Ellen Tristão
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Alienação em Marx enquanto auto-alienação
A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada.
Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução, Karl Marx
O desafio que Karl Marx coloca em 1843, de “desmascarar a auto-alienação humana em suas formas não sagradas” recebe desenvolvimento nos Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844. Esta obra traz as elaborações de Marx acerca da alienação e considerações críticas à economia política clássica e a Hegel. Da crítica de Marx a Hegel, um momento é-nos particularmente interessante, trata-se da concepção hegeliana de trabalho. Para Hegel o trabalho é tomado como a essência do homem, pois é através dele que o homem faz a si próprio. Esta é uma grande contribuição sua, como afirma Marx:
A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu resultado final – a dialética, a negatividade enquanto princípio motor e gerador – é que Hegel [...] compreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como resultado de seu próprio trabalho. (MARX, 2004, p. 123).
Hegel o faz, porém, através de sua filosofia idealista, a qual concebe o homem como ser abstrato, invertendo sujeito e predicado, de forma que: “O homem efetivo e a natureza efetiva tornam-se meros predicados, símbolos desse homem não efetivo oculto [o espírito absoluto], e dessa natureza inefetiva” (MARX, 2004, p. 133). Nos Manuscritos Marx irá resgatar a idéia do trabalho na autoconstrução do homem, porém, ao contrário de Hegel, sob roupagem materialista, mostrando o homem como sujeito de sua própria história, enquanto ser genérico, que assim se confirma ao transformar a natureza.
O engendrar prático de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica é a prova do homem enquanto ser genérico consciente, isto é, um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona] consigo enquanto ser genérico. É verdade que também o animal produz. Constrói para si um ninho, habitações, como a abelha, castor, formiga etc. No entanto, produz apenas aquilo de que necessita imediatamente para si ou sua cria; produz unilateral[mente], enquanto o homem produz universal[mente]; [...] Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo [é que] o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como sua obra e a sua efetividade (Wirklichkeit). O objeto do trabalho é portanto a objetivação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele. (MARX, 2004, p. 85)
De forma sintética a atividade prática do homem lhe permite: a) relacionar-se com o gênero (enquanto sua própria essência [histórico-social]); b) relacionar-se consigo mesmo enquanto ser genérico; c) reconhecer-se em seu próprio objeto, como obra sua, como sua efetividade; e d) o que é conseqüência disto, contemplar-se a si mesmo num mundo criado por ele. A atividade humana consciente, o trabalho, aparece aqui em sua forma universal, positiva, enquanto objetivação da vida genérica do homem no mundo.
A atividade humana é objetivação da vida genérica do homem em sua universalidade, no entanto, a particularidade da sociedade capitalista apresenta o trabalho como trabalho alienado. Marx desenvolve essa idéia mediante uma crítica, nos Manuscritos, à economia política clássica, aí representada principalmente por Adam Smith. A economia política clássica apreende a atividade, o trabalho, como “[...] algo concreto, pertencente às manifestações palpáveis da vida real [...]” embora “[...] reduzida em sua concepção a uma esfera particular: a da manufatura e do comércio [...]” (MÉSZÁROS, 2006, p. 85). É o trabalho posto como atividade concreta, mas pertencente à particularidade capitalista, que será analisado por Marx como trabalho alienado, em contraposição ao trabalho que é objetivação da vida genérica.
Na particularidade capitalista a atividade produtiva do homem só se manifesta enquanto trabalho assalariado. Isto implica que o objeto de produção e o produto do trabalho (trabalho que se objetivou) não pertencem ao trabalhador, lhe são retirados pelo capitalista, o qual detém a propriedade privada dos meios de produção e, logo, dos meios de vida do trabalhador. Seu produto lhe aparece então como estranho: “[...] o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor” (MARX, 2004, 80). Segundo José Paulo Netto (1981) é exatamente essa relação entre o trabalhador e seu objeto que consiste a “matriz da alienação”. A objetivação torna-se alienação, estranhamento
[1]. Uma vez que a objetivação aparece na particularidade capitalista como alienação, a atividade prática do homem, enquanto trabalho estranhado, alienado, traz conseqüências para sua vida genérica. Ao afirmar a atividade prática como objetivação da vida genérica do homem, Marx complementa: “Conseqüentemente, quando arranca (entreisst) do homem o objeto de sua produção, o trabalho estranhado arranca-lhe sua vida genérica, sua efetiva objetividade genérica (wirkliche Gattungsgegenständlichkeit) e transforma a sua vantagem em relação ao animal na desvantagem de lhe ser tirado o seu corpo inorgânico, a natureza” (MARX, 2004, p. 85). István Mészáros em seu livro A teoria da alienação em Marx nos auxilia na compreensão da alienação e sua implicação para o homem enquanto ser genérico. Para esse autor a alienação apresenta as quatro características, a seguir:
a) o homem está alienado da natureza;
b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade);
c) de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie humana);
d) o homem está alienado do homem. (MÉSZÁROS, 2006, p. 20)
O homem é um “ser natural” e como tal é dependente dos objetos que existem fora dele para saciar suas carências, para manter sua vida, assim como os animais e as plantas. A natureza é então seu corpo inorgânico, seu objeto exterior, do qual precisa para sobreviver. Na sociedade capitalista seu produto, ao invés de saciar suas carências, não lhe pertence, pertence a outro, e se põe diante dele como objeto estranho, alheio, no qual não se reconhece e com o qual não se identifica, de forma que o “homem está alienado da natureza”.
O ato de produzir, a atividade prática é a objetivação da vida genérica. No entanto, o trabalho aparece na sociedade capitalista como trabalho assalariado, trabalho que pertence a outro. Ao trabalhador ele não é mais a efetivação de sua vida, mas apenas um meio para sobreviver, algo que vende para poder suprir suas carências. Sua atividade lhe é estranha, de forma que nela o trabalhador não se reconhece, pois tem seu trabalho como “trabalho forçado”, que satisfaz a necessidade do outro e não a sua. O trabalhador mesmo parece pertencer a outro durante seu trabalho. No entendimento dessa forma de estranhamento, do homem em relação a si mesmo, à sua atividade, citamos:
O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Äusserlichkeit) do trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de outro, como se [o trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. [...] Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha, não pertencente a ele, a atividade da miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é a vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si (Selbstentfremdung), tal qual acima o estranhamento da coisa. (MARX, 2004, p. 83)
Como conseqüências do homem não se reconhecer em sua atividade, temos que o homem não reconhece a si mesmo nela, e não pode mais efetivar-se, fazer-se a si mesmo através dela, dessa forma o homem está alienado de si.
Da mesma maneira, a riqueza produzida não pertence ao trabalhador, é objeto de fruição de outro; sua atividade, enquanto atividade pertencente a outro, deixa de ser a manifestação da essência humana, para tornar-se meio de vida, e a vida do trabalhador se reduz a suas funções animais (comer, beber, procriar) únicas funções nas quais o homem se sente livre, pertencente a si mesmo (MARX, 2004, p. 83). Tem-se daí a terceira característica apontada por Mészáros, o homem estranhado de sua vida genérica, pois “no modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem”, mas na sociedade capitalista “a vida mesma aparece só como meio de vida” (MARX, 2004, p. 84).
Das considerações acima Marx elabora a reflexão que cumpre o desafio que havia proposto à filosofia, a de revelar a auto-alienação humana não-sagrada. A doutrina materialista de Feuerbach colocava a religião como criação humana, como auto-alienação religiosa, à qual o homem se submetia. Marx (2004, p. 106) nos coloca que o estranhamento religioso se manifesta apenas na consciência, enquanto o estranhamento econômico se manifesta na vida efetiva. Como posto, o produto do trabalho humano e a própria atividade são estranhas ao trabalhador, não lhe pertencem. Não lhe pertencem, pois pertencem a outro, e quem é esse outro? Não é um ser divino, mas o próprio homem que a ele se contrapõe. Resulta daí a quarta caracterização de Mészáros acerca da alienação: o homem alienado do próprio homem, do outro, no qual não se reconhece. Mas o principal resultado dessa consideração é que a alienação, o estranhamento, aparece como auto-alienação, auto-estranhamento humano, de forma explícita: “Todo auto-estranhamento (Selbstentfremdung) do homem de si e da natureza aparece na relação que ele outorga a si e à natureza para com os outros que são diferenciados de si mesmos. [...] Através do trabalho estranhado o homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação na qual outros homens estão para a sua produção e o seu produto, e a relação na qual ele está para com estes outros homens” (MARX, 2004, p. 87). A alienação como auto-alienação do homem, resultado do trabalho estranhado, é engendrada na prática pelos próprios homens. Como ela incide na vida efetiva e não na consciência (como a auto-alienação religiosa posta por Feuerbach), a superação, a transcendência
[2] da auto-alienação deve ser também uma saída prática e não teórica: “[...] Marx funda a alternativa para situar a alienação como fenômeno e problema prático-social” (NETTO, 1981, p. 60).
Como implicação dessas considerações, Marx percebe que essa forma de relação do trabalhador com o trabalho também engendra a relação capitalista, uma vez que engendra a relação do alguém estranho (senhor do trabalho), com este trabalho e conclui: “A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo” (MARX, 2004, p. 87). Ao reconhecer a propriedade privada como meio e conseqüência do trabalho estranhado, com o qual estabelece uma relação de reciprocidade, Marx se contrapõe a economia política clássica, a qual naturaliza a propriedade privada, como fato dado e acabado. Mas não só, a partir destas considerações Marx apresenta o comunismo como superação positiva da propriedade privada e do estranhamento. Para Marx, o comunismo é entendido como “[...] supra-sunção (Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, e por isso enquanto apropriação efetiva da essência humana pelo e para o homem” (MARX, 2004, p. 105). Por compreender o caráter histórico e material da auto-alienação, Marx pode vislumbrar sua superação como possibilidade efetiva.
[3]
No entanto, as elaborações dos Manuscritos ainda não permitiam uma compreensão mais concreta da especificidade da sociedade capitalista, a qual é essencialmente social, mas aparece para os homens como atomizada. A partir de 1857, com o aprofundamento de seus estudos econômicos, Marx irá desenvolver suas elaborações sobre fetichismo, que se desenvolverão a partir da Introdução à crítica da economia política, e posteriormente em Para a crítica da economia política (1859), e nos três livros de O capital, publicados a partir de 1867. O fetichismo repõe a problemática da alienação, mas de forma mais concreta, centrada no desenvolvimento histórico-econômico específico da sociedade capitalista. Essas considerações são-nos colocadas por Netto, como apontamos a seguir:
O que distingue e impostação marxiana no enfoque da alienação, em 1844, da tematização ulterior do fetichismo é a concretização histórico-social a que Marx submete o objeto de sua investigação. [...] os seus parâmetros, propicia-os a análise determinada das relações sociais de produção que os homens estabelecem em circunstâncias precisas. Por isto mesmo, as formulações sobre a problemática do fetichismo apresentam determinações histórico-econômicas que falecem no trato da alienação: referem-se a um fenômeno peculiar e agarram a sua especificidade [...]; o que elas denotam é a expressão característica da alienação típica engendrada pelo capitalismo, a reificação. (NETTO, 1981, p. 61)
A forma de alienação específica da sociedade capitalista é a reificação, que surge quando o fetichismo se universaliza e as relações sociais não só aparecem como associais (característica do fetichismo), mas são também mediadas por coisas, são reificadas. Isso significa que a problemática da reificação e do fetichismo não supera a alienação, mas, ao contrário, a pressupõe. A alienação está presente em todas as sociedades em que há propriedade privada, de forma que os indivíduos têm sua atividade, objeto e motivações como estranhos, alheios, já o fetichismo e a reificação são específicos da sociedade capitalista, devido ao caráter mercantil desta, no qual as relações sociais só se manifestam através do processo de troca das mercadorias. Netto conclui: “O fetichismo implica a alienação, realiza uma alienação determinada e não opera compulsoriamente a evicção das formas alienadas mais arcaicas. O que ele instaura, entretanto, é uma forma nova e inédita que a alienação adquire na sociedade burguesa constituída [...]” (NETTO, 1981, p. 75). Da reificação e fetichismo trataremos a seguir.
Tratar de reificação é um grande desafio, para tal tarefa nos reteremos basicamente aos escritos de O capital: crítica da economia política, obra de maturidade de Marx, apontando apenas alguns elementos para a compreensão dessa natureza da sociedade capitalista. Marx inicia o livro, assim como, outrora, já iniciara a obra Para a crítica da Economia Política, de 1859, afirmando que: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 1988, p. 45). Como forma elementar do modo de produção capitalista, a mercadoria carrega consigo a chave de entendimento dos fundamentos que regem esse modo de produção. Lukács (2003) afirma: “[...] não há problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em última análise, não se reporte a essa questão e cuja solução não tenha de ser buscada na solução do enigma da estrutura da mercadoria” (p. 193). Compreender o enigma que se esconde por trás da mercadoria é a chave para a compreensão da estrutura do modo de produção capitalista. Para essa análise, recorrer ao quarto item do capítulo primeiro de O capital é lugar comum para a grande maioria dos marxismos. Neste item intitulado “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo” temos a seguinte afirmação:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 1988, p. 71).
O fetichismo da mercadoria, que nos apresenta as relações sociais reificadas, não é produto da consciência, ou fenômeno psicológico. Antes de mais nada, a reificação é a base sobre a qual as relações sociais mercantis se manifestam. A relação social assume a “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”, pois, na sociedade mercantil, as relações entre as pessoas são mediadas pelo produto de seu trabalho, pelas mercadorias.
A mercadoria carrega, em si, uma unidade entre valor e valor de uso e só se coloca sob dois pressupostos, a saber: a divisão social do trabalho e a propriedade privada, ambos historicamente constituídos. Com a divisão social do trabalho desenvolvida, a propriedade privada confere a cada produtor a independência formal de escolher o quê, como e quanto produzir. Mas ao mesmo tempo, sua inserção na divisão social do trabalho o coloca na interdependência de todos os outros produtores. Cada produtor produz para o outro, e não para si. A produção é voltada para a troca, ao produtor interessa apenas a troca de sua mercadoria por determinada proporção quantitativa de mercadorias qualitativamente diferentes: “x mercadoria A = y mercadoria B”. Por detrás dessa equação, que se realiza através de uma relação entre coisas, existe uma infinidade de relações sociais, mediadas pela mercadoria e respondendo a uma legalidade social que “[...] se impõe com violência como lei natural reguladora, do mesmo modo que a lei da gravidade, quando a alguém a casa cai sobre a cabeça” (MARX, 1988, p. 73). Essa lei se manifesta na grandeza de valor pelo tempo de trabalho, expressa nos valores relativos das mercadorias, desvelada pela teoria do valor-trabalho de Marx.
Em sua teoria do valor-trabalho, Marx nos demonstra que ao duplo caráter da mercadoria – enquanto valor de uso e valor – corresponde um duplo caráter do trabalho, a saber, trabalho concreto (trabalho útil) e trabalho abstrato (substância do valor):
Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força do trabalho do homem sob a forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso. (MARX, 1988, p. 53).
Apenas enquanto resultado do trabalho abstrato, as diferentes mercadorias podem se trocar como igualdade de valores, que expressam trabalho humano igual. A grandeza do valor, por sua vez, é dada pela quantidade de trabalho abstrato que a mercadoria contém. A medida desta quantidade é o que Marx denominou tempo de trabalho socialmente necessário, que é “[...] aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de produção socialmente normais, e com o grau médio de habilidade e de intensidade” (MARX, 1988, p. 48). Da mesma forma que ao produtor só é dado produzir o que é útil para o outro, ou seja, produzir valores de uso que realizem necessidades sociais, o valor do produto não é de seu arbítrio, mas dado socialmente pelo tempo médio de produção, o qual se coloca ao produtor individual como algo externo a ele, como algo objetivo, ao qual ele deve se submeter para poder trocar suas mercadorias. O caráter social da produção se lhe impõe, no entanto, de forma mediada pelo seu produto e apenas através do processo de troca:
[...] os trabalhadores privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores. Por isso, aos últimos aparecem as relações sociais entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas. (MARX, 1988, p. 71).
Apenas quando as coisas se confrontam na troca, é que o caráter social da produção mercantil se realiza. Essa relação, historicamente constituída, assume caráter ainda mais fetichizado na medida em que as relações de troca são mediadas pelo dinheiro, enquanto equivalente geral. Não é mais o valor de uso de uma mercadoria que surge como forma equivalente da outra, mas sim um produto diretamente social, o dinheiro, expressão monetária comum das mercadorias. Na sociedade mercantil as coisas adquirem, assim, propriedades sociais:
A coisa adquire as propriedades de valor, dinheiro, capital, etc., não por suas propriedades naturais, mas por causa das relações sociais de produção às quais está vinculada na economia mercantil. Assim as relações sociais de produção não são apenas “simbolizadas” por coisas, mas realizam-se através de coisas. (RUBIN, 1980, p. 26).
Na sociedade mercantil, em seu caráter reificado, atribuímos às coisas a essência que pertence às relações sociais das quais são expressão e para as quais se tornam meio de realização. Não é o dinheiro o fundamento da troca, mas o trabalho socialmente igual contido no valor da mercadoria, no entanto, o dinheiro cumpre a função social da troca, enquanto forma social resultante das relações sociais entre pessoas. A função social do dinheiro não lhe foi psicologicamente impingida, nem é atributo de suas propriedades naturais, mas é resultado histórico de relações sociais, que só podem se realizar sob sua mediação. Essa relação reificada se complexifica quando analisamos a especificidade da sociedade capitalista, na qual a produção não tem por objetivo a satisfação das necessidades humanas, mas a transformação de dinheiro em mais dinheiro.
Na valorização do dinheiro, este não tem mais a função social de meio de troca, mas assume a função social de capital, valor que se valoriza. A função social de se valorizar aparece ao capitalista como atributo do capital por ele investido na produção de mercadorias. O capital investido (D) se transforma em meios de produção e força de trabalho (M1), utilizados no processo produtivo (P), através do qual o elemento subjetivo da produção, a força de trabalho, transformará os fatores objetivos, meios de produção, em novas mercadorias (M2), as quais, quando vendidas, se convertem em valor acrescido (D’), assumindo novamente a forma dinheiro, acrescido do lucro do capitalista. Temos então a expressão: D – M1 ... P ... M2 – D’. Para o capitalista o lucro é resultado natural do processo produtivo ao qual adiantou seu capital. Porém, dos elementos da produção, o único que tem a capacidade de criar valor excedente, ou seja, de transformar valor em mais valor (mais-valia) é a força de trabalho. A distinção entre capital constante (CC) e capital variável (CV) realizada por Marx, nos revela que a propriedade de valorizar valor não pertence ao capital total – que, ao capitalista, aparece como o custo da mercadoria – mas sim ao capital variável, que nada mais é do que a força de trabalho do trabalhador posta em movimento por tempo de trabalho superior ao que compõe seu próprio valor. Esse mais-trabalho é trabalho não pago ao trabalhador, a mais-valia. Tem-se aqui outra forma de fetiche, o fetiche do capital, através do qual o processo de valorização aparece como inerente ao capital investido pelo capitalista, seu capital total na forma de capital produtivo. O lucro, forma transmutada de mais-valia, aparece como resultado imediato do dispêndio de capital, na diferença entre o preço de venda do produto e seu preço de custo. Mas como nos coloca Marx:
O que a mercadoria custa ao capitalista e o que custa mesmo a produção da mercadoria, são, todavia, duas grandezas completamente diferentes. A parte de valor da mercadoria que consiste em mais-valia não custa nada ao capitalista, exatamente porque custa trabalho não pago ao trabalhador. Como, no entanto, na base da produção capitalista o próprio trabalhador, depois de seu ingresso no processo de produção, constitui um ingrediente do capital produtivo posto em função e pertencente ao capitalista, sendo o capitalista, portanto, o verdadeiro produtor de mercadoria, então o preço de custo da mercadoria aparece necessariamente para ele como o verdadeiro custo da própria mercadoria. [...] o custo capitalista da mercadoria mede-se no dispêndio em capital, o verdadeiro custo da mercadoria no dispêndio em trabalho. (MARX, 1983, p. 24).
O valor da mercadoria acrescido da mais-valia, que surge do dispêndio do trabalho acrescido do trabalho não pago, assume a forma reificada de dispêndio de capital (cujos elementos se materializam nos meios de produção e força de trabalho). Nessa relação reificada, é o capitalista – cuja função social é definida por possuir capital – que aparece como o sujeito da produção de lucro, para a qual o trabalhador, real sujeito, é apenas “ingrediente”. Essa relação se complexifica ao considerarmos que a produção de valores de uso assume a forma exclusiva de produção de mercadorias destinadas à valorização do capital, e o trabalho excedente a forma exclusiva de mais-valia. Então, não só a forma mercadoria é a única através da qual podemos satisfazer nossas necessidades, mas a produção capitalista se torna a única forma de produção de mercadorias. Ou seja, as relações entre pessoas se tornam mediadas por coisas, e nossa própria sobrevivência mediada pela forma capital. E ao trabalhador o acesso a valores de uso necessários à sua sobrevivência só é possível através do salário, resultante da venda de sua força de trabalho na produção de mercadorias, sob a forma capitalista.
Sob as relações capitalistas, a sobrevivência do trabalhador, mediada pelo salário, é constantemente ameaçada com a lei geral de acumulação capitalista. Como dissemos, a mercadoria carrega consigo a unidade valor e valor de uso. Essa unidade, no entanto, se manifesta como antítese, explicitada ao considerarmos o efeito do desenvolvimento das forças produtivas, que se relaciona de forma direta com o valor de uso e de forma inversa com o valor. Marx (1988) nos esclarece que, por um lado, “[...] quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto menor o tempo de trabalho exigido para a produção de um artigo, tanto menor a massa de trabalho nele cristalizada, tanto menor seu valor” (p. 49), ao mesmo tempo, por outro lado, um aumento da força produtiva do trabalho resulta num aumento na quantidade de valores de uso. Através da concorrência inter-capitalista e da luta de classes há um aumento da proporção entre o capital constante e o capital variável. Na medida em que o primeiro aumenta frente ao segundo, eleva-se a composição orgânica do capital, que tem como pressuposto um desenvolvimento das forças produtivas. O resultado é uma redução do valor unitário de cada produto, acompanhado pelo aumento do número de valores de uso produzidos. Mas para o trabalhador isso significa a diminuição de possibilidades de vender sua força de trabalho, como, também, uma pressão que reduz seus salários com o surgimento do exército industrial de reserva. Já o capitalista subjaz às conseqüências da reprodução ampliada de seu capital, que na relação inter-capitalista leva à concentração e à centralização do capital, potencializada pelo crédito (MARX, 1984). Tanto o aumento da quantidade de valores de uso e pauperização relativa dos trabalhadores, por um lado, e a diminuição do valor das mercadorias e aumento da concentração e centralização do capital, por outro, só se realizam de forma mediada pelas mercadorias produzidas, e que se trocam no mercado, ou seja, são relações reificadas.
Há ainda a forma mais “aguda” de fetiche do capital, que é a do capital portador de juros, expressa em D – D’, nesta forma de valorização do capital “tudo o que ocorre de permeio é apagado”. O capital é alienado pelo prestamista com a condição de afastar-se de suas mãos por um tempo, para depois a elas retornar acrescido de novo valor. Este capital, no entanto, é alienado a um capitalista “funcionante”, que irá empregá-lo na produção de mercadorias para obter mais-valia. Parte do sobre-valor “produzido” pelo capitalista “funcionante” deve ser devolvido ao prestamista na forma de juros. Este último se apropria da mais-valia produzida no processo produtivo, mas sem que disso tome consciência, pois a ele lhe parece que seu próprio dinheiro tem a função de capital que lhe produz juros:
[No capital portador de juros] enquanto o juro é apenas parte do lucro, isto é, da mais-valia que o capitalista funcionante extorque do trabalhador, o juro aparece agora, ao contrário, como o fruto próprio do capital, como o original, e o lucro, agora na forma de ganho empresarial, como mero acessório aditivo que lhe advém no processo de reprodução. Aqui a figura fetichista do capital e a concepção do fetiche-capital está acabada. Em D – D’ temos a forma irracional do capital, a inversão e reificação das relações de produção em sua potência mais elevada: a figura portadora de juros, a figura simples do capital, na qual este é pressuposto de seu próprio processo de reprodução; a capacidade do dinheiro, respectivamente da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – a mistificação do capital em sua forma crua. (MARX, 1983, p. 294)
Aqui toda a relação se inverte, temos o juro como “o original” e o lucro como ganho empresarial aditivo (pois depende do capital do prestamista), a produção torna-se conseqüência acessória das transações financeiras, e a exploração da força de trabalho pelo capitalista encobre-se reificada na forma de capital que se autovaloriza. Todas as relações sociais pressupostas desaparecem, a divisão social do trabalho, a propriedade privada, a acumulação primitiva, o processo de extração de mais-valia pela exploração do trabalho assalariado, todos esses complexos são subsumidos à aparência natural do capital, que se mostra como expressão acabada das “relações reificadas entre pessoas e relação social entre coisas”, cuja estrutura elementar se encontra na mercadoria, a qual media todas as relações sociais do homem. A compreensão da mercadoria – e através dela, das relações sociais reificadas enquanto relações historicamente constituídas – é a única forma de não se assumir as leis que regem a sociedade capitalista como naturais e imutáveis, como ocorre com a economia política clássica. Para isto, conhecer a gênese desse processo e seu desenvolvimento, ainda que apenas no processo produtivo (não poderemos tratar do capital portador de juros) é essencial. A natureza reificada da sociedade capitalista se origina quando ocorre a subsunção do processo de trabalho ao capital, subjugando-o ao processo de valorização. A compreensão desse processo, como da incidência da alienação, do fetichismo e da reificação no processo de trabalho subsumido pelo capital, será o objeto do item que se segue.
Em qualquer modo de produção o processo de trabalho se figura como a interação entre o homem e a natureza, através da qual o homem transforma a natureza em objetos úteis para sua sobrevivência. O processo de trabalho se apresenta composto do elemento subjetivo, o homem, e dos elementos objetivos: o objeto de trabalho (natureza ou natureza transformada em matéria-prima) e meios de trabalho (ferramentas e outros instrumentos). Para executar sua atividade o homem cria primeiro no pensamento o objeto que pretende criar na prática, de forma que a transformação do objeto é antes teleologia, e sua execução é a criação de um objetivo pré-idealizado. Marx (1988, p. 144) nos esclarece:
No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. O produto é um valor de uso, uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu ao seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado.
No processo de trabalho o objeto de trabalho e os meios de trabalho (que mediam a relação do homem com a natureza) são ambos consumidos pelo trabalho humano,
[4] transformando-se em produto: “O trabalho gasta seus elementos materiais, seu objeto e seu meio, os devora e é, portanto, processo de consumo” (MARX, 1988, p. 146). No processo de trabalho que transforma a natureza em valores de uso os meios de produção são consumidos pelo trabalho, cujo sujeito é o trabalhador.
No processo de produção capitalista, no entanto, o processo de trabalho é apenas meio para o processo de valorização. O produto surge como mercadoria, portador de um valor de uso e um valor. O primeiro corresponde o trabalho concreto, que cria os valores de uso, os objetos úteis, fruto do metabolismo entre homem e natureza. Mas o segundo, o valor, irá subjugar a produção de valores de uso, o processo de trabalho, à sua necessidade de valorização, que se dará pelo trabalho abstrato, trabalho indiferente, socialmente colocado, cujo único objetivo é a valorização do valor. Tudo isso, no entanto, se esconde na figura fetichizada da mercadoria, à qual os homens se submetem.
O trabalhador é convertido em trabalhador assalariado, força de trabalho incorporada ao capital do capitalista, na forma de capital variável, e aparece apenas como um meio através do qual os meios de produção, tornados capital constante, conservam seu próprio valor e se valorizam. Com o processo de trabalho subordinado ao processo de valorização a relação entre sujeito (homem) e objeto (meios de produção) se inverte.
[5] Essa aparência fetichizada é explicitada por Marx (1985, p. 75):
No processo de trabalho considerado em si, o operário emprega os meios de produção. No processo de trabalho que é simultaneamente processo capitalista de produção, os meios de produção empregam o operário, de tal sorte que o trabalho só aparece como um meio graças ao qual determinada quantidade de valor, ou seja, determinada massa de trabalho objetivado, suga trabalho vivo para se conservar e se incrementar.
O trabalhador separado de seus meios de produção e de seus meios de subsistência (respectivamente suas condições objetivas e subjetivas de produção) vende sua força de trabalho ao capitalista, capital personificado. Esse capital é, em parte, trabalho objetivado (trabalho passado) transformado em meios de produção e, em parte, força de trabalho, a qual se troca por trabalho objetivado, seus meios de subsistência.
[6] Nesta perspectiva, as relações sociais capitalistas surgem em sua forma reificada de maneira gritante, pois nesta relação são os meios de subsistência (trabalho objetivado), expropriados do trabalhador e de propriedade do capitalista, que compram o operário para incorporá-lo aos meios de produção, que o utilizarão para se autovalorizarem, e não o contrário:
O adquirente de capacidade de trabalho é meramente personificação do trabalho objetivado, o qual cede aos operários uma parte de si próprio sob a forma de meios de subsistência a fim de incorporar à sua outra parte a capacidade viva de trabalho e, mercê desta incorporação, conservar-se integralmente a si próprio e crescer para lá da sua medida original. Não é o operário que compra meios de subsistência e meios de produção: são os meios de subsistência que compram o operário para o incorporarem nos meios de produção. (MARX, 1985, p. 70).
Essa relação – em que as coisas, os meios de produção e os meios de subsistência, aparecem como sujeitos do processo produtivo, confrontando o trabalhador de forma hostil – nos mostra a natureza específica da alienação na sociedade capitalista, pois: o “[...] trabalho se confronta com o operário que o executa como algo não só alheio, mas também hostil e antagônico, e como algo personificado e objetivado no capital” (MARX, 1985, p. 93). Diferentemente de modos de produção como o feudalismo, em que a relação entre o trabalhador (servo) e o proprietário de seu produto (senhor) era pessoal, na sociedade capitalista a relação só se coloca por meio de coisas. Essa é a principal característica do que Marx denominou subsunção formal do processo de trabalho ao capital. Não se trata de uma relação de dominação pela força ou por coerção política, mas de uma relação de subordinação e dependência que se dá por meio das coisas. Como nos coloca Marx (1985, p.94), “o essencial da subsunção formal é o seguinte”:
A relação puramente monetária entre aquele que se apropria do sobretrabalho e o que o fornece: na medida em que surge a subordinação, a mesma deriva do conteúdo determinado da venda, não de uma subordinação que precedesse a mesma e pela qual o produtor – devido a circunstâncias políticas, etc. – estivesse colocado noutra relação que não a monetária (relação entre possuidor de mercadoria e possuidor de mercadoria) em relação ao explorador do seu trabalho. É apenas na sua condição de possuidor das condições de trabalho que, neste caso, o comprador faz com que o vendedor caia sob a sua dependência econômica; não existe nenhuma relação política, fixada socialmente, de hegemonia e subordinação. 2) O que é inerente a primeira relação – ao contrário o operário não teria que vender a sua capacidade de trabalho – é que as suas condições objetivas de trabalho (meios de produção) e as suas condições subjetivas de trabalho (meios de subsistência), monopolizadas pelo aquisidor da sua capacidade de trabalho, se lhe opõem como capital. Quanto mais plenamente essas condições de trabalho se lhe opõem como propriedade alheia, tanto mais plena e formalmente se estabelece a relação entre o capital e o trabalho assalariado, ou, o mesmo é dizer, a subsunção formal do trabalho no capital, condição e premissa da subsunção real.
Na subsunção formal temos o confronto entre proprietários de mercadorias. Nesta relação aquele que explora só o faz por ser possuidor dos meios de produção e subsistência, enquanto aquele que é explorado, vendendo sua força de trabalho (sua única mercadoria), é dependente do possuidor apenas economicamente, pois não tem, de outra forma, acesso às condições objetivas e subjetivas de produção, as quais se lhe opõem como propriedades alheias. A relação predominante aqui é a econômica, mediada pelas mercadorias, sendo que político-juridicamente proprietário e trabalhador aparecem livres e iguais. No entanto, esta forma de subsunção altera apenas formalmente o processo produtivo anterior. O processo de trabalho continua sem modificações. A mudança na forma se dá na relação entre os homens, a qual se torna mediada por mercadorias, reificada. Não é mais o outro que confronta o trabalhador como inimigo, como antagônico, tornando o trabalho alienado. Nesta relação, que ainda se mantém de forma alienada, a mercadoria se coloca como mediação e esse outro deixa de aparecer como homem e torna-se capital personificado. O que confronta o trabalhador são coisas, meios de produção e de subsistência, os quais lhe aparecem como estranhos e aos quais o trabalhador se submete: “[...] essa relação já é uma perversão, personificação da coisa, e coisificação da pessoa” (MARX,1980, p. 385).
Podemos sintetizar as mudanças na forma social, quando do início da subsunção formal, pelas seguintes relações: a) o processo de trabalho torna-se meio do processo de valorização; b) o trabalhador, mais especificamente a sua força de trabalho, aparece como parte do capital (capital variável); c) o capitalista só o é, e detém seu poder, por ser capital personificado, proprietário do capital; e d) os meios de produção tornam-se meio para sugar trabalho vivo. Aqui não se alterou o conteúdo do processo de trabalho, alterou-se a forma social através da qual trabalhador, proprietário, meios de produção e processo de trabalho se apresentam. Nesta nova forma social, ao capitalista a valorização dos meios de produção aparece como autovalorização de seu capital, de forma que, na subsunção formal, essa forma social aparece fetichizada, pois aqui claramente se coloca o fetiche do capital.
[7]
A primeira forma capitalista sob a qual o processo produtivo capitalista se coloca é cooperação simples, na qual muitos trabalhadores (antigos artesãos) se colocam sob o comando de um capitalista que detém seus meios de produção.
A produção capitalista começa [...] de fato, apenas onde um mesmo capital individual ocupa simultaneamente um número maior de trabalhadores, onde o processo de trabalho, portanto, amplia sua extensão e fornece produtos numa escala quantitativa maior que antes. A atividade de um número maior de trabalhadores, ao mesmo tempo, no mesmo lugar [...] para produzir a mesma espécie de mercadoria, sob o comando do mesmo capitalista, constitui histórica e conceitualmente o ponto de partida da produção capitalista. (MARX, 1988, p. 244).
O processo de trabalho, apesar de ser executado com fins de valorizar capital, coincide completamente com o trabalho do antigo artesão. O mesmo trabalhador executa todas as fases do processo de trabalho na transformação de um determinado objeto em produto. Não há nenhum revolucionamento tecnológico. Mas toda a atividade é submetida à vigilância atenta do capitalista, o qual não só estabelece a continuidade e a harmonia no processo produtivo, mas o faz com o objetivo de uma maior autovalorização de seu capital.
[8] A valorização do capital operacionalizada pelo tempo de trabalho não pago, objetivado no produto, realiza-se através de um processo de trabalho exatamente igual ao do período artesanal, de forma que essa valorização só pode aumentar sua grandeza se aumentar a jornada de trabalho.
[9] A essa forma de aumentar a produção de mais-valia, chama-se mais-valia absoluta. A mais-valia absoluta é uma das características da subsunção formal do trabalho ao capital.
Com base num modo de trabalho preexistente, ou seja, num desenvolvimento dado da força produtiva do trabalho e do modo de trabalho correspondente ao desenvolvimento dessa força produtiva [...] só se pode produzir mais-valia recorrendo ao prolongamento do tempo de trabalho, quer dizer, sob a forma de mais-valia absoluta. A esta modalidade, como forma única de produzir mais-valia, corresponde pois a subsunção formal do trabalho ao capital. (MARX, 1985, p. 90).
Na produção de mais-valia absoluta, o único comando que o capital tem sobre o operário é o da coerção. Nessa forma de produção o operário ainda tem consciência do processo de trabalho, o qual permanece sob seu domínio. O trabalho lhe é estranho na medida em que seu produto não lhe pertence, mas sua atividade é dotada de skill.
[10] Sob essa forma produtiva, com base técnica artesanal, o trabalho não é indiferente ao trabalhador, e este não é “intercambiável”, não pode ser facilmente conduzido de um ramo de produção a outro. Sob esta forma produtiva, o processo de trabalho continua com baixa produtividade e não padronizado. Esses elementos impõem um limite ao processo de valorização, ao qual o processo de trabalho se subordina.
A despeito do caráter naturalmente coercitivo da relação capitalista, a cooperação simples limita de forma radical o controle do capital sobre o processo de trabalho e, por conseqüência sobre o processo de valorização ao qual a mercadoria se subordina. Estando o ritmo de trabalho e a qualidade do produto inteiramente sob o controle dos trabalhadores, o poder do capital sobre o trabalho encontra um evidente obstáculo no “saber operário”. (MORAES NETO, 1987, p. 21).
Com o aumento na escala de produção, o capital fará seu primeiro revolucionamento: revolucionará o elemento subjetivo do processo de trabalho, modificando a forma através da qual o processo se organiza. Na cooperação simples, assim como no artesanato, havia uma “divisão íntima” do trabalho, através da qual o trabalhador dividia o processo de trabalho em várias fases e executava todas elas. Com a produção em grande escala surgirá a divisão manufatureira do trabalho, ou cooperação especializada, na qual as diversas fases da anterior divisão íntima do trabalho serão executadas por trabalhadores diferentes. Surge o trabalhador especializado: “A manufatura produz, de fato, a virtuosidade do trabalhador detalhista, ao reproduzir, dentro da oficina, a diferenciação naturalmente desenvolvida dentro dos ofícios, que já encontrou na sociedade, e ao impulsioná-la ao extremo” (MARX, 1988, p. 256). Com essa nova forma de organização do trabalho, o processo de trabalho sofre sua primeira modificação real, enquanto submetido ao processo de valorização.
A modificação na organização do trabalho irá aumentar as forças produtivas, principalmente devido aos seguintes aspectos: a) aumento da destreza do trabalhador: como cada trabalhador executa somente uma tarefa, essa tarefa passa a ser executada mais rapidamente; b) diminuição dos tempos desperdiçados: os poros de produção que existiam, devido ao tempo utilizado pelo trabalhador para trocar de ferramenta e objeto de trabalho, se reduzem; c) aperfeiçoamento das ferramentas: cada qual agora especializada para uma função. Surge na manufatura o primeiro aumento das forças produtivas sob a forma capitalista de produção. A mais-valia não depende apenas do prolongamento da jornada de trabalho, mas agora é resultado de uma diminuição do tempo de trabalho que reproduz o valor da força de trabalho, apresentando a extração de mais-valia sob a forma relativa. Essa mais-valia relativa é resultado de desenvolvimentos do modo de produção especificamente capitalista, da subsunção real do trabalho ao capital, ainda que de forma limitada.
A divisão manufatureira do trabalho cria, por meio da análise da atividade artesanal, da especificação dos instrumentos de trabalho, da formação dos trabalhadores especiais, de sua agrupação e combinação em um mecanismo global, a graduação qualitativa e a proporcionalidade quantitativa de processos sociais de produção, portanto determinada organização do trabalho social, e desenvolve isso, ao mesmo tempo, nova força produtiva social do trabalho. Como forma especificamente capitalista do processo de produção social – e sob as bases preexistentes ela não podia desenvolver-se de outra forma, a não ser na capitalista – é apenas um método especial de produzir mais-valia relativa ou aumentar a autovalorização do capital – o que se denomina riqueza social, Wealth of Nations etc. – à custa dos trabalhadores. (MARX, 1988, p. 273).
Essa “nova força produtiva social do trabalho” aparece como produto do capital, ou seja, esse aumento de produtividade engendra um caráter fetichista, pois todo o aumento das forças produtivas, decorrentes dessa nova forma de organização do trabalho social, aparece como forças produtivas do capital, forma fetichista que aparece porque o trabalho social está incorporado ao capital.
[11] Além de termos um aumento nas forças produtivas, tomadas como forças produtivas do capital, a divisão manufatureira do trabalho aumenta o estranhamento do processo de trabalho frente ao trabalhador. Como resultado da divisão manufatureira do trabalho, surge na manufatura uma hierarquia entre os trabalhadores: “A manufatura cria [...] em todo ofício, de que se apossa, uma classe dos chamados trabalhadores não qualificados, os quais eram rigorosamente excluídos do artesanato” (MARX, 1988, p. 263). Com a divisão de tarefas na manufatura, grande parte destas torna-se simples, exigindo pouca habilidade e poucos movimentos do trabalhador, sendo executadas pelo trabalhador simples. A esse trabalhador o processo de trabalho torna-se não só estranhado, mas também lhe é retirada a capacidade de produzir fora do comando do capital, pois o trabalhador desqualificado não tem consciência do processo de trabalho em sua totalidade, só conhece a parte, ínfima, que lhe cabe:
Se o trabalhador originalmente vendeu sua força de trabalho ao capital, por lhe faltarem os meios materiais para a produção de uma mercadoria, agora sua força individual de trabalho deixa de cumprir seu serviço se não estiver vendida ao capital. Ela apenas funciona numa conexão que existe somente depois de sua venda, na oficina capitalista. Incapacitado em sua qualidade natural de fazer algo autônomo, o trabalhador manufatureiro só desenvolve atividade produtiva como acessório da oficina capitalista. [...] O que os trabalhadores parciais perdem, concentra-se no capital com que se confrontam. É esse o produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e poder que os domina. (MARX, 1988, p. 270).
A atividade laborativa do operário individual é reduzida a movimentos parciais, autônomos do restante do processo produtivo. A produção assume caráter social, mas se dá sob comando do capital, que confronta o operário e deste retira toda consciência da atividade, tornando-o instrumento não só no processo de valorização, como também no próprio processo de trabalho. Aqui o trabalhador está “alienado de si” devido ao próprio conteúdo de seu processo de trabalho e não apenas devido à forma com a qual ele se relaciona com seu produto e com sua atividade, como estranhos. Porém, esse processo de alienação, estranhamento, aqui ainda não assumiu sua forma mais desenvolvida, mais reificada, e apresenta limites ao processo de valorização do capital. Estes limites resultam da base estreita sobre a qual a manufatura se desenvolve, a base técnica artesanal.
[12] Assim como no artesanato, o trabalho na manufatura tem caráter empírico, principalmente por estar amplamente lastrado no elemento subjetivo, e é nessa combinação que se originam todos os ganhos de produtividade da manufatura, não há qualquer revolucionamento objetivo, que permita ao capital um maior domínio sobre o trabalho:
[...] antes de mais nada, a análise do processo de produção em suas fases particulares coincide inteiramente com a decomposição de uma atividade artesanal em suas diversas operações parciais. Composta ou simples, a execução continua artesanal e portanto dependente da forma, habilidade, rapidez e segurança do trabalhador individual no manejo de seu instrumento. O ofício permanece a base. Essa estreita base técnica exclui uma análise verdadeiramente científica do processo de produção, pois cada processo parcial percorrido pelo produto tem que poder ser realizado como trabalho parcial artesanal. (MARX, 1988, p. 255-56)
Ao mesmo tempo, a manufatura nem podia apossar-se da produção social em toda a sua extensão, nem revolucioná-la em sua profundidade. Como obra de arte econômica ela elava-se qual ápice sobre a ampla base do artesanato urbano e da indústria doméstica rural. Sua própria base técnica estreita, ao atingir certo grau de desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela mesma criou. (MARX, 1988, p. 275).
O modo de produção especificamente capitalista desenvolver-se-á sob a grande indústria, cuja base técnica é a maquinaria. A maquinaria é engendrada na própria produção manufatureira, a qual desenvolve a especialização das ferramentas, que será a base da máquina-ferramenta:
[...] [Na] máquina-ferramenta ou máquina de trabalho propriamente dita [...] reaparecem [...] os aparelhos e ferramentas com que o artesão e o trabalhador da manufatura trabalham, não como ferramentas do homem, porém agora como ferramentas de um mecanismo ou ferramentas mecânicas. [...] A máquina-ferramenta é, portanto, um mecanismo que, ao ser-lhe transmitido o movimento correspondente, executa com todas as suas ferramentas as mesmas operações que o trabalhador executava antes com ferramentas semelhantes. (MARX, 1984, p. 8-9).
A máquina-ferramenta pode realizar sem a intervenção direta do operário todo o processo para a produção de um objeto. Com a criação da máquina-motriz o operário perde inclusive a função de dar movimento a máquina-ferramenta. Essas invenções permitem a autonomização do processo produtivo e o surgimento da Grande Indústria, cuja base técnica não é mais o artesanato, mas a maquinaria. Aplicam-se ao processo produtivo princípios científicos, perde-se o caráter empírico da produção. Para produzir são necessários conhecimentos científicos, abstratos e não mais a experiência prática, a qualificação do trabalhador. Completa-se o processo de dissociação entre conhecimento e execução, o qual se inicia na cooperação simples, atinge um grau maior de estranhamento do trabalhador individual frente a sua atividade na manufatura e assume forma mais acabada na maquinaria, na qual o processo de trabalho surge reificado diante do trabalhador. Do processo produtivo o trabalhador nada conhece, e, muitas vezes, nem participa do processo de transformação do objeto em produto, sendo mero acessório. Rompe-se a barreira orgânica na medida em que se objetiva o processo de trabalho, o qual se apresentava até então baseado no elemento subjetivo. O conjunto de citações abaixo, retiradas de Marx (1978) nos demonstram a natureza e conseqüências desse novo processo:
A atividade do operário, reduzida a uma pura abstração, é em todos os sentidos determinada pelo conjunto das máquinas; o inverso não é verdadeiro. (p. 219)
O conjunto do processo de produção já não está, então, subordinado à habilidade do operário; tornou-se uma aplicação tecnológica da ciência. (p. 221)
A ciência manifesta-se, portanto, nas máquinas, e aparece como estranha e exterior ao operário. O trabalho vivo encontra-se subordinado ao trabalho materializado, que age de modo autônomo. Nessa altura o operário é supérfluo [...]. (p. 221).
Com a aplicação da maquinaria ao processo de trabalho, o objeto de trabalho se transforma em produto sem depender da habilidade e movimentos do trabalhador. E quanto mais contínuo esse processo for, quanto menor a intervenção da mão humana, mais desenvolvido e articulado se apresenta o sistema de máquinas, o qual se transforma num autômato. Com o desenvolvimento da maquinaria a subsunção real do processo de trabalho ao capital se desenvolve plenamente, o processo de trabalho não depende mais do trabalhador singular e a ciência é aplicada a produção imediata. Sobre a subsunção real do trabalho ao capital, Marx explicita:
Na subsunção real ao capital [...] desenvolvem-se as forças produtivas sociais do trabalho e, graças ao trabalho em grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção imediata. Por um lado, o modo de produção capitalista, que agora se estrutura como um modo de produção sui generis, origina uma forma modificada de produção material. Por outro lado, essa modificação da forma material constitui a base para o desenvolvimento da relação capitalista, cuja forma adequada corresponde, por conseqüência, a determinado grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas do trabalho. (MARX, 1985, p. 105).
Enquanto a cooperação simples e a divisão manufatureira do trabalho se aplicavam ao elemento subjetivo do processo de trabalho (o homem), a grande indústria tem como elemento determinante o elemento objetivo, os meios de produção. Essa relação está clara na seguinte citação:
Com a maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existência material que pressupõe a substituição da força humana por forças naturais e da rotina empírica pela aplicação consciente das ciências da Natureza. Na manufatura, a articulação do processo social de trabalho é puramente subjetiva, combinação de trabalhadores parciais; no sistema de maquinas, a grande indústria tem um organismo de produção inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como condição da produção material. Na cooperação simples e mesmo na especificada pela divisão do trabalho, a supressão do trabalhador individual pelo socializado aparece ainda como sendo maios ou menos casual. A maquinaria, com algumas exceções [...] só funciona com base no trabalho imediatamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se agora, portanto, uma necessidade técnica ditada pela natureza do próprio trabalho. (MARX, 1984, p. 17).
No sistema de máquinas as forças naturais, através da aplicação da ciência, substituem as forças humanas, e o processo produtivo assume caráter objetivamente (materialmente) social, pois esse caráter é determinado pelos meios de produção. O domínio do capital sobre o trabalhador deixa de se dar pela coerção, pois esse controle, esse poder, passa a ser ditado pelo próprio sistema de máquinas, o controle deixa de ser algo externo ao processo de trabalho para incorporar-se ao capital. O conhecimento do processo de trabalho não só é retirado do trabalhador, mas o é para ser aplicado aos meios de produção. Diante disso o trabalhador aparece completamente esvaziado, simples meio a ser utilizado pelos meios de produção. A inversão entre sujeito e objeto ganha aqui dimensão real, positiva, palpável, como explicita Marx (1984, p. 43-44):
Toda a produção capitalista, à medida que ela não é apenas processo de trabalho, mas processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas, que, pelo contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só, porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade tecnicamente palpável. Mediante sua transformação em autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalhador como capital, como trabalho morto que domina e suga a força de trabalho viva. A separação entre as potencias espirituais do processo de produção e o trabalho manual, bem como a transformação das mesmas em poderes do capital sobre o trabalho, se completa, como já foi indicado antes, na grande indústria erguida sobre a base na maquinaria. A habilidade pormenorizada do operador da máquina individual, esvaziado, desaparece como algo ínfimo e secundário perante a ciência, perante as enormes forças da natureza e do trabalho social em massa que estão corporificadas no sistema de máquinas e constituem com ele o poder do “patrão”.
Com a subsunção real do trabalho ao capital, através da aplicação da maquinaria, o operário tem sua atividade totalmente esvaziada. A inversão entre sujeito e objeto torna-se explicita e reificada, todo o processo de trabalho se confronta com o trabalhador, incorporando-se no sistema de máquinas, como algo que realmente existe de forma independente e autônoma frente ao operário. Apesar dessa “objetividade” na inversão entre sujeito e objeto, essa relação configura-se aqui fetichizada, como mera aparência. Esse caráter fetichizado esconde atrás de si o caráter social da sociedade capitalista e o desenvolvimento das potencialidades humanas, a evolução do gênero humano em seu domínio sobre a natureza, que faz recuar as barreiras naturais. Na essência os meios de trabalho são trabalho social objetivado, da mesma forma que a ciência é elaboração social da humanidade, ou seja, desenvolvimentos do trabalho social, mas do qual o trabalhador individual não tem consciência, pois lhe surgem coisificados, estranhados.
[13] A ciência, a força produtiva, tudo aparece como desenvolvimento do capital, e salta aos olhos do trabalhador como que incorporados a ele. Tem-se com a subsunção real do trabalho a mistificação do capital em seu grau mais desenvolvido, pois a alienação mesma do trabalho frente ao trabalhador surge coisificada:
A unidade na cooperação, a combinação na divisão do trabalho [na manufatura], o emprego, na maquinaria para fins produtivos, das forças naturais e da ciência junto com os produtos do trabalho, tudo isso se opõe aos próprios trabalhadores individuais como algo estranho e coisificado, [...] as formas sociais de seu próprio trabalho ou as formas de seu próprio trabalho social são relações constituídas de maneira que deles em nada depende; os trabalhadores, subsumidos ao capital, tornam-se elementos dessas formações sociais, mas essas formações sociais não lhe pertencem. Enfrentam-nos portanto como estruturas do próprio capital [...] distintas da força de trabalho individual, oriundas do capital e nele incorporadas. E isto assume feição tanto mais real quanto mais essas formas modificam a própria força de trabalho – tornando-a impotente para ação autônoma, isto é, fora do relacionamento capitalista, e destruindo-lhe a capacidade autônoma de produzir – e quanto mais as condições de trabalho, com o desenvolvimento da maquinaria, se patenteiam, no plano tecnológico, dominantes do trabalho e ao mesmo tempo o substituem, subjugam e o tornam supérfluo nas formas independentes. (MARX, 1980, p. 386).
As formas sociais do trabalho (cooperação simples, manufatura e maquinaria) e todo o desenvolvimento das forças produtivas delas decorrente aparecem como independentes do trabalhador individual, lhe surgindo reificados, e desta forma, surgem como produto do próprio capital. Esse processo intensifica-se, torna-se mais real, colocando-se como positividade independente do trabalhador, quanto mais dependente e supérfluo o trabalhador individual surgir para a produção capitalista. Reafirma-se com a subsunção real do trabalho o caráter reificado e atomizado da sociedade capitalista, que de forma fetichizada se coloca diante dos homens. Nas palavras de Marx: “a mistificação implícita na relação capitalista em geral desenvolve-se agora muito mais do que se teria podido e pudera desenvolver no caso da subsunção puramente formal do trabalho ao capital” (MARX, 1985, p. 93).
Considerações sobre o desenvolvimento desigual
O fetichismo da mercadoria, que nos apresenta as relações sociais reificadas, não é produto da consciência, ou fenômeno psicológico. A relação entre os indivíduos dar-se-á por meio de coisas, ou seja, a relação social assume a “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”, pois, na sociedade mercantil, as relações entre as pessoas são mediadas pelo produto de seu trabalho, na forma mercadoria. Tem-se assim, uma expressão do desenvolvimento desigual, tal como se manifesta na sociedade capitalista.
A alienação humana frente ao gênero é uma consequência do desenvolvimento desigual entre gênero e individuo. Enquanto através do trabalho desenvolvem-se os sentidos humanos, como o ouvido musical, o paladar mais apurado, o olhar para o belo, com a alienação o indivíduo tem em sua atividade prática apenas o meio de vida, uma vida esvaziada que o desumaniza através do trabalho esvaziado, cujo ápice está presente na sociedade capitalista.
[14]
A sociedade capitalista é a sociedade socialmente mais desenvolvida, nela estão presentes todas as tendências do desenvolvimento do ser social, com destaque para o desenvolvimento das forças produtivas, através do qual se necessita de cada vez menos trabalho para a produção dos produtos necessários para a satisfação das necessidades humanas. O desenvolvimento da sociedade capitalista colocou-se de forma extensiva e intensiva, integrando economicamente todos os setores produtivos, como também os diversos países numa única economia mundial, possibilitando que a história se manifestasse enquanto história universal. No entanto, nessa mesma sociedade a propriedade privada confere a cada individuo uma independência e uma ilusão de que somos apenas “átomos isolados”, como explicita Lukács (1979, p. 85): “Mas a crescente socialidade da vida humana suscita em alguns indivíduos a ilusão de serem independentes da sociedade, de existirem de algum modo como átomos isolados”. Essa característica da sociedade burguesa reflete o fetichismo, através do qual as relações sociais surgem como associais. Ao mesmo tempo, esse aparente isolamento é apenas negado no processo de troca, que por sua vez só se dá através de coisas, das mercadorias.
A complexa divisão do trabalho e a propriedade privada conferem ao homem a ideia de seu isolamento e de sua independência, e por trás do caráter fetichista e reificado dessa sociedade esconde-se a intensa e extensa socialização da vida imanentemente social e, ela mesma, fruto dessa forma de sociabilidade. A sociedade capitalista enquanto o mais alto grau de desenvolvimento social (na qual é possível uma história universal) e a ideia do homem isolado, atomizado, são resultados de um mesmo processo, que de forma desigual age sobre indivíduo e gênero, sobre o singular e o universal: “A inter-relação dialética entre o indivíduo (o sujeito da alternativa) e o universal (o socialmente submetido a leis) cria uma série fenomênica mais variada e multifacética, precisamente porque o tornar-se fenômeno da essência social pode se verificar apenas no medium representado pelos homens, que são por princípio individualizados” (LUKÁCS, 1979, p. 84). Os atos singulares dos diversos indivíduos só se baseiam em alternativas concretas, que lhes são apresentadas em sua vida cotidiana, no entanto, a consequência dessas ações tem efeitos independentes de suas consciências e se lhe impõem como algo externo aos homens; ao mesmo tempo, o desenvolvimento social no sentido da generidade e das faculdades humanas, que representa o medium dos homens, só pode ser assimilado pelos indivíduos em sua vivência no cotidiano fenomênico. Observarmos que o desenvolvimento desigual não se coloca apenas na relação entre gênero e indivíduo, mas se explicita na relação entre os diversos complexos sociais, como também na particularidade desses complexos em cada país. Ou seja, é desigual também na relação entre o universal e o particular, desigualdade que resulta da impossibilidade, na sociedade capitalista, de desenvolver-se uma consciência social, o gênero para si, de forma que as decisões alternativas possam ser orientadas por uma Ética, uma “imagem do mundo em que empreste um fundamento às suas [dos homens] decisões entre alternativas” (LUKÁCS, 1979, p. 151).
Apesar da objetividade do fetichismo e reificação, o modo de produção capitalista apresenta contradições e seu próprio modo de reprodução. Assim como a lei do valor se impõe aos produtores independentes, as contradições desta forma social se apresentam diariamente à sociedade. Dentre estas destacamos a que evidencia que a nesta forma social não cabe o desenvolvimento humano. O desenvolvimento do gênero conquistado com os avanços das forças produtivas deve servir aos homens, ao individuo particular. Esse mesmo desenvolvimento traz consigo uma contradição ao próprio capital.
O objetivo do capitalista é aumentar crescentemente o capital a ser valorizado, aumentando a escala de produção. Ao converter a mais-valia produzida em meios de produção e força de trabalho, o capitalista aumenta seu capital, ou, de forma mais precisa, acumula capital. A subsunção real do processo de trabalho ao capital pressupõe uma já elevada acumulação de capital, pois através dela a massa de mais-valia torna-se produto da mais-valia relativa, ou seja, da diminuição do tempo de trabalho necessário frente ao tempo de trabalho não pago. Esse aumento de mais-valia relativa decorre do aumento da produtividade do trabalho, da elevação das forças produtivas do trabalho social. O significado imediato do aumento das forças produtivas do trabalho se manifesta na quantidade sempre crescente de capital constante (meios de produção) sobre os quais uma determinada quantidade de capital variável (força de trabalho) atua. Marx explicita:
A contínua retransformação de mais-valia em capital apresenta-se como grandeza crescente do capital que entra no processo de produção. Este se torna, por sua vez, fundamento para uma escala ampliada de produção, dos métodos que o acompanham para a elevação da força produtiva do trabalho e produção acelerada de mais-valia. Se, portanto, certo grau de acumulação de capital aparece como condição do modo de produção especificamente capitalista, este último ocasiona em reação uma acumulação acelerada de capital. Com a acumulação do capital desenvolve-se, portanto, o modo de produção especificamente capitalista, a acumulação de capital. Esses dois fatores econômicos criam, de acordo com a relação conjugada dos impulsos que eles se dão mutuamente, a mudança na composição técnica do capital pela qual a componente variável se torna cada vez menor comparada à constante. (MARX, 1984, p. 197).
Com a acumulação de capital, o modo de produção especificamente capitalista aumenta as forças produtivas do trabalho através do aumento crescente de capital constante frente ao capital variável. Porém, quando esse desenvolvimento técnico torna-se social, dele decorre uma queda no valor do produto, dado socialmente, de forma que esta queda é consequência da diminuição do tempo de trabalho médio socialmente necessário na produção. Das consequências desse processo, aqui nos interessa a contradição que se impõe ao capital, a qual se apresenta como autocontradição inerente ao modo de produção especificamente capitalista. Essa contradição se manifesta no aumento sempre crescente da parcela do capital que nenhum valor acrescenta ao produto, em detrimento ao capital variável, parcela do capital que se converte em força de trabalho.
O capital mesmo é a contradição em processo, (pelo fato de) que tende a reduzir a um mínimo o tempo de trabalho, enquanto que, por outro lado, converte o tempo de trabalho em única medida e fonte de riqueza. Diminui, pois, o tempo de trabalho na forma de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma de trabalho excedente; põe, portanto, em medida crescente, o trabalho excedente como condição – question de vie et de mort – do (trabalho) necessário. Por um lado desperta para a vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como da cooperação e do intercâmbio social, para fazer com que a criação de riqueza seja (relativamente) independente do tempo de trabalho empregado por ela. Por outro lado, mensura com o tempo de trabalho estas gigantescas forças sociais criadas desse modo e as reduz aos limites requeridos para que o valor já criado se conserve como valor. As forças produtivas e as relações sociais – umas e outras, aspectos diversos do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem frente ao capital unicamente como meios para produzir, fundando-se em sua base mesquinha. De fato, todavia, constituem as condições materiais para fazer saltar essas bases pelos ares. (MARX, 1978, p. 229).
A redução do tempo de trabalho a um mínimo diminui o valor das mercadorias, pois apenas o elemento subjetivo do processo produtivo, a força de trabalho, tem a capacidade de conservar e aumentar o valor do capital. O resultado é a desmistificação do poder da produção reificada: as forças produtivas do trabalho social, que aparecem como forças produtivas do capital, a ele incorporadas na forma de meios de produção, só atuam sobre a produção de valores de uso, só atuam no processo de trabalho. O resultado de um aumento de produtividade é uma massa maior de produtos, porém cada qual contendo um valor individual menor, ou seja, o aumento das forças produtivas do trabalho é diretamente proporcional a quantidade de valores de uso, e inversamente proporcional a quantidade de valor. O processo de valorização depende inteiramente do homem, que é posto para fora da produção pelos meios de produção, que nada acrescentam ao capital do capitalista, pois apenas aumentam a quantidade de valores de uso. Decorre a tendência a queda da taxa de lucro, que ano após ano leva o capital a crises, as quais evidenciam sua instabilidade e seus limites. No entanto, esta constatação não altera a realidade objetiva sobre a qual a sociedade se reproduz. Desenvolvimento humano e desumanização do homem permanecerão enquanto o processo de trabalho estiver subsumido ao capital. E essa subsunção só poderá desaparecer com a supra-sunção da auto-alienação humana, com a supressão positiva da propriedade privada, da divisão social (capitalista) do trabalho e da troca, pelo comunismo, modo de produção no qual o caráter social da humanidade não se mascarará reificado, mas será imediatamente humano.
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[1] “Em alemão, as palavras Entäusserung, Entfremdung e Veräusserung são usadas para significar ‘alienação’ ou ‘estranhamento’. [...] Veräusserung é o ato de traduzir na prática (na forma da venda de alguma coisa) o princípio da Entäusserung” (MÉSZÁROS, 2006, nota 3, p. 19-20).
[2] Segundo Mészáros (2006) o termo alemão Aufhebung significa ao mesmo tempo: transcendência, supressão, preservação e superação. Termo este utilizado por Hegel com conceito que significa a “unidade de opostos”.
[3] Lukács (2007) nos ajuda a compreender que apesar de serem objetos da crítica de Marx, a dialética hegeliana e a economia política clássica contribuíram muito para suas elaborações nos Manuscritos econômico-filosóficos. A dialética idealista, tornada materialista, e o debate acerca da alienação, estranhamento e superação, conceitos já presentes em Hegel, embora de forma abstrata, são contribuições imprescindíveis da filosofia de hegeliana para os desenvolvimentos de Marx; ao mesmo tempo, a economia política clássica permitiu a Marx a análise da atividade produtiva capitalista como particularidade da objetivação, que aqui se apresenta alienada. A crítica de Marx às categorias econômicas da economia política clássica, iluminada pela dialética materialista, permitiu-lhe compreender a auto-alienação humana como fundada no trabalho estranhado, específico da sociedade capitalista, enquanto trabalho assalariado.
[4] Embora de forma distinta. O objeto de trabalho é consumido totalmente em um único ciclo do processo produtivo, enquanto os meios de trabalho são consumidos aos poucos, são depreciados a cada novo processo, até extinguirem-se.
[5] Não se trata da mesma inversão posta pela filosofia idealista de Hegel, tratada no primeiro item. A inversão aqui ocorre no interior do processo produtivo.
[6] Subentende-se que essa é uma relação mediada pelo dinheiro, uma relação monetária, mas na qual o dinheiro surge apenas como meio de troca, não tendo valor em si para o trabalhador, senão nesta função: como meio para adquirir meios de subsistência. E o dinheiro é, ele mesmo, uma forma fetichizada, enquanto equivalente geral, como posto no item anterior.
[7] Porém, como veremos mais adiante, não de forma tão explícita como o será com a subsunção real.
[8] “A direção do capitalista não é só uma função específica surgida da natureza do processo social de trabalho e pertencente a ele, ela é ao mesmo tempo uma função de exploração de um processo social de trabalho e, portanto, condicionada pelo inevitável antagonismo entre o explorador e a matéria-prima de sua exploração [o trabalhador]” (MARX, 1988, p. 250).
[9] Se uma jornada de trabalho com duração de 10 horas produz ao capitalista 6 horas de trabalho não pago, mais-valia, uma jornada de 12 horas aumenta para 8 horas esse tempo de trabalho não pago.
[10] Skill pode ser entendido como se segue: “[...] um conjunto de experiências exercitadas, que pode envolver não apenas a aquisição de conhecimento, mas também um grau maior ou menor de aptidão natural e regras implícitas de operação. Skills são adquiridos individualmente e envolvem a combinação de aprendizagem abstrata, aptidão e experiência [...]” (KAPLINSKY apud MORAES NETO, 2003, p. 47).
[11] “O mecanismo social de produção composto de muitos trabalhadores individuais pertence ao capitalista. A força produtiva originada da combinação dos trabalhos aparece por isso como força produtiva do capital” (MARX, 1988, p. 270).
[12] Sinteticamente os limites da manufatura são: 1) limite na decomposição do trabalho, principal elemento em seu aumento de produtividade; 2) Barreira orgânica, pois o homem é “um instrumento muito imperfeito de produção de movimento uniforme e contínuo” (MARX, 1984, p. 10); 3) problema do transporte, pois os trabalhadores são distribuídos de forma isolada, e a matéria-prima tem de correr de mão-em-mão; 4) Os artífices, permanecem trabalhadores qualificados, e seu “saber” permanece uma barreira ao aumento de produtividade.
[13] “A ciência, como produto intelectual geral do desenvolvimento social, apresenta-se assim como diretamente incorporada ao capital (a aplicação da ciência no processo material de produção, como ciência separada do saber e da destreza dos operários considerados individualmente), – na medida em que a usufrui o capital que se defronta com o trabalho, na medida em que opera como força produtiva do capital que se defronta com o trabalho, apresenta-se como desenvolvimento do capital [...]” (MARX, 1985, p. 126).
[14] “[...] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da essência humana que a riqueza da sensibilidade
humano subjetiva, que o ouvido musical, um olho para a beleza da forma, em sua as fruições humanas todas se tornam
sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais
humanas [...]. A
formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história até aqui. O
sentido constrangido à carência prática rude também tem apenas um sentido
tacanho. Para o homem faminto não existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência abstrata como alimento [...]” (MARX, 2004, p. 110). Nas palavras do Santo Inquisidor, de Ivan Karamázovi, a Deus: “Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. ‘Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!’. Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá o teu templo” (DOSTOIÉVSKI, Fiódor Os irmãos Karamázovi. São Paulo: Nova Cultural, 1995, p. 208).