28/03/2024

O carater transformador dos estranhamentos

Por

 

Mônica Hallak Martins da Costa
PUC-Minas Gerais                                            
 
O objetivo deste trabalho é colocar em paralelo os desdobramentos presentes no itinerário lukacsiano na abordagem das categorias alienação e estranhamento e as expressões de Marx nos Grundrisse sobre o mesmo tema.
Com esse intuito, o texto divide-se em duas partes: a primeira busca acompanhar, principalmente através dos textos Jovem Hegel, Estética, Ontologia e Prolegômenos à ontologia do ser social as mudanças na interpretação de Lukács acerca do fenômeno da alienação; a segunda destaca algumas passagens dos Grundrisse em que a separação entre produtor e meios de produção é, digamos assim, valorizada enquanto aspecto libertador.
A recuperação do tratamento do Lukács acerca do fenômeno alienação/estranhamento colocada lado a lado com trechos dos Grundrisse que tratam da separação entre produtor e meios de produção pode ser o início de uma longa e, espera-se, proveitosa discussão sobre os projetos societários futuros, sem a idealização que marca a história da esquerda.
 
Alienação/estranhamento em Lukács:  Jovem Hegel, Estética, Ontologia e Prolegômenos
Como se sabe, a identificação da alienação como momento da objetivação é característica da abordagem hegeliana[1]. Lukács reconhece o amparo de Hegel em suas reflexões na conferência pronunciada em Paris em 1949 que foi publicada sob o título O jovem Hegel. Os novos problemas da pesquisa hegeliana[2].  Ele admite, logo no início da conferência, que seu ponto de partida é a compreensão de que “Hegel é o precursor da dialética materialista de Marx”[3] (Lukács, 2007: 89). Um dos pontos centrais valorizados por Lukács que justifica sua interpretação é o desenvolvimento da categoria Entäusserung.
O autor húngaro encontra três acepções para Entäusserung em Hegel: a primeira refere-se ao trabalho, pois há, diz ele,
 
[...] no trabalho uma estrutura das relações sujeito-objeto na atividade humana, relações que determinam o que poderíamos chamar de dinamismo do processo histórico: o trabalho torna possível o desenvolvimento de toda a história como história da atividade humana. E pode-se facilmente ver o progresso contido nessa concepção hegeliana se a compararmos, por um lado, com a filosofia do século XVIII, na qual as explicações sociais eram dadas somente por categorias tomadas da natureza (clima etc.), e, por outro, com a filosofia alemã, com Kant e Fichte, que tentavam explicar a história da atividade humana, mas concebiam esta atividade de modo abstrato e como ato puro. Aqui, neste conceito, Hegel é claramente um precursor da filosofia marxista (Lukács, 2007: 105).
 
A segunda acepção, identificada por Lukács, do conceito de Entäusserung “é uma espécie de antecipação do que Marx irá chamar de ‘fetichismo da mercadoria’” (Lukács, 2007: 105). No livro O jovem Hegel, Lukács afirma que, por não reconhecer os problemas da base econômica, Hegel não pode obter consequências teóricas decisivas, mas ele “pressente o problema da fetichização dos objetos sociais no seio do capitalismo” (Lukács, 1981a. v. II: 348). A terceira acepção é aquela que identifica exteriorização com objetividade. Mas, objetividade, esclarece Lukács, como Gegenständlichkeit,
 
[...] que é decisiva para o pensamento de Hegel nesta época e até mesmo para toda sua filosofia. É em Gegenständlichkeit que estou pensando quando falo em ‘objetividade’. Se a exteriorização é idêntica à objetividade, isso significa que todo o mundo dos objetos, das coisas etc., nada mais é do que o espírito objetivado; ou seja, se conhecemos a verdade sobre as coisas e suas relações, conheceremos a nós mesmos na medida em que participamos do sujeito universal da evolução do gênero humano, do Weltgeist [espírito do mundo]. (Lukács, 2007: 106).
 
Em O Jovem Hegel, encontramos, no capítulo dedicado à categoria da alienação como conceito central da Fenomenologia do Espírito, o reconhecimento de que “a alienação (Entäusserung[4]) possui em Hegel, ao contrário de Schelling, um significado positivo, criador da objetividade, e é desta última que parte a crítica de Marx” (Lukács, 1981a – II: 368). Mas, neste texto, Lukács não contrapõe, como em Ontologia, Entäusserung e Entfremdung, apesar de fazer uso dos dois termos de forma distinta. Enquanto em relação à Entäusserung é atribuído um significado positivo, a Entfremdung está diretamente associada aos aspectos negativos do processo de produção, e é ela “que deve ser realmente ultrapassada”(Lukács, 1981a: 371)
No artigo O jovem Marx: sua evolução filosófica de 1840 a 1844 (2007), publicado, no Brasil, pela UFRJ, Lukács enuncia que a categoria do estranhamento (Entfremdung), da alienação (Entäusserung) encontra um sentido social qualitativamente novo nas anotações de Marx de 1844, pois o autor alemão rompe “radicalmente com o idealismo hegeliano e com os limites metafísicos de Feuerbach” (Lukács, 2007: 187). Note-se que Lukács cita os dois termos sem distingui-los, reproduzindo, portanto, a unidade que Marx de fato busca salientar nos Manuscritos entre as duas expressões que ele encontra em Hegel sem, no entanto, identificá-las absolutamente.
Antes de iniciar a elaboração de sua Ontologia, Lukács concluiu Estética, publicada em 1963. Nessa grande obra também tratou da alienação apoiando-se em Hegel. Vejamos, de início, como compreende os reflexos científico e estético para, posteriormente, tratar de forma específica da Entäusserung,como momento do espelhamento estético.
Na abordagem inicial em Estética, Lukács apresenta os elementos do pensamento cotidiano a partir dos quais brotam as diferenciações tanto do pôr científico quanto do artístico. Seu escopo é o de capturar a especificidade do estético delimitando sua distinção em relação à ciência.
A distinção entre o campo da arte e o da ciência aparece nitidamente na forma do espelhamento: no caso da ciência, o reflexo busca conhecer a realidade objetiva, “levando à consciência seus conteúdos, suas categorias etc”, na arte opera-se o movimento contrário, “tem lugar uma projeção de dentro para fora” (Lukács,1970: 178). Trata-se, portanto, da diferença entre os princípios antropomorfizador e desantropomorfizador. No entender do autor, a “objetividade estética – ainda que também ela antropomorfizadora, se distingue qualitativa e essencialmente das formas de objetividade da cotidianidade, a religião e a magia” (Lukács, 1970: 178). A exigência de diferenciação, para fins analíticos, não significa, claro, que na realidade essas esferas se desenvolvam autonomamente.
Uma distinção importante entre o reflexo artístico e o científico é que este deve sempre buscar “as determinações gerais do objeto estudado em cada caso”, enquanto na arte o reflexo “se orienta imediata e exclusivamente a um objeto particular” (Lukács, 1970: 199).
O típico expresso nos objetos da arte sempre se volta para reflexão da própria subjetividade, orienta-se ao próprio homem abarcando “os conteúdos do mundo concreto do modo mais completo possível” (Lukács, 1970: 202). Trata-se da velha e, segundo Goethe[5], inútil exigência de conhecer-se a si mesmo. O filósofo húngaro, amparado no literato alemão, recusa a orientação à interioridade na referência ao sujeito e se norteia em um comportamento direcionado ao mundo.
A generalização estética realiza-se, portanto, na intensificação do traço individual, que assim caracterizado expressa no objeto da arte sua entificação especial, particular, única e, por isso mesmo, universal.
Do lado do sujeito, o caráter potencializador do aspecto individual em cada campo particular da arte se vincula “à possibilidade de desenvolvimento e refinamento dos sentidos humanos, entendida, desde logo, no mais amplo sentido” (Lukács, 1970: 208), o que não significa que “a cada sentido deva corresponder uma só arte” (Lukács, 1970: 208), porque, no curso do desenvolvimento, surgem “interações que se fazem cada vez mais íntimas e penetrantes” (Lukács, 1970: 208).
Para Lukács, também no produto do reflexo estético tem-se “uma realidade de existência tão independente da consciência do indivíduo e da sociedade como no caso do em-si da natureza; mas se trata de uma realidade na qual o homem está necessariamente e sempre presente: como objeto e como sujeito” (Lukács, 1970: 209). Poder-se-ia dizer - na tentativa de compreender o encaminhamento analítico do autor - que enquanto os objetos do trabalho e do reflexo científico podem se constituir independentemente dos destinos individuais e são objetos que não se referem direta e imediatamente aos indivíduos, os objetos da arte não podem adquirir caminho próprio.
A questão para Lukács é o papel desempenhado pela esfera estética no destino dos homens. A partir dessa questão, sinaliza para a presença do problema da gênese, isto é, já se compreende o estético “como um modo de pôr humano, que é produto de determinadas necessidades constantemente presentes a partir de uma certa fase de desenvolvimento” (Lukács, 1970: 492-3). Esse aparecimento tardio da arte relaciona-se à necessidade de um “determinado nível de bem-estar material, de ócio” (Lukács, 1970: 494) para que o equilíbrio, a harmonia, a proporcionalidade apareçam como carência para os homens. Historicamente, tal situação só se torna possível a partir de um certo desenvolvimento da divisão do trabalho, o que não significa, segundo o escritor, que a necessidade social da arte esteja circunscrita a uma fase histórica particular, pois sua base “não é tal ou qual formação social concreta [...], mas a essência do homem em sociedade”. (Lukács, 1970: 494-5)
Ao tratar do caminho do sujeito em direção ao espelhamento estético, Lukács dedica um item específico para a questão da alienação (Entäusserung) e sua reapropriação pelo sujeito.
No mundo produzido pela atividade dos homens é que se fundamenta, para Lukács, a necessidade do estético, pois a vida se realiza em um mundo real e objetivo e ao mesmo tempo “adequado às mais profundas exigências do ser-homem (do gênero humano)” (Lukács, 1970: 512-3). Em Lukács, o ato estético originário se efetua na “entrega incondicional à realidade e no apaixonado desejo de transcendê-la”, sem, no entanto, impor um ideal, e sim buscando “destacar traços da realidade que em si lhe são imanentes, mas nos quais se faz visível a adequação da natureza ao homem e se superam a estranheza e a indiferença em relação ao ser humano, sem afetar por isso a objetividade natural e ainda menos querer aniquilá-la”. Isso porque a necessidade em questão é justamente “a de uma objetividade adequada ao homem” (Lukács, 1970: 513).
O ponto central para o autor, tanto no reflexo do trabalho quanto no ato estético, é a crescente adequação da realidade ao homem. No primeiro caso (o reflexo do trabalho), essa adequação é objetiva, material; no segundo, é subjetiva, espiritual, ainda que expressa também objetivamente.
A alienação na arte compreende, para Lukács, o caminho do sujeito ao mundo objetivo, às vezes até perder-se nele; a retroação ou reabsorção desta alienação significa ao contrário que toda objetividade assim nascida é totalmente co-penetrada da particular qualidade do sujeito” (Lukács, 1970: 522). Assim, o chegar a si mesmo pela alienação significa que a subjetividade do sujeito da arte é assumidamente constituída no contato com o mundo social e humano dos objetos e não a partir de si mesmo isoladamente. É essa entrega que marca, no entender de Lukács, a diferença entre a subjetividade na estética e na vida cotidiana, pois esta última referencia-se na imediatez do mundo sensível, enquanto a primeira se diferencia dela cada vez mais qualitativamente “ainda que sem suprimir a vinculação à personalidade, ao caráter subjetivo da subjetividade; mais ainda: a orientação do movimento diferenciador é contrária a essa eliminação, é um reforço, uma intensificação da subjetividade originariamente dada” (Lukács, 1970: 530).
Depois dessa breve incursão pela Estética lukacsiana, é impossível reler os trechos de Ontologia em que Lukács trata da distinção entre estranhamento e alienação (associando esta última categoria ao aspecto subjetivo de toda objetivação) sem levar em conta sua compreensão da Entäusserung na esfera da arte. Torna-se até mesmo compreensível aquela abordagem, porquanto ela seria a generalização, para os demais campos da produção humana, do reconhecimento da dimensão subjetiva presente em qualquer objeto social. De fato, durante a leitura de Estética, com frequência, interrogamo-nos se o que Lukács identifica como específico do campo estético não seria, na verdade, uma dimensão presente em toda objetivação humana, como é o caso da análise da interação entre objetividade e subjetividade como pertencente, segundo ele, “à essência objetiva das obras de arte” (Lukács, 1970: 190).
Em Para uma Ontologia do Ser Social, Lukács justifica a cisão operada por ele, entre objetivação e alienação, valendo-se do famoso trecho sobre o processo de trabalho do livro I de O capital[6]. A partir da citação, o escritor húngaro afirma que Marx “[...] descreveu com precisão esta duplicidade do ato do trabalho” e isto confortou a legitimidade de sua “operação de fixar mesmo sob o plano terminológico a existência destes dois lados no ato puramente unitário”. Estes dois lados são justamente o que ele havia enunciado como complexo unitário objetivação/alienação. Lukács mais uma vez reitera sua análise ao declarar que para “tornar ontologicamente mais perspicaz este estado de coisas descrito com precisão por Marx, me permiti no capítulo precedente [dedicado à análise do momento ideal] diferenciar um pouco sob o plano terminológico o ato laborativo.”. Ele o faz afirmando que “enquanto Marx descreveu com uma terminologia unitária, mesmo se variada”, ele cindiu “analiticamente em alienação e objetivação” (Lukács, 1981. v. II: 563-4).
Lukács identifica, em primeiro lugar, o momento ideal com intenção. Esta por si só nada realiza, mas precisa submeter-se ao objeto que quer transformar (isto é tão verdadeiro para o trabalho material quanto para aquele que visa agir sobre outros seres humanos). Este processo de desantropomorfização é possível porque a relação típica do homem com o mundo é a relação sujeito/objeto, na qual a consciência adquire certa distância da realidade. Com isso, a consciência realiza operações de análise e síntese que permitem que a imagem de um determinado objeto ganhe autonomia e possa ser utilizada em outra situação o que propicia a construção de abstrações que são, segundo Lukács, necessárias mesmo no trabalho mais primitivo. Finalmente, em todo esse processo não só o objeto material é produzido, mas também o próprio sujeito se forma e se transforma. Por isso, é necessário analisar tanto o ato de objetivação, quanto o que Lukács chama, em Ontologia, de alienação, ou seja, o momento subjetivo da objetivação. Ele inicia o tratamento do problema do seguinte modo:
 
[...] aqui vem à luz o momento basilar do ser social e devemos ocupar-nos detalhadamente do seu caráter geral: a objetivação do objeto e a alienação (Entäusserung) do sujeito, que formam como processo unitário a base da práxis e da teoria humanas. Este complexo de problemas assume um lugar central em uma parte da filosofia contemporânea, enquanto que é considerado fundamento do estranhamento (Entfremdung). Uma ligação e bastante íntima existe aí, indubitavelmente: o estranhamento pode originar-se somente da alienação; se a estrutura do ser não colocar esta última no centro, determinados tipos de estranhamento não podem manifestar-se em caso algum. Mas, quando se enfrenta este problema, nunca se deve esquecer que ontologicamente a origem do estranhamento na alienação não significa absolutamente que estes dois complexos sejam unívoca e condicionalmente um só: é verdade que determinadas formas de estranhamento podem nascer da alienação, mas esta última pode muito bem existir e operar sem produzir estranhamentos (Lukács, 1981. v. II: 397).
 
Refere-se, com essas palavras, a duas categorias distintas: 1) a alienação (Entäusserung) que realiza o sujeito assim como a objetivação realiza o objeto e 2) o estranhamento (Entfremdung), que só pode ter origem na alienação, mas “pode muito bem existir sem produzir estranhamentos” (Lukács, 1981. v. II: 397-8). Ou seja, a primeira é uma categoria necessária e a segunda contingente.
Nos últimos registros de Lukács conhecidos até agora, Prolegômenos para uma ontologia do ser social de 1971, o autor não volta a tratar da distinção entre a alienação e o estranhamento e menos ainda da aproximação entre alienação e objetivação. Ele analisa, agora, os estranhamentos enfatizando especialmente seu aspecto transformador, se é que se pode chamá-lo assim, da vida social.
Antes de acompanhar o tratamento de Lukács sobre o estranhamento (que ele desenvolve na segunda metade da terceira e penúltima parte dos Prolegômenos), uma questão desenvolvida em passagens anteriores (nas páginas iniciais da segunda parte) do texto pode contribuir para introduzir o tema na linha de abordagem assumida pelo autor em 1971. Nelas, preceitua sobre o surgimento do ser social que a “forma de ser qualitativamente nova assumida pela generidade na sociedade mostra-se logo de início por ser pluralista” (Lukács, 2010: 86), pois:
 
[...] enquanto os organismos singulares na natureza orgânica são diretamente exemplares de seus respectivos gêneros, o gênero humano tornado social se diferencia em unidades menores, aparentemente fechadas em si, de modo que o homem, mesmo atuando, em sua práxis, para além do gênero natural-mudo, mesmo obtendo enquanto ser genérico certa consciência dessa determinação do seu ser, é ao mesmo tempo forçado a aparecer como elo consciente de uma forma parcial menor do seu gênero. A generidade não-mais-muda do homem ancora, pois, a sua consciência de si não diretamente no gênero real, total da humanidade – que deveria ter se tornado ser sob forma de sociedade – mas nessas formas fenomênicas parciais primariamente imediatas (Lukács, 2010: 86-7).
 
Lukács acredita, então, que a consciência inicial do indivíduo não é de pertencimento ao gênero humano, mas a um grupo particular, que se coloca em oposição a outros grupos. Assim, essa fragmentação está na base do processo de socialização: “[...] a generidade não mais muda parece fragmentar-se, na práxis imediata, em partes independentes. E parece ontologicamente evidente que as formas de consciência imediatas da vida cotidiana são obrigadas a seguir amplamente essa desagregação” (Lukács, 2010: 87).
Para o autor, a superação do mutismo se realiza pela necessidade do ser social “[...] impor seu próprio processo de reprodução” e isso ocorreu efetivamente “com os meios de uma violência social” (Lukács, 2010: 242). A ruptura com o “[...] estreito vínculo natural com as fases mais iniciais”, a socialização do controle da natureza, em suma, o afastamento das barreiras naturais forçou, segundo o filósofo, o ser social a “revelar imediatamente sua profunda contradição interna, aquela do novo surgimento da generidade-não-mais-muda” (Lukács, 2010: 242).
Orientado por essa perspectiva, Lukács salienta que o desenvolvimento social é extraordinariamente irregular e se realiza a partir de motivos nada nobres. Nessa linha, já tratando do estranhamento, ele afirma que:        
 
O desenvolvimento da generidade-não-mais-muda cinde o próprio processo de desenvolvimento: seu lado objetivo só se pode realizar por uma violentação do subjetivo; o crescimento do trabalho além de mera possibilidade de reprodução (mais-trabalho no sentido mais amplo do termo) desenvolve no nível social a necessidade de arrancar dos verdadeiros produtores os frutos desse mais-trabalho (e por isso também as condições sociais de sua produção) forçando-os assim a um modo de trabalho em que se tornam posse de uma minoria  não trabalhadora. Com isso, em toda a subseqüente pré-história do gênero humano a relação do singular com o gênero entrou num estado de contradição insuperável, em que uma relação direta e geral do singular com o gênero (por isso também com sua própria generidade) se tornou impossível (Lukács, 2010: 242-3).
 
Essa passagem, tão importante quanto problemática, provoca várias perguntas: o que Lukács está chamando de “violentação do lado subjetivo”? Trata-se da ruptura em relação à natureza que ele identificou anteriormente como uma necessidade para que o ser social possa “impor seu próprio processo de reprodução”? Ou ele se refere à apropriação do mais-trabalho por um grupo que não trabalha? Considerado de um ou outra forma, ele identifica a relação de estranhamento mesmo em formas sociais pré-capitalistas, o que se confirma na sequência do texto:
 
Com a situação social que assim surgiu, caso pertença aos que se apossam do mais-trabalho, o singular é forçado a confirmar essa generidade objetivamente tão contraditória como sendo natural; ou, se pertencer aos expropriados, é forçado a rejeitá-lo como generidade, devido a essa contradição. (Os dois comportamentos assumem, nos mais diversas fases do desenvolvimento, as mais diversas formas de expressão ideológica, e só no capitalismo se torna possível uma formulação aproximadamente adequada do problema.) (Lukács, 2010: 243).
 
Assim compreendido, o estranhamento estaria na própria origem da socialização humana que se fez, concretamente, a partir da oposição entre os que trabalham e os que se apossam do mais-trabalho. Ele aparece, segundo Lukács, sob a forma de uma “contradição objetiva, insuperável e aparentemente insolúvel na relação fundamental do ser humano com seu caráter genérico não mais mudo” e assume numa contradição “falsamente articulada”, o caráter do “estranhamento do ser humano com relação a si mesmo”. Identifica, portanto, o estranhamento como um processo social que “surgiu objetivamente entre a generidade sociedade como tal e os membros a ela pertencentes” (Lukács, 2010: 243). Associa o surgimento desse fenômeno ao mais-trabalho, ao excedente. Segundo ele:  
 
[...] a escravidão, como primeira forma de desigualdade, fundada no terreno socioeconômico e imposta entre os membros da sociedade, tem sua base no fato de que o escravo está em condições de produzir mais do que é necessário para sua própria reprodução, e que por isso seu possuidor está socialmente na condição de dispor desse mais-trabalho para satisfazer suas próprias necessidades pessoais. Com isso, o estranhamento entra na vida. (Lukács, 2010: 246).
 
Relacionada ao excedente, a característica social se sobrepõe ao distanciamento em relação à natureza. Na definição dos estranhamentos o crescente afastamento das barreiras naturais expresso objetivamente no desenvolvimento das forças produtivas comparece novamente em Prolegômenos:
 
[...] as principais forças que operam espontaneamente são de caráter causal, e assim possuem em sua universalidade uma orientação que, em sua linha geral, eleva as forças produtivas, promove a sociabilidade etc., mas são em si totalmente indiferentes a todos os valores sociais, a todos os valores humanos. Assim, desenvolvem, de um lado, as forças humanas para uma ação cada vez mais objetiva em suas próprias condições de reprodução; de outro, desenvolvem ao mesmo tempo opressão, crueldade, logro etc., muitas vezes com intensidade crescente (Lukács, 2010: 247).
 
O aumento das forças produtivas aparece relacionado ao estímulo da sociabilidade, mas não diretamente à personalidade dos agentes sociais. Pelo contrário, Lukács afirma a total indiferença em relação aos valores humanos. De todo modo, reafirma que o estranhamento é o fenômeno social que mais nitidamente recai sobre a formação da personalidade:
 
Embora seja, no fundo, óbvia a permanência do estranhamento como  fenômeno social, e que, por isso mesmo, em última análise ele só possa ser superado por vias sociais, para a condução da vida de uma pessoa assume sempre o lugar de um problema central quanto à realização ou ao fracasso do desenvolvimento pleno da personalidade, quanto à superação ou à persistência do estranhamento na própria existência individual (Lukács, 2010: 244).
 
E exemplifica com situações corriqueiras nas quais revolucionários combatentes que perceberam o estranhamento no trabalho e lutaram coerentemente contra ele, mantiveram, em casa, uma postura de dominação em relação à mulher. Por isso mesmo, proclama que a “definitiva superação social do estranhamento [...] só pode ocorrer em atos de vida dos indivíduos, em seu cotidiano”. O que não significa que essa superação possa ser individual, porquanto o fenômeno do estranhamento é primariamente social. Para Lukács, tal situação
 
[...] apenas mostra como são complexamente entrelaçados também aqui, propriamente aqui, os momentos de estranhamento que atuam no plano da pessoa singular e no plano da sociedade. Precisamente na medida em que despertam na superfície imediata a aparência de movimentos – relativamente – independentes, estão, no plano ontológico, inseparavelmente ligados à respectiva situação do desenvolvimento social (Lukács, 2010: 244).
 
Destaca o fato de que no curso do desenvolvimento das forças humanas, desenvolvem-se também formas de violência social, na medida em que, com a produção do excedente e sua apropriação pelos indivíduos não envolvidos na atividade laborativa, “os interesses vitais imediatos em todas as sociedades tornam-se antagonicamente contraditórios e por isso só reguláveis através da violência”. E mais, chega a afirmar que se “reconhecemos a violência como momento indispensável em toda sociedade razoavelmente desenvolvida, é importante considerar também esse problema como momento ontológico da sociabilidade, e não o distorcer por nenhuma posição valorativa de cunho idealista - em direção positiva ou negativa” (Lukács, 2010: 247-8). O autor compreende aqui o estranhamento também em seu aspecto dinamizador.
Lukács adverte contra a posição de se negar a violência como atitude verdadeiramente humana ao explicitar que
 
[...] nenhum passo teria sido possível, desde que saímos da esfera biológica animal, nenhuma socialização, nenhuma integração do gênero humano etc. etc., sem violência. Mas de outro lado não devemos ver na violência, mesmo em suas formas mais brutais, uma simples herança do estado pré-humano, algo que poderia ser “humanamente” superado de maneira moral abstrata. É preciso termos sempre consciência de que – como anteriormente mencionamos em outros contextos – nenhuma forma prática do ser social, portanto nenhum momento de sua autorreprodução (seja economia, superestrutura, como Estado, Direito etc.) poderia surgir sem violência, nem servir à reprodução humana (Lukács, 2010: 248).
 
Para o autor, portanto
 
[...] a “linguagem” do gênero, que substitui historicamente a seu mutismo, não pode dispensar, em absoluto, as mais diversas formas de violência, de coerção etc. A história do gênero mostra que o mutismo pré-humano, a constituição do ser pré-humano, insuperavelmente espontânea, de funcionamento puramente biológico,  estava e está hoje em condições de condições de se articular conscientemente apenas desse modo antagônico carregado de violência. O abandono do estado de mudez, quando a consciência cessa de ser mero epifenômeno biológico, é igualmente um processo causal que pode possuir, em sua irreversibilidade, uma direção geral, mas nenhum alvo, por isso nenhum planejamento, nenhuma orientação finalista. O modo como sua espontaneidade causal – num nível ontológico totalmente novo – atua ontogenética ou filogeneticamente sobre as novas relações entre o exemplar singular e o gênero, determina as forças operantes no autodesenvolvimento da humanidade (Lukács, 2010: 248).
 
O estranhamento aparece, assim, como o fenômeno social cujo enraizamento se encontra no fato de a consciência do gênero mover-se defendendo a si mesma por meio da violência. Para Lukács, então, o fazer-se humano do homem é, inicialmente, uma construção insuperavelmente espontânea, de fundamento puramente biológico que desde as fases mais remotas só pode se realizar articulando-se de modo antagonístico, o que significa que para o autor o estranhamento esteve sempre presente no processo de constituição do humano. Por isso mesmo, conclui que
 
[...] no fenômeno do estranhamento se trata sobretudo de algo ontológico. De maneira primária, ele pertence ao próprio ser social, tanto em sua constituição objetiva quanto em seus efeitos sobre os exemplares singulares do gênero. O fato de que ele muitas vezes se manifeste sob formas ideológicas, nada muda esse seu traço fundamental, pois a ideologia no ser social é a forma geral para a conscientização e combate dos conflitos que surgem no plano econômico-social. Por isso não é, em absoluto, um engano ver na forma dupla das reações ideológicas ao estranhamento um sinal de que o conflito manifesto neste, aponta, na respectiva generidade mesma e nos seus efeitos, sobre o ser de seus exemplares singulares, para uma duplicidade nas bases objetivas de todo o complexo de problemas (Lukács, 2010: 253).
 
Lukács reconhece que objetivamente as formas de estranhamento têm sido substituídas por outras – mais amplas, mais socializadas -, e que também no “lado oposto, a luta contra o estranhamento acabou por sofrer mudanças essenciais” (Lukács, 2010: 284). Logo, mantém-se fiel ao que a história tem demonstrado, sem abrir mão de projetar outras possibilidades para o futuro, buscando, todavia, distanciar-se de qualquer traço utópico.
 
Alienação/estranhamento nos Grundrisse
Comumente, o fato de o trabalhador vender sua força de trabalho é visto como um aspecto da degradação humana imposta pela forma social capitalista. E este é um dado inegável. Esquece-se, no entanto, que é graças a esse distanciamento do trabalhador em relação às suas próprias habilidades físicas e espirituais que ele deixa de ser escravo. O trecho dos Grundrisse, reproduzido abaixo, explicita justamente esse aspecto específico da formação social atual:
 
[...] (como escravo, o trabalhador tem valor de troca, um valor; como trabalhador livre, não tem nenhum valor; só tem valor a disposição sobre seu trabalho, obtida por meio da troca com ele. O trabalhador se defronta com o capitalista não como valor de troca, mas é o capitalista que se defronta com ele como valor de troca. A sua ausência de valor e sua desvalorização são o pressuposto do capital e a condição do trabalho livre de modo geral. Liguet a considera um retrocesso; ele esquece que, desse modo, o trabalhador é formalmente posto como pessoa que ainda é algo por si fora [äusser] de seu trabalho e que só aliena [veräussert] sua expressão vital [Lebensäusserung] como meio para sua própria vida. Sempre que o trabalhador enquanto tal tem valor de troca, o capital industrial enquanto tal não pode existir e, portanto, de forma alguma pode existir o capital desenvolvio. Diante do capital desenvolvido, o trabalho tem de estar como puro valor de uso que é oferecido por seu dono como mercadoria pelo capital, por seu valor de troca [a moeda], que, aliás, só devém efetiva na mão do trabalhador em sua determinação de meio de troca universal; caso contrario, desaparece). (MARX, 2011,p. 226).
 
Para afirmar sua condição de proprietário livre de sua capacidade de trabalho, o “prosseguimento dessa relação exige que o proprietário da força de trabalho só a venda por determinado tempo, pois, se a vende em bloco, de uma vez por todas, então ele vende a si mesmo, transforma-se de homem livre em um escravo, de possuidor de mercadoria em uma mercadoria” (MARX, 1983: 139), o que significaria a eliminação desse elemento específico central da produção capitalista: a venda da força de trabalho como condição de criação de valor e mais valor. A relação entre possuidor de dinheiro e possuidor da força de trabalho implica, portanto, em primeiro lugar, uma relação específica do possuidor de força de trabalho consigo mesmo, visto que:
 
Como pessoa ele tem de se relacionar com sua força de trabalho como sua propriedade e, portanto, sua própria mercadoria, e isso ele só pode à medida que ele a coloca à disposição do comprador apenas provisoriamente, por um prazo de tempo determinado, deixando-a ao consumo, portanto, sem renunciar à sua propriedade sobre ela por meio de sua alienação (Veräusserung). (MARX, 1983: 139).
 
O termo Veräusserung, traduzido no trecho acima por alienação, tem o significado corrente de venda, mais especificamente, penhora, alienação em troca de algo com possibilidade de resgate. O uso dessa expressão, portanto, não é aleatório, pois designa apropriadamente um tipo de alienação na qual o resgate está presente enquanto possibilidade. Isso porque
 
[...] o que o trabalhador livre vende é sempre só uma medida determinada, particular da manifestação de energia; acima de toda manifestação particular está a capacidade de trabalho [Kraftäusserung] como totalidade. O trabalhador vende manifestação de força particular a um capitalista particular, com quem se defronta como indivíduo independente. É claro que essa não é sua relação com a existência do capital como capital, i.e., com a classe capitalista (MARX, 2011: 381) .
 
Na realidade, o trabalhador mantém com o capitalista uma relação de dependência, de subordinação. Não obstante, diz o autor:
 
[...] desse modo deixa-se, no que diz respeito à pessoa singular, efetiva, um amplo espaço de escolha, de arbítrio e, em conseqüência, de liberdade formal. Na relação escravista, o trabalhador pertence ao proprietário singular, particular, de quem é máquina de trabalho. Como totalidade de manifestação de energia (Kraftäusserung), como capacidade de trabalho, o trabalhador é uma coisa pertencente a outrem e por conseguinte, não se comporta como sujeito em relação à sua manifestação de energia particular ou à ação viva do trabalho. Na relação de servidão, o trabalhador aparece como momento da própria propriedade fundiária, é acessório da terra,exatamente como os animais de tração. Na relação escravista, o trabalhador nada mais é do que máquina de trabalho viva que, por isso, tem valor para outros ou mais precisamente é um valor. Em sua própria totalidade, a capacidade de trabalho aparece diante do trabalhador livre como sua propriedade, como um de seus momentos sobre o qual ele exerce o domínio como sujeito e que ele conserva ao alienar (veräussert) (MARX, 2011: 381-2).
 
O trabalho aparece, assim, como um momento do trabalhador na vida cotidiana e não como sua única determinação. No trabalho livre isso é possível porque na forma social do trabalho assalariado o trabalhador não está preso à sua condição de produtor em todos os momentos de sua existência. Apesar de ser uma liberdade muito mais formal do que real, sem dúvida, coloca a pessoa do trabalhador numa posição distinta daquela da servidão e da escravidão. O uso do termo veräussert, no final da citação, é significativo, já que não designa uma venda qualquer, na qual o objeto vendido passa a ser propriedade do comprador. Ao contrário, refere-se a uma alienação com possibilidade de retorno, como uma penhora, algo que é cedido temporariamente, mas que retorna ao dono. Assim, mesmo que se trate de “aparência enganosa” (MARX, 2011: 381), a liberdade jurídica significa também uma nova posição social do produtor.
Também nos Manuscritos 1861-63 (2010), Marx considera a formação das individualidades tanto do trabalhador como dos capitalistas:
 
Consideremos, então, a capacidade de trabalho mesma em sua oposição à mercadoria que a ela se opõe na forma do dinheiro, ou em oposição ao trabalho objetivado, ao valor personificado no possuidor do dinheiro ou capitalista e que nessa pessoa se tornou querer próprio, ser para si, fim em si mesmo consciente. Por um lado a capacidade de trabalho aparece como pobreza absoluta na medida em que o mundo inteiro da riqueza material, assim como sua forma universal, o valor de troca, a ela se opõe como mercadoria estranha e como dinheiro estranho, mas o trabalhador mesmo é a mera possibilidade de trabalhar, presente e encerrada em sua corporeidade viva, uma possibilidade que, entretanto, é absolutamente separada de todas as condições objetivas de sua realização, portanto de sua própria realização e que existe em oposição autônomas a elas, delas despojada. (MARX, 2010: 52).
 
No caso do trabalhador, portanto, a troca envolve diretamente a si próprio, sua corporeidade física e intelectual, enquanto para o capitalista trata-se de alienar algo separado e distinto dele, ainda que ele encarne o objetivo do valor.
O detalhamento das características da relação de troca entre capital e trabalho mostra, pouco a pouco, de forma cada vez mais clara, que igualdade e liberdade formais não se materializam da mesma maneira e nas mesmas condições em um pólo e outro do processo de troca e assim Marx (2011: 181) demonstra “que a propriedade privada do produto do próprio trabalho é idêntica à separação entre trabalho e propriedade; de modo que trabalho = criará propriedade alheia (fremdes) e propriedade = comandará trabalho alheio (fremde)[7]”. O aspecto mais evidente desse divórcio são os objetivos de cada um dos pólos no processo de troca: o de um, sobreviver e do outro, valorizar a riqueza exterior.
Mas,
 
Como troca seu valor de uso pela forma universal da riqueza, o trabalhador devém coparticipante no desfrute da riqueza universal até o limite de seu equivalente – um limite quantitativo que, aliás, vira limite qualitativo, como em qualquer troca. Mas ele não está vinculado a objetos particulares nem a uma maneira de satisfação particular. Ele não está excluído qualitativamente do circulo de seus prazeres, mas só quantitativamente. Isso o diferencia do escravo, do servo etc. (MARX, 2011: 222).
 
Na sociabilidade do equivalente, por conseguinte, o acesso à riqueza geral é franqueado a todos. No entanto, cada um irá desfrutá-la nos limites quantitativos de suas possibilidades, mas sem definição a priori da qualidade desse desfrute. A definição desses limites é, antes de mais nada, a necessidade da reprodução biológica, e mesmo esta, como Marx afirma, tem a possibilidade de ser satisfeita a partir da escolha dos indivíduos e não como na servidão e na escravidão. Essa característica tem consequências diretas para o cotidiano dos trabalhadores que com o sistema de crédito, podem ampliar os limites quantitativos do desfrute e, com ele, modificar também seu desfrute qualitativamente.
Vimos, portanto, que, ao receber seu equivalente na forma de dinheiro, o trabalhador participa da riqueza geral e “[...] e encontra-se nessa troca como igual frente ao capitalista, como qualquer outro participante da troca; ao menos de acordo com a aparência” (MARX, 2011: 222). Porém essa aparência de igualdade se dissipa tão logo as condições de troca se esclarecem.
De todo modo, o aumento do consumo significa aumento das necessidades tanto materiais quanto espirituais. Estas se materializam em desenvolvimento de novas habilidades, busca de convívio com pessoas de círculos diferentes e, para usufruir dessas novas possibilidades, torna-se necessário mais tempo livre. E é justamente tempo livre o que se ganha com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, pois “se requer menos trabalho imediato para criar um produto maior”. Mas no modo capitalista de produção isso ocorre de forma tal “que as condições objetivas do trabalho assumem uma autonomia cada vez mais colossal, que se apresenta por sua própria extensão em relação ao trabalho vivo, e de tal maneira que a riqueza social se defronta com o trabalho como poder estranho e dominador em proporções cada vez mais poderosas” (Marx, 2011: 705). É precisamente esse processo que Marx chama de estranhamento, pois nele:
 
A tônica não recai sobre o ser-objetivado (Vergegenständlichtsein), mas sobre o ser-estranhado, ser-alienado, ser-venalizado (Entfemdet-, Entäussert, Veräussertsein) – o não-pertencer-ao-trabalhador, mas às condições de produção personificadas, i.e. ao capital, o enorme poder objetivado que o próprio trabalho social contrapôs a si mesmo como um de seus momentos. Na medida em que, do ponto de vista do capital e do trabalho assalariado, a geração desse corpo objetivo da atividade se dá em oposição à capacidade de trabalho imediata – esse processo de objetivação aparece ‘de fato’ como processo de alienação (Entäusserung), do ponto de vista do trabalho, ou de apropriação do trabalho alheio (fremd) do ponto de vista do capital -, tal distorção ou inversão é efetiva e não simplesmente imaginada, existente simplesmente na representação de capitalistas e trabalhadores. Mas, evidentemente, esse processo de inversão é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento de forcas produtivas a partir de um determinado ponto de partida histórico, ou base históricas, e de maneira nenhuma uma necessidade absoluta da produção; ao contrario, é uma necessidade evanescente, e o resultado e o fim (imanente) desse processo é abolir essa própria base, assim como essa forma do processo. Os economistas burgueses estão tão encerrados nas representações de um determinado nível de desenvolvimento histórico da sociedade que a necessidade de objetivação das forças produtivas do trabalho aparece-lhes inseparável da necessidade do estranhamento dessas forças frente ao trabalho vivo. Todavia com a superação do caráter imediato do trabalho vivo, como caráter meramente singular, ou como universal unicamente interior ou exterior, e posta a atividade dos indivíduos como atividade imediatamente universal ou social, tais momentos objetivos da produção são despojados dessa forma do estranhamento; como isso, eles são postos como propriedade, como o corpo social orgânico, em que os indivíduos se reproduzem como singulares, mas como singulares sociais. (MARX, 2011: 705-6)[8].
 
A longa citação não deixa dúvidas quanto ao caráter da alienação como atividade que se realiza por meio da venda. Entretanto, Marx avança em relação aos Manuscritos de 1844 ao identificar que, em situações históricas específicas, o processo de objetivação aparece, do ponto de vista do trabalho, de fato, como alienação. Deixa claro, desse modo, que se trata de uma aparência e não de algo inerente ao processo de objetivação. Delineia, ainda, mais um traço específico do movimento – o que pode ser importante para compreensão da especificidade de Entäusserung e Entfremdung nos Grundrisse: este processo manifesta-se de modo distinto para o trabalho e para o capital. Para o primeiro, aparece como alienação (Entäusserung) e para o segundo, como apropriação do trabalho estranho (fremd). Assim, mais uma vez, como nos Manuscritos de 1844, a alienação (Entäusserung) forma um complexo unitário com o estranhamento (Entfremdung) e com a venda (Veräusserung) e não com a objetivação como sugere Lukács na Ontologia do ser social. Assim, com os resultados da análise dos Manuscritos de 1844 e dos Grundrisse pode-se afirmar que a tese lukacsiana da unidade entre objetivação e alienação, em Marx, dificilmente poderá ser confirmada sem o apoio de interpretações exteriores à própria argumentação marxiana. Com os Prolegômenos de 1971, a ausência do tratamento da unidade alienação/objetivação e o caráter com que são tratados os estranhamentos indicam uma aproximação aos termos de Marx sobre a questão.
Nos textos de Marx, o par categorial alienação/estranhamento aparece sempre vinculado aos aspectos específicos da atividade na forma capitalista e as duas categorias se apresentam como complementares, ainda que distintas. Enquanto alienação designa uma relação de separação, o estranhamento aponta para uma situação de oposição. Lukács, no decorrer de suas reflexões foi, pouco a pouco, como vimos, buscando distinguir o significado das duas categorias, o que o levou, na Ontologia, a considerar a alienação um aspecto positivo e ineliminável da produção e os estranhamentos como fenômenos específicos da forma capitalista a serem superados. Nos Prolegômenos, ele se atém aos estranhamentos, tratando-os como fenômenos que apresentam de forma distinta em contextos diferentes. A leitura de um e outro autor articuladas aos aspectos mais recentes do desenvolvimento de força produtiva são indicativos para a reflexão de novos rumos para as reivindicações da perspectiva do trabalho
 
 
Referências bibliográficas
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Hegel, F, A Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. Petrópolis: Vozes, 1992.
Lukács, George, Estética. Trad. de Anna Marietti Solmi. Torino: Giulio Einaudi editore s.p.a., 1970.
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______,Prolegomeni all’ontologia dell’essere sociale. Questioni di principio di          um’ontologia oggi divenuta possibile. Trad. de Alberto Scarponi. Milão: Guerini e Associati, 1990.
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Marx, Karl,  Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, Berlim: Dietz Verlag, 1953.
______, O capital I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
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______, Grundrisse. Trad. de Mario Duayer, Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman. São Paulo: Boitempo editorial, 2011.
Mézsáros, István, Marx:a teoria da alienação. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1981.
Netto, J.Paulo, Capitalismo e Reificação. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1981.
Vieira, Zaira, Atividade sensível e emancipação humana nos Grundrisse de Karl Marx.Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2004. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de Minas Gerais.


[1] Cf. Hegel, 1992.
[2] Trata-se de um resumo do livro O Jovem Hegel, concluído por Lukács em 1938 e publicado em 1948. No Brasil, a conferência foi publicada, com outros textos, em 2007, pela editora da UFRJ.
[3]Cf. Lukács, 1981a, v. 1: 77. No capítulo III do livro O Jovem Hegel, ele já havia feito a mesma afirmação sob a inspiração de Lênin. Lukács chega a reproduzir um paralelo entre Hegel e a dialética materialista, elaborado pelo revolucionário russo.
[4]Cf. Lukács, 1973: 854. Utilizei a edição francesa (1981a) no corpo do texto e alguns trechos foram cotejados com a edição alemã (1973).
[5] Sobre a exigência de conhecer a si mesmo, Lukács cita Goethe no livro publicado por Eckermann, Conversações com Goethe: “Sempre é dito e repetido que há que intentar conhecer-se a si mesmo. Curiosa exigência, que nada tem satisfeito até agora e que propriamente não cumprirá nada. O homem está orientado, com todos os seus sentidos e aspirações, ao externo, ao mundo em torno de si, e está bastante ocupado no trabalho de conhecer esse mundo e pô-lo a seu serviço na medida em que o necessita para seus fins. Ele conhece a si mesmo só quando goza ou quando sofre, e só a dor e a alegria lhe informam sobre si mesmo, dizem-lhe o que deve buscar ou evitar” (Goethe Apud Lukács, 1970: 202).
 [6] Marx, Karl. O capital. São Paulo: Abril cultural, 1983: 149-150. “No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade”.
[7]  Cf. Marx, 1953: 148.
[8] Marx, 1953: 721. Zaira Vieira (2004: 95) reproduz esta mesma citação, apontando para a possibilidade da emancipação humana, enquanto Antônio Alves (2001: 285) a utiliza justamente para tornar explícito que “objetivação e estranhamento não são necessariamente correlatos”. Este trecho foi também reproduzido por Mézsáros (1981: 203) não só para salientar “como estão errados os que afirmam ter a ‘alienação’ desaparecido das obras posteriores de Marx, mas também que sua abordagem desses discutidos problemas é essencialmente a mesma dos Manuscritos de 1844.” .Netto (1981:  67) mais uma vez concorda com Mézsáros, quando afirma: "O que vai surgir, a partir de 1857-1858, é justamente aquilo que assinala a distinção entre a Miséria da Filosofia e os Manuscritos de 44: a concretização histórica na reflexão de Marx. A teoria da alienação perderá qualquer traço de generalidade especulativa - não será uma nova teoria, mas uma concepção que só adquire instrumentalidade quando extraída de análises históricas determinadas. Na verdade, a teoria da alienação é qualitativamente a mesma; é a sua função que se transforma quando Marx completa a superação filosófica em 1857-1858. Em síntese: quando a crítica da economia política é situada por Marx como a operação teórica central e levada a cabo com radicalidade, dá-se a concretização teórica da concepção da alienação".

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