objeto, a religião “é contemplação e precisa, portanto, de uma forma ou de um objeto” (Stirner, 1994: 46) com o qual se defrontar. Afirma Stirner que
 
o homem se relaciona com o ideal manifestado pela criação artística como um ser religioso: ele considera a exteriorização de seu segundo eu como um objeto. Tal é a fonte milenar de todas as torturas, de todas as lutas; porque é terrível ser fora de si mesmo, e todo aquele que é para si mesmo seu próprio objeto é impotente para se unir totalmente a si e aniquilar a resistência do objeto (Stirner, 1994: 46).
 
Logo, a arte dá forma ao ideal e a religião “encontra no ideal um mistério e torna a religiosidade tanto mais profunda quanto mais firmemente cada homem se liga a seu objeto e é dele dependente” (Stirner, 1994: 52). A alienação ocorre, pois, no processo de objetivação da individualidade e se dá pelo fato de o indivíduo contemplar sua exteriorização como algo que não lhe pertence, como algo por si, que o transcende. Contempla a si através de uma mediação, relacionando-se consigo mesmo de modo estranhado, pois não reconhece o objeto como sua criatura, convertendo-o em sujeito.
O que Stirner recusa é a transcendência do objeto sobre o sujeito. Isto porque “o objeto, sob sua forma sagrada como sob sua forma profana, como objeto suprassensível tanto quanto objeto sensível, nos torna igualmente possuídos” (Stirner, 1991: 379), uma vez que, tomado como algo por si, obriga o sujeito a se subordinar à sua lógica própria. Destrói-se, assim, “a singularidade do comportamento, estabelecendo um sentido, um modo de pensar como o ‘verdadeiro’, como o ‘único verdadeiro’ ” (Stirner, 1991: 377). Contra isso, argumenta que “o homem faz das coisas aquilo que ele é” (Stirner, 1991: 378). Ou seja, as determinações das coisas são diretamente oriundas e dependentes do sujeito. E ironizando o conselho dado por Feuerbach, o qual adverte que se deve ver as coisas de modo justo e natural, sem preconceitos, isto é, de acordo e a partir daquilo que elas são em sua especificidade, Stirner aponta que “vê-se as coisas com exatidão quando se faz delas o que se quer (por coisas entende-se aqui os objetos em geral como Deus, nossos semelhantes, a amada, um livro, um animal, etc.). Por isso, não são as coisas e a concepção delas o que vem em primeiro lugar mas Eu e minha vontade” (Stirner, 1991: 378). Então, “Porque se quer extrair pensamentos das coisas, porque se quer­ descobrir a razão do mundo, porque se quer­ descobrir sua sacralidade, encontrar-se-á tudo isso” (Stirner, 1991: 378), pois “Sou Eu quem determino o que Eu quero encontrar. [...] Eu escolho o que meu espírito aspira e por esta escolha Eu me mostro - arbitrário”(Stirner, 1991: 378). Torna-se claro, pois, que Stirner não leva em consideração a existência dos objetos, ou seja, o que eles são em si, independentes da subjetividade, e somente admite a efetividade dos objetos na medida em que esta é estabelecida, sancionada pelo sujeito. A indiferença para com o objeto se dá em função de que
 
Toda sentença que Eu profiro sobre um objeto é criação de minha vontade /.../. Todos os predicados dos objetos são resultados de minhas declarações, de meus julgamentos, são minhas criaturas. Se eles querem se libertar de Mim e ser algo por si mesmos, se eles querem se impor absolutamente a Mim, Eu não tenho nada mais a fazer senão apressar-Me em restabelecê-los a seu nada, isto é, a Mim, o criador (Stirner, 1991: 378/379).
 
De modo que a relação autêntica entre sujeito e objeto só se dá quando as propriedades dos objetos forem acolhidas como frutos das deliberações dos indivíduos. Consequentemente, pelo fato de ser o sujeito aquele que põe a objetividade do objeto, segue-se que não se pode ter determinações universais sobre as coisas, mas tão somente determinações singulares, postas por sujeitos singulares, rompendo-se, assim, a dimensão da objetividade como imanência. Acatar a objetividade como algo por si é, para Stirner, abdicar da existência, pois o único ser por si é o indivíduo, produtor de seu universo existencial. Por isso, não condena as convicções, crenças e valores que os indivíduos possam abraçar. Apenas não admite que sejam tomados como algo mais que criaturas:
 
Deus, o Cristo, a trindade, a moral, o Bem, etc. são tais criaturas, das quais eu devo não apenas Me permitir dizer que são verdades, mas também que são ilusões. Da mesma maneira que um dia Eu quis e decretei sua existência, Eu quero também poder desejar sua não existência. Eu não devo deixá-los crescer além de Mim, ter a fraqueza de deixá-los tornar algo ‘absoluto’, eternizando-os e retirando-os de meu poder e de minha determinação (Stirner, 1991: 379).
 
Portanto, os indivíduos podem crer, pensar, aspirar, contanto que não percam de vista que são eles o fundamento das crenças, pensamentos e aspirações, bem como daquilo que creem, pensam e aspiram. Neste sentido, a superação da alienação significa, pois, a absorção da objetividade pela subjetividade, requerendo somente que o indivíduo tome consciência de que por trás das coisas e dos ideais não existe nada a não ser si mesmo; em suma, exige que o indivíduo negue autonomia a tudo que lhe é exterior e tome apenas a si como ser autônomo, que atribua somente a si a efetividade da existência.
O caráter puramente subjetivo que Stirner confere à apropriação da objetividade salienta-se plenamente quando se analisa a revolta individual, condição de possibilidade para o reconhecimento de si como base da existência. Segundo ele, reflete um descontentamento do indivíduo consigo mesmo, razão pela qual
 
Não se deve considerar revolução e revolta como sinônimos. A revolução consiste em uma transformação das condições, da situação existente, do Estado ou da Sociedade; é, por consequência, uma ação política ou social; a revolta tem como resultado inevitável uma transformação das condições, mas não parte delas; ao contrário, porque parte do descontentamento do homem consigo mesmo, não é um levante planejado, mas uma sublevação do indivíduo, uma elevação, sem levar em consideração as instituições que dela nascem. A revolução tem em vistas novas instituições, a revolta nos leva a não Nos deixar mais instituir, mas a Nos instituirmos Nós mesmos e a não depositarmos brilhantes esperanças nas ‘instituições’. Ela é uma luta contra o existente porque, quando é bem sucedida, o existente sucumbe por si mesmo, ela é apenas a Minha libertação em relação ao existente. Assim que Eu o abandono, o existente morre e apodrece. Ora, como meu propósito não é a derrubada do existente, mas elevar-Me acima dele, então minha intenção e ação não é política ou social, mas egoísta, como tudo que é concentrado em Mim e em minha singularidade. (Stirner, 1991: 354).
 
Em outros termos, a revolta parte e se dirige à subjetividade e a revolução à objetividade, razão pela qual a primeira é uma ação autêntica e a segundo uma ação estranhada do indivíduo. E dado a supremacia do sujeito, prescinde de qualquer modificação sobre o objeto. Seguindo as palavras de Giorgio Penzo, em sua introdução à edição italiana de O Único e Sua Propriedade, “é obviamente apenas com o ato existencial da revolta que se pode tornar menor a afecção do objeto, pelo que o eu se reconhece totalmente livre no confronto com o objeto” (Penzo, 1993: 23). Há que observar, contudo, que tal reconhecimento significa tão somente aceitar o objeto como tal, tomando-se, no entanto, como o árbitro de tal aceitação. Neste sentido, Stirner pretende a afirmação da individualidade apesar e a despeito das coisas. Não se deixando reger pelos objetos, ainda que acatando as determinações da objetividade como posição de sua vontade, o indivíduo abre as vias para o início de sua verdadeira e plena história, a história do único e sua propriedade.
 
A resolução stirneriana: o único
Visando, pois, remeter à individualidade - fundamento último e intransponível - tudo o que dela foi expropriado e determinado de modo abstrato e transcendente, Stirner assume a tarefa de desmistificar todos os ideais, mostrando que nada são senão atributos do Eu. Ou seja, aqueles só podem ganhar existência se assentados sobre o indivíduo. Mas para tal o indivíduo tem de conquistar sua individualidade, recuperando sua corporeidade e sua força, para fazer valer sua unicidade.
Segundo Stirner, desde o fim da antiguidade, a liberdade tornou-se o ideal orientador da vida, convertendo-se na doutrina do cristianismo. Significando desligar-se, desfazer-se de algo, o desejo pela liberdade, como algo digno de qualquer esforço, obrigou os indivíduos a se despojarem de si mesmos, de sua particularidade, de sua propriedade (eigenheit) individual.
Stirner não recusa a liberdade, pois é evidente que o indivíduo deva se desembaraçar do que se põe em seu caminho. Contudo, a liberdade é insuficiente, uma vez que o indivíduo não só anseia se desfazer do que não lhe apraz, mas também se apossar do que lhe dá prazer. Deseja não apenas ser livre, mas, sobretudo, ser proprietário. Portanto, exatamente por constituir o núcleo do desejo seja pela liberdade, seja pela entrega, o indivíduo deve se tomar por princípio e fim, libertar-se de tudo que não é si mesmo e apossar-se de sua individualidade.
Profundas são as diferenças entre liberdade e individualidade. Enquanto a liberdade exige o despojamento para que se possa alcançar algo futuro e além, a individualidade é o ser, a existência presente do indivíduo. Embora não possa ser livre de tudo, o indivíduo é si mesmo em todas as circunstâncias pois, mesmo entregue como servo a um senhor, pensa somente em si e em seu benefício. Com efeito, “seus golpes Me ferem: por isso, Eu não sou livre; contudo, Eu os suporto somente em meu proveito, talvez para enganá-lo através de uma paciência aparente e tranquilizá-lo, ou ainda para não contrariá-lo com Minha resistência. [...]. De modo que livrar-Me dele e de seu chicote é somente consequência de Meu egoísmo precedente” (Stirner, 1991: 174). Logo, a liberdade apenas adquire valor e conteúdo em função da individualidade, a qual afasta todos os obstáculos e põe as condições de possibilidade para a liberdade.
Stirner frisa que a individualidade (Eigenheit) não é uma ideia nem tem nenhum critério de medida estranho, mas encerra tudo que é próprio ao indivíduo. Esta individualidade, que diz respeito a cada indivíduo singular, afirma-se e se fortalece quanto mais pode manifestar o que lhe é próprio. E exprimir-se como proprietário exige que o indivíduo não só tenha a plena consciência dessa sua especificidade mas que, principalmente, exteriorize suas capacidades para se apropriar de tudo que sua vontade determinar. O indivíduo tanto mais se realiza e se mostra como tal quanto mais propriedades for capaz de acumular, pois a propriedade que se manifesta exteriormente reflete o que se é interiormente. Para que isto se dê, o indivíduo tem de se reapropriar dos atributos que lhe foram usurpados e consagrados como atributos de Deus e, depois, do Homem.
Stirner aponta que as tentativas da modernidade para tornar o espírito presente no mundo significam que estas perseguiram incessantemente a existência, a corporeidade, a personalidade, enfim, a efetividade. Mas observa que, centrada sobre Deus ou sobre o Humano, nunca se chegará à existência, dado que tanto Deus quanto o Homem não possuem dimensão concreta, mas ideal e “nenhuma ideia tem existência porque não é capaz de ter corporeidade” (Stirner, 1991: 408), atributo específico dos indivíduos. Logo, a primeira tarefa a que o indivíduo deve se lançar é recobrar sua concretude, perceber-se totalmente como carne e espírito, aceitando, sem remorsos, que não só seu espírito mas também seu corpo é ávido por tudo que satisfaça suas necessidades. Conquista-se, assim, a integralidade como subjetividade corpórea. Contudo, recuperar a corporeidade não significa que o indivíduo deva se entregar a ela, deixando-se dominar pelos apetites e inclinações sensíveis, uma vez que a sensibilidade não é a totalidade de sua individualidade. Ao contrário, a conquista da individualidade requer o domínio sobre o corpo e sobre o espírito.
Apropriando-se de sua concretude, de sua existencialidade, o indivíduo deve, por conseguinte, apropriar-se de sua humanidade. Conforme Stirner, o Homem como realização universal da ideia, isto é, como corporificação da ideia, representa a culminância do processo de abstração que permeou a modernidade. Admitindo a possibilidade de a essência poder estar separada da existência, o ser separado da aparência, o indivíduo foi considerado inumano, o não-homem cuja missão é, precisamente, vir a ser homem. Assim, a humanidade assentou-se não sobre o Eu corpóreo, material, com seus pensamentos, resoluções, paixões, mas sobre o ser genérico Homem. De modo que o ser abstrato e indiferenciado tomou o lugar do ser real, particular, específico. No entanto, ser humano não é a determinação essencial do indivíduo. O humano se realiza no ser homem, que “não significa preencher o ideal o homem, mas manifestar-se como indivíduo” (Stirner, 1991: 200), ou seja,
 
manifestar-se como é e não manifestar aquilo que é. Com isso, a questão conceitual ‘o que é o homem?’ se transforma na questão pessoal ‘quem é o homem?’ Enquanto com o ‘que’ procura-se o conceito a fim de realizá-lo, com o ‘quem’ tem-se uma resposta que é dada de modo pessoal por aquele que interroga: a pergunta responde-se a si mesma (Stirner, 1991: 411/412).
 
 Portanto, quem é o homem? É “o indivíduo, o finito, o Único” (Stirner, 1991: 271). O homem vale como universal; porém, “Eu e o egoísmo somos o verdadeiro universal, porque cada um é egoísta e se põe acima de tudo” (Stirner, 1991: 198).
A força do Eu stirneriano é a atualização de suas capacidades; através dela, o indivíduo objetiva a vontade que o move e expande sua propriedade. É o que especifica e distingue os indivíduos, que são o que são em função da quantidade de força que possuem. Todavia, no decorrer de séculos de cristianismo se perseguiu um modo de torná-los iguais enquanto ser e poder ser. Primeiramente, encontrou-se a igualdade no ser cristão que, todavia, ao excluir os não cristãos, deixava subsistir a diferença, pois só os seguidores dos preceitos divinos eram merecedores das dádivas de Deus. O poder ser se revelava, assim, um privilégio. Contra esse particularismo, lutou-se pela igualdade universal advinda da humanidade presente em cada indivíduo e, como homem, reclamou-se pelo que legitimamente, ou seja, por direito, cabe ao Homem. O direito, portanto, é uma concessão dada aos indivíduos em função de estarem subordinados a uma potência, ela sim detentora da vontade soberana. Advindo de uma fonte externa, “todo direito existente é direito estranho” (Stirner, 1991: 204). No entanto, segundo Stirner, fora do indivíduo não existe nenhum direito, pois “Tu tens direito ao que Tu tens força para ser” (Stirner, 1991: 207). Assim, quando o indivíduo é forte o suficiente para agir segundo sua vontade, está em seu direito e o realiza. Se o ato não se coaduna à vontade de um outro, este também está no direito de não aceitar e fazer prevalecer sua vontade, caso tenha a força para tal. De modo que a ação não necessita de nenhuma autorização, pois é a efetivação da vontade do indivíduo que se cifra em si mesmo. E uma vez que a força é a medida do direito, os indivíduos tornam-se proprietários do que são capazes, capacidade que depende exclusivamente de sua força para se apoderar e de sua força para conservar a posse. Portanto, enquanto o direito “é uma obsessão concedida por um fantasma, a força sou Eu mesmo. Eu sou o poderoso e o proprietário da força. O direito está acima de Mim [...], é uma graça concedida por um juiz; a força e o poder existem somente em Mim, o forte e o poderoso” (Stirner, 1991: 230/231).
Ademais, a conquista da individualidade demanda a necessidade de reorganização das relações entre os indivíduos, dado que até então os indivíduos não puderam alçar a seu pleno desenvolvimento e valor, pois “não puderam ainda fundar suas sociedades sobre si próprios” cabendo-lhes tão somente “fundar ‘sociedades’ e viver em sociedade” (Stirner, 1991: 231/232), não como querem, mas de acordo com interesses gerais, que visam apenas ao bem comum. Em consequência, o modo de existência dos indivíduos é determinado exteriormente pela forma da sociedade, através das leis e regras de convivência, de modo que estes não se relacionam diretamente, mas pela mediação da sociedade. Os indivíduos devem tomar consciência do impulso que os leva a estabelecer um intercâmbio com os outros. Segundo Stirner, as relações interindividuais se resumem ao fato de que “Tu és para mim apenas meu alimento, mesmo se Eu também sou utilizado e consumido por Ti. Nós temos entre Nós apenas uma relação, a relação de utilidade, do pôr-se em valor e em vantagem” (Stirner, 1991: 331). De modo, que para assenhorear-se de suas relações e estabelecê-las de acordo com seus interesses, é imprescindível romper com as formas instituídas de sociedade, que têm em vista, todas, restringir a singularidade dos indivíduos. A dissolução da sociedade se dará com a associação dos egoístas, uma “reunião continuamente fluida de todos os elementos existentes” (Stirner, 1991: 246), na medida em que se forma a partir da volição dos indivíduos que, liberta dos constrangimentos sociais, ganha livre curso. O que caracteriza esta associação é o fato de os indivíduos se relacionarem sem contudo um limitar o outro, porque não se encontram ligados por nenhum vínculo extrínseco, ou, nos termos de Stirner, porque “nenhum laço natural ou espiritual faz a associação; ela não é nem uma união natural, nem espiritual” (Stirner, 1991: 349). Na associação, as relações entre os indivíduos se dão sem intermediação alguma, o que os permite unirem-se aos outros exclusivamente por seus interesses pessoais. Visto que “Ninguém é, para Mim, uma pessoa respeitável, tampouco meu semelhante, mas meramente, como qualquer outro ser, um objeto pelo qual Eu tenho ou não simpatia, um objeto interessante ou não, um sujeito útil ou inútil” (Stirner, 1991: 349),
 
se Eu posso utilizá-lo, Eu me entendo e Me ponho de acordo com ele e, por este acordo, intensifico minha força e através dessa força comum faço mais do que isolado poderia fazer. Neste interesse comum, Eu não vejo absolutamente nada de outro senão uma multiplicação de minha força e Eu o mantenho apenas enquanto ele é a multiplicação de minha força (Stirner, 1991: 349).
 
Existindo apenas em função de interesses, os indivíduos são livres para participarem de quantas associações desejarem, bem como para delas se desligarem de acordo com sua conveniência. Transformando as relações sociais em relações pessoais, os egoístas podem fruir o mundo, conquistando-o como sua propriedade.
Stirner supunha estar “no limiar de uma época” (Stirner, 1991: 355), em cuja entrada estaria inscrita não mais a “fórmula apolínea ‘Conheça-Te a Ti mesmo’, /.../ mas ‘Valoriza-Te a Ti mesmo!’ ” (Stirner, 1991: 353).
Os indivíduos vivem preocupados e oprimidos pela tensão em conquistar a vida, seja a vida celeste, seja a vida terrena, o que os impede de “desfrutar a vida” (Stirner, 1991: 358). Por isso, conclama-os para o gozo da vida, que consiste em usá-la “como se usa a lâmpada, fazendo-a arder. Utiliza-se a vida e, por consequência, a si mesmo, vivendo-a; consumindo-a e se consumindo. Gozar a vida é utilizá-la” (Stirner, 1991: 358/359).
Segundo ele, “Nós somos Todos perfeitos! Nós somos, a cada momento, tudo o que podemos ser e não precisamos jamais ser mais do que somos” (Stirner, 1991: 404). Por isso,
 
um homem não é ‘chamado’ a nada, não tem ‘tarefa’ nem ‘destinação’, tanto quanto uma flor ou um animal não têm nenhuma ‘missão’. A flor não obedece à missão de se perfazer, mas ela emprega todas as suas forças para usufruir o melhor que pode do mundo e consumi-lo; ela absorve tanta seiva da terra, ar da atmosfera e luz do sol quanto pode receber e armazenar. O pássaro não vive segundo uma missão, mas emprega suas forças o quanto pode [....]. Em comparação com as de um homem, as forças de uma flor ou de um pássaro são mínimas, e o homem que empregar as suas forças capturará o mundo de modo muito mais potente que aqueles. Ele não tem missão, mas forças que se manifestam lá onde elas estão, porque seu ser não tem existência senão em sua manifestação [...]. (Stirner, 1991: 366).
 
O indivíduo se afasta de seu gozo pessoal quando crê dever servir a algo alheio. Servindo apenas a si torna-se “não apenas de fato [...], mas também por (sua) consciência, o único”. (Stirner, 1991: 405). No “único, o proprietário retorna ao Nada criador do qual nasceu” (Stirner, 1991: 412) porque a designação único é tão somente um nome, uma designação genérica que indica o irredutível de toda individualidade, cujo conteúdo e determinação são específicos e postos por cada indivíduo, já que não há algo que os pré-determine.
O egoísmo, no sentido stirneriano do termo, refere-se, por um lado, ao fato de que cada indivíduo vive em um mundo que é seu, que está em relação a ele, que é o que é para ele, motivo pelo qual sente, vê, pensa tudo a partir de si. Por outro lado, diz respeito tanto às pulsões e determinações que compõem a esfera exclusiva do indivíduo, quanto ao amor, à dedicação, à preocupação que cada individualidade nutre por si. O homem, na ótica de Stirner é ego. Porém, o fato de constituírem eus não torna os indivíduos iguais, uma vez que a condição de possibilidade de ser não se deve ao fato de serem todos egoístas, mas em terem força para expandir seu egoísmo. Daí, cada eu ser único e sua individualidade constituir a única realidade a partir da qual se põem suas possibilidades efetivas. Não se pautando por nenhum critério exterior, o único não se deixa determinar por nada, a não ser pela consciência de sua autonomia como indivíduo dotado de vontade e força, razão pela qual é livre para desejar e se apossar de tudo o que lhe apraz através de sua potência única. É um ser ávido, movido pela única força capaz de torná-lo si mesmo: o egoísmo. É, enfim, o indivíduo que se põe como centro do mundo e prefere a si, acima de todas as coisas; que orienta suas ações, estabelece suas relações com os outros e dissipa sua existência visando somente a um fim: satisfazer a si mesmo.
 
Conclusão
O determinante para Stirner é, pois, o reconhecimento por parte dos indivíduos singulares de que são eles, em sua unicidade, os criadores de sua esfera existencial. Originando-se do modo de ser da individualidade, advindo de seu impulso a exteriorizar suas determinações subjetivas, a alienação se dá pelo fato de a individualidade contemplar sua exteriorização como algo que não lhe pertence, como algo por si, enfim, como um objeto superior ao qual deve se subordinar. Submetendo-se ao objeto, o indivíduo contempla a si através de uma mediação e se relaciona consigo mesmo de modo estranhado, pois não reconhecendo o objeto como atributo seu, converte-o em sujeito e abdica de sua existência em favor da existência do objeto. A superação da alienação se dá quando a individualidade toma consciência de si como único sujeito, desligando-se e pondo-se acima do existente ao negá-lo como algo por si. Portanto, a resolução da alienação significa a superação da transcendência do objeto em relação ao sujeito. Negada a substancialidade do objeto, esta se repõe em sua fonte originária: a individualidade, única realidade por si.
 
 
Referências
Penzo, Giorgio, “Introduzione”. In L’único e la sua Proprietá.  Trad. italiana de Claudio Berto, Mursia Editore: Milão, 1993.
Stirner, Max, Der Einzige und Sein Eigentum, Philipp Reclam Jun: Stuttgart,1991.
__________, Art et Religion.  In Œuvres Complètes, L’Age D’Homme: Lausanne, 1994.
 


 
 


[1] Uma das alcunhas pelas quais Marx trata Stirner em A Ideologia Alemã.

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