26/04/2024

Em Defesa da Doença: Primo Levi e Luiz Alberto Mendes enquanto vozes da Morte

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Em Defesa da Doença: Primo Levi e Luiz Alberto Mendes enquanto vozes da Morte

João Gabriel Almeida
Universidade Federal de Santa Catarina
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Resumo: Através da leitura dos relatos de testemunho de Primo Levi e Luiz Alberto Mendes, o trabalho busca compreender a constituição do sujeito dentro do Capitalismo articulando as representações de Vida e Morte com a produção e o consumo e objeto e sujeito dentro dos espaços mais bem acabados do sistema: o campo de concentração e a prisão.
Palavras-chave: Testemunho; Estado de Exceção; Capitalismo; Ideologia
1. Por não fazer nada, declaro-o culpado
Refletindo sobre o julgamento de Bukharin, Žižek, ao refletir sobre a lei, define que obedecê-la não é natural, já que o é desde o início mediado pelo desejo (reprimido) de transgredi-la (Žižek, 1999). Na tradição judaico-cristã, a culpa se refere antes pelo desejo do que pelo ato, o indivíduo já é plenamente culpado perante a sociedade. Não existe inocência possível, o Estado de Exceção sempre se justifica porque sempre há crime. Como Foucault aponta muito bem, há uma defesa da “vida” (Foucault, 2001). Marx foi o melhor teórico sobre a vida ao dizer:
O pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”.  Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. (Marx, 2007: 32-33)
Viver é trabalho. O que excede a vida, o excesso inumano constituinte do próprio ser é o que compromete a vida e para o qual a lei se organiza. E se eliminar o excesso for eliminar o próprio ser humano? A pergunta É isto um homem?, título da obra de Primo Levi, parece-me remeter justamente à isso. O ex-presidiário Luiz Alberto Mendes, com seu conto Nada, ao dizer: “O perigo na prisão é o instante em que a vida decide sobre a capacidade de cada um de sobreviver’’ (Mendes, 2012: 24) parece refletir sobre a mesma questão. Neste trabalho meu intuito não é pensar “a realidade” por detrás dos relatos do campo de concentração e do sistema penitenciário brasileiro, demonstrar através desses relatos o horror de um modo de operar na sociedade. Minha defesa aqui é que o Campo e a Prisão são os exemplares mais bem acabados, a consequência mais bem sucedida do que a organização política ocidental, desde o surgimento do Capitalismo, dedica-se a construir.
2. Campanha de Vacinação
No seu livro em Defesa das Causas Perdidas Žižek sintetiza o efeito do populismo com a seguinte frase:
Em última análise, o populismo é sempre sustentado pela exasperação frustrada de pessoas comuns, pelo grito de “não sei o que está acontecendo, só sei que para mim chega! Isso não pode continuar! Isso tem que acabar! (Žižek, 2011: 285)
Algo tem de ser o “corpo estranho” que está abalando a boa ordem do corpo social.  O judeu ocupou bem essa posição dentro do nazismo. A inversão que o populismo propõe é que os  nazistas não estavam em nenhum momento matando os judeus, mas preservando a vida dos alemães.  Tomemos isso como ponto de partida. Essa questão ecoa na obra de Primo Levi. Em Afogados e Sobreviventes, o autor demonstra um imenso ódio a um alemão que lhe escreve uma carta:
E agora, a questão mais difícil, o insensato ódio de Hitler contra os judeus. Ora, esse ódio jamais foi popular. A Alemanha constava-se acertadamente como o país mais amistoso em relação aos judeus no mundo todo. Nunca, pelo que sei e li, durante todo o período hitleriano até o seu fim, nunca se soube de um só caso de ultraje ou agressão espontânea contra um judeu. Sempre apenas (perigosíssimas) tentativas de ajuda. (Levi, 2004: 151)
Levi responde:
Sua afirmação mais audaciosa é a que se refere à impopularidade do anti-semitismo na Alemanha. Era o fundamento do verbo nazista desde o começo: tinha natureza mística, os judeus não podiam ser “o povo eleito de Deus”, uma vez que o eram os alemães. Não há página ou discurso de Hitler em que o ódio contra os judeus não seja reiterado até a obsessão. Não era marginal ao nazismo: era seu centro ideológico. E depois: como podia o povo “mais amistoso em relação aos judeus” vota no partido e glorifica o homem que definia os judeus os inimigos primeiros da Alemanha, e cujo objetivo político principal era “estrangular a hidra judia”? (Levi, 2004: 153)
As palavras de Žižek: “o inimigo é exteriorizado/reificado numa entidade ontológica positiva” (Žižek, 2011: 281) e  “para o populista, a causa do problema, em última análise, nunca é o sistema como tal, mas o intruso que o corrompeu.”(Žižek, 2011: 262) parecem ter eco nessas afirmações.
É fácil sentirmos asco dessa postura, mas e se nós a repetimos? No lançamento da Unidade de Polícia Pacificadora do Vidigal, Ziraldo lançou uma cartilha para crianças na qual celebrava a entrada daquela população para a “cidadania”. No final um policial aparece sorrindo e falando: “tudo por uma “cidade inteira”(Ziraldo, 2011: 30). A história dessa cartilha é a transformação do menino favelado em cidadão, quando os “maus amigos” vão embora, para os “verdadeiros amigos”, o policial e o turista, entrarem na sua “comunidade”.  Um trecho diz "Breve vão acabar de vez – e para sempre – o medo, a insegurança, a desconfiança, a guerra, os falsos amigos e os falsos heróis"(Ziraldo, 2011: 12). Tudo em nome da vida.  Mas como lidar com a dualidade de eliminar um humano em nome de outro? Simples, tirando-o do que o coloca em condição de humanidade. Assim como na vacina, para eliminar a doença você insere no corpo parte dela na sua forma mais inofensiva. Temos então o Campo e a Prisão.
A operação para tirar o excesso inumano, potencialmente perigoso, é meticuloso. Basta comparar o conto Cela Forte, do agora ex-presidiário Luiz Alberto Mendes, e a entrada no Campo de Concentração:
Neste ponto os SS tinham ideias claras e, sob este aspecto, deve-se interpretar todo o sinistro ritual, diferente de Lager para Lager mas único na substância, que acompanhava o ingresso; os chutes e os murros desde logo, muitas vezes no rosto; a orgia de ordens gritadas com cólera autêntica ou simulada; o desnudamento total; a raspagem dos cabelos; a vestimenta de farrapos. (Levi, 1988: 33)
É só prestar atenção no relato de Luiz e vemos que algo ressoa:
Descemos ao porão. Alguns à minha frente e outros atrás. Era o setor das celas fortes. Se bem não conhecesse nenhuma cela “fraca” por ali. Dentro de uma das celas, mandaram que me despisse. Não estava entendendo nada. Seguia apenas o que me era determinado, perplexo e assustado. Era recém-chegado à “ilha de pedra”, não conhecia nada daquilo tudo.
Fiquei nu rapidamente, na defensiva, esperando o que viria a seguir. Umas canadas  de ferro, talvez. Mas por quê? Eu sabia que isso de motivo, era fácil de eles encontrarem. Há um ano vinha sendo espancado e jogado em celas fortes. Estava acuado e ardia a riscar de relâmpagos, como as tempestades.
Para minha surpresa, os guardas saíram chutando minha roupa. Quando me dei conta do que acontecia, a porta de aço foi violentamente batida em minha cara. (Mendes, 2012: 13)
Nu, isolado.  Em ambos relatos, aparece constantemente a tentativa de descobrir o porquê fazer isso com um ser humano. A resposta é simples: Eles não são humanos, são o “Outro” que ameaçam a vida da humanidade. Seu assujeitamento é assim constituinte de sua própria posição.   Só há sujeito quando saímos do mundo das necessidades. No conto Cela Forte, os primeiros atos não se configuram em história, pois servem somente para a sobrevivência do indivíduo, como se enrolar em papel higiênico para resistir ao frio. É Isto um Homem? Poderia ser alterado para a pergunta há aqui história? Ao diferenciar sujeito e objeto, Žižek diz:
A diferença entre sujeito [subject] e objeto [object] também pode ser expressa como diferença entre dois verbos correspondentes: sujeitar [to subject] e objetar [to object]. O gesto elementar, fundador, do sujeito é sujeitar-se (voluntariamente, é claro): como bem sabiam Wagner e Nietzche, esses dois grandes adversários, o ato mais elevado de liberdade é a demonstração de amor fato, o ato de pressupor livremente o que de qualquer modo é necessário. Se, então, a atividade do sujeito, em seu aspecto mais fundamental, é a atividade de sujeitar-se ao inevitável, o modo fundamental de passividade do objeto, de sua presença passiva, é a que comove, incomoda, perturba, traumatiza a nós (sujeitos): em seu aspecto mais radical, o objeto é aqui que objeta, aquilo que perturba o funcionamento tranqüilo das coisas. (Žižek, 2008: 32)
O judeu, assim como qualquer criminoso, precisa ser objeto, um objeto que sustenta uma fantasia. Quando um corpo biológico vira totalmente objeto se chegou ao fundo. Primo Levi diz “O companheiro que hoje tinha trabalhado ao seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido varrido do mundo; não havia como saber” (Levi, 1988: 14).   Não é a vida que é eliminada do campo, é a morte. O que existiu no campo é matéria de biologia. Tudo que excedesse a vida, o mundo do trabalho, não deveria ser permitido. Ao relatar o contato dos prisioneiros do Campo com os trabalhadores alemães Primo Levi diz:
Porque nós, para os de fora, somos os intocáveis. Os trabalhadores externos, mais ou menos claramente e com todos os matizes entre o desprezo e a comiseração, acham que, se fomos condenados a esta nossa vida, se estamos reduzidos a esta condição deve ser porque temos a mancha de alguma misteriosa, gravíssima culpa. Eles nos ouvem falando muitas línguas diferentes que não compreendem e que lhes soam grotescas, como gritos de bichos; veem-nos escravizados ignobilmente, sem cabelo, sem honra nem nome, a cada dia espancados, a cada dia mais abjetos, e nunca leem em nosso olhar uma luz de revolta, ou de fé. Sabem que somos ladrões e indignos de confiança, e, trocando o efeito pela causa, julgam-nos merecedores da nossa abjeção. (Levi, 1988: 123)
O produto final do Campo de Concentração é esse objeto biológico inofensivo que pode ser inserido na sociedade de forma funcional. Por isso que Primo Levi admite, já na década de 70, que, ao contrário do que ele julgava ao chegar no Campo: “Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam o fundo” (Levi, 2004: 14). Algo escapou, mas o que?
3. Quando o Inferno exibe o Humano
            Há uma passagem de Primo Levi que me emociona. Trata-se da passagem de É Isto um Homem? o Canto de Ulisses. Nele, Primo Levi está encarregado de carregar um panelão de sopa junto com outro prisioneiro. No meio do caminho ele decide traduzir uma passagem da Divina Comédia para seu companheiro. No meio da poesia ele começa a se esquecer e vai percebendo que não conseguiria terminar de recitar:
Eu renunciaria à minha ração de sopa para poder ligar “non ne avevo alcuna” com os versos finais. Esforço-me por reconstruir essa ligação por meio das rimas, fecho os olhos, mordo os dedos; não serve, o resto é silêncio. (…) (Levi, 1988: 117)
Em Afogados e Sobreviventes, mais de 20 anos depois do ocorrido, ele retoma essa questão:
Permanecemos amigos, encontramo-nos várias vezes, e suas recordações coincidem com as minhas: ele se lembra daquela conversa, mas, por assim dizer, sem ênfases, ou com as ênfases deslocadas. Dante, então, não lhe interessava; interessava-lhe eu, minha língua e minhas confusas reminiscências escolares, num período de meia hora e sob o tacão de fome, durante a distribuição da sopa. Ora, ao escrever “daria a sopa de hoje para poder lembrar até o fim”, não mentia e não exagerava. Teria dado verdadeiramente pão e sopa, ou seja, sangue, para salvar do nada aquelas recordações, que hoje, com o apoio seguro do papel impresso, posso reaviver quando quero e de modo gratuito, e que por isso parecem valer pouco.  (Levi, 2004: 119)     
Um dos contos de Luiz Alberto Mendes fala de um jovem que começou a pintar na cadeia:
Passava dias isolado. Úmido e fértil, mergulhava em um espaço emocional-mental onde não havia profundo ou superficial. Tudo era infinito. Sequer se alimentava. Dizia que nesses momentos não estava preso. Era um artista em processo. Sim, de fato parecia louco. Louco de arte. De uma capacidade de leitura de tudo que não lhe bastava o que a todos parecia real. Necessitava criar o suprarreal para expressar o que sentia e o que via. (Mendes, 2012: 94)
A arte aparece nas duas obras como contrariando a vida. Ela deixa esfomeado, faz você abrir mão do seu sangue.  Coisas que no cotidiano são banais, quanto mais restrito ao “mundo das necessidades”, mais se tornam uma escolha à morte. É levar ao limite o que Žižek diz:
 O que seria um ato verdadeiramente livre?, o ato livre de uma entidade numenal, um ato de verdadeira liberdade numenal? Seria conhecer todas as consequências horríveis e inexoráveis de escolher o mal e, mesmo assim, escolhê-lo. Esse seria um ato verdadeiramente não  patológico, um ato de agir sem dar importância aos interesses patológicos. (Žižek, 2008: 40)
Primo Levi, propõe uma leitura para sua experiência:
Lá, naquele momento, valiam muito. Permitiam-me restabelecer uma ligação com o passado, salvando-o do esquecimento e fortalecendo minha identidade. Convenciam-me de que a mente, apesar de premiada pelas necessidades cotidianas, não tinha deixado de funcionar. Promoviam-me a meus olhos e aos olhos do meu interlocutor. Concediam-me um descanso efêmero mas não embotado; ao contrário, libertador e diferencial: um modo, em suma, de reencontrar a mim mesmo. (Levi, 2004: 119)
Proponho uma leitura diferente. Não é porque conservava uma identidade perdida que esse momento foi tão importante, mas, exatamente, por romper a identidade do Lager. Apesar do esforço de identificá-los como alguém destituído de subjetividade, aquele momento, como outros, fazia-os escapar desse significante, do significante de “muçulmano”:
A sua vida é curta, mas seu número imenso; são eles, os “mulçumanos”, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos, hesita-se em chamar “morte”, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. (Levi, 1988: 91)
Em Luiz Alberto Mendes essa  questão aparece de outras formas. No conto Por Um Fio é onde ele mais faz reflexões nesse sentido. É um conto que ele relata uma das vezes que foi torturado na prisão. Há uma frase genial: “Eles não podiam me matar. Eu me segurava nisso. Fora atuado em flagrante; não podia desaparecer.” (Mendes, 2012: 49). Nesse ponto há o fracasso do Capitalismo fora dos marcos do Fascismo. O discurso tecnocrático salva o objeto na medida em que ele não pode desaparecer dos seus números. Ainda há algo do registro civil que o insere como “cidadão”, mesmo que criminoso.  Na literatura de Luiz Alberto Mendes, assim de outros ex-detentos como Jocenir do Diário de Um Detento, percebe-se que algumas questões como os dias de visitas e a autorização de possuir bens ainda os permitem lidar com aquela experiência de maneira mais significável. 
Há outro elemento interessante. Ao contrário do que circula no senso comum, a polícia na cadeia aparece como: “Eram estrangeiros em território que julgavam controlar” (Mendes, 2012: 30). O SS aparece em um lugar similar nos relatos de Primo Levi. Eles estão quase ausentes, são também estrangeiros. Se o opressor não é parte, quem o é?
4. Zona Cinzenta
 Claramente, ao contrário da Prisão, o intuito de objetificação fazia os próprios prisioneiros do campo se perceberem enquanto objeto. No decorrer da leitura de É Isto Homem? essa relação aparece com uma frequência nauseante.  Novatos como fontes de cumbucas, garfos, pão e sopa. Novatos sem nome. Nisso, ele relata:
No tocante aos prisioneiros privilegiados, o raciocínio é mais complexo e até mais importante: a meu ver, é fundamental. É ingênuo, absurdo e historicamente falso julgar que um sistema infernal, como o nacional-socialismo, santifique suas vítimas; ao contrário, ele as degrada, assimila-as a si, e isto tanto mais quanto elas sejam disponíveis, ingênuas, carentes de uma estrutura política ou moral.  (Levi, Primo, 2004, p. 34).
Prosseguindo sua crítica, ele fala desse espaço cinzento:
Muitos sinais indicam que parece ter chegado o tempo de explorar o espaço que separa (não só nos Lager nazistas!) as vítimas dos opressores, e de fazê-lo com a mão mais ágil e o espírito menos turvo do que se fez, por exemplo, em alguns filmes. Só uma retórica esquemática pode sustentar que aquele espaço seja vazio: jamais o é, está coalhado de figuras torpes ou patéticas (às vezes possuem as duas qualidades ao mesmo tempo), que é indispensável conhecer se quisermos conhecer a espécie humana, se quisermos saber defender nossas almas quando uma prova análoga se apresentar novamente, ou se somente quisermos nos dar conta daquilo que ocorre num grande estabelecimento industrial. (Levi, 2004: 34-35)
No final, Primo Levi toca na ferida. E se essa estrutura não é exclusiva do campo? Por que, identificando-a, podemos reconhecer os modos de produção?
Marx, ao explorar o conceito da Força de Trabalho, colocará uma questão chave:
O próprio homem, visto como personificação do trabalho, é um objeto natural, uma coisa, embora uma coisa viva e consciente, e o próprio trabalho é a manifestação externa, objetiva, dessa coisa (Marx, 2011: 238).
O ser humano desprovido dos meios de produção se torna um objeto, uma mercadoria, que possui como valor-de-uso produzir mais valor e tem um preço determinado nas relações de mercado, que se expressa em seu salário. Com isso, estabelece-se uma regra geral de sujeição do indivíduo ao ordenamento sistêmico para a transformação de suas horas em horas produtivas. Quando o ser humano se transforma em mercadoria, ao sistema ele nada mais é que um espelho da soma de riquezas que é capaz de produzir, desprovido de toda a singularidade e incapaz de intervir ativamente como protagonista de sua própria vida, pois a mesma é posse de um dono que julga ter comprado seu tempo. Marx coloca que“Essas diferenças individuais, chamadas em matemática de erros, compensam-se e desaparecem quando se toma certo número de trabalhadores”(Marx, 2011: 375). O papel da fábrica, desde o início, como fica claro na quarta parte do Capital, é de vigiar o indivíduo, controlá-lo, para que se mantenha um nível de produtividade mais elevado possível.
Žižek, baseado em Karatani,  vai reiterar a dicotomia econômica consumo e produção:
A própria tensão entre os processos de produção e circulação é, assim, mais uma vez, uma paralaxe. Sim, o valor é criado no processo de produção; no entanto, é criado ali, por assim dizer, apenas em potencial, já que só se efetiva como valor quando a mercadoria produzida é vendida e o ciclo D-M-D assim se completa.
A lacuna temporal entre a produção de valor e sua concretização é fundamental aqui: embora o valor seja criado na produção, sem a conclusão bem-sucedida do processo de circulação não há, stricto sensu, valor – a temporalidade, no caso, é aquela do futuro do pretérito, ou seja, o valor não “é” de imediato, ele apenas “seria”. É realizado retroativamente, encenado de modo performativo. (...) É em razão dessa lacuna entre em-si-mesmo e por-si-mesmo que o capitalismo precisa da igualdade e da democracia formais. (Žižek, 2004: 180)
A possibilidade de circular na esfera do consumo é o que funda a subjetividade. É o espaço de “transgressão” da lei, na qual o trabalhador precisa, para o funcionamento do Capitalismo, se ver como um indivíduo portador de desejos. O excesso inumano se manifesta nas relações econômicas, no poder fazer da sua vida o que quiser, no sentido de gastar o fruto do seu trabalho como bem entender.
 Primo Levi saca o imprescindível: a objetificação do campo não é nada senão um correlato da objetificação do trabalhador enquanto Força de Trabalho. O filme A Viagem, dos  irmãos Wachowski, criadores de Matrix, remete ao que seria uma experiência mais bem-sucedida que o campo(trabalhadoras  que tem a vida totalmente controlada, criadas In Vitru, cuja alimentação consiste em uma ração gerada pelos corpos das suas iguais que atingiram o prazo de validade imposto).  “O privilégio, por definição, defende o privilégio” (Levi, 2004: 34), a circulação defende a circulação. A grande antropofagia do mercado era nua e crua no campo. A percepção de que para ocupar aquela posição se consumia a vida de alguém se via nos (sem)rostos dos mulçumanos.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento (Levi, 1988: 91)
A condição de zona cinzenta é a minha e dos que me lêem. Dos que sobrevivem à objetificação e tem Direito à Morte, no sentido blanchotiano, direito ao gasto (Blanchot, 1997). O que o Primo Levi pensa dessa posição?
Onde existe um poder exercido por poucos, ou por um só, contra a maioria, o privilégio nasce e prolifera, inclusive contra a vontade do poder mesmo, mas é normal que o poder o tolere e o encoraje. Limitemo-nos ao Lager, que, no entanto, mesmo em sua versão soviética, pode bem servir como “laboratório”: a classe híbrida dos prisioneiros-funcionários constitui sua base e, simultaneamente, o traço mais inquietante. É uma zona cinzenta, com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une os campos dos senhores e dos escravos. (Levi, 2004: 36)
A existência da zona cinzenta no campo é  onde a relação entre Vida e Morte explodem em todas suas tragédias. Quem está na zona cinzenta tem nome: Pikolo, Alberto, Schepschel, L., etc. Assim como o Primo Lévi, eles podiam falar. A linguagem é Morte. A zona cinzenta é onde existe linguagem, onde há Nome. No capítulo sobre Comunicação de Afogados e Sobreviventes, Primo Levi pensa em como aprender o alemão era uma das primeiras seleções.  Retomemos a diferença do sujeito e objeto que Žižek falava e lembremo-nos da observação que o gesto fundador do sujeito é sujeitar-se voluntariamente. O sujeito se transforma em sujeito quando se aliena na linguagem, aceita o Nome-do-Pai. O sujeito no campo se transforma em sujeito quando se aliena na linguagem do opressor, nas suas regras.  Talvez o esforço do capitalismo seja cada vez mais separar a dimensão de circulação da produção, o que tem sido chamado de novos apartheids.
5. (In)Concluso
Pensar que essas experiências revelam respostas seria um erro. Cabe-nos posicionarmo-nos perante o que esses testemunhos nos revelam, afirmar ou forçar a implosão do que gerou essa lógica. Os muçulmanos se multiplicam nas favelas, centros de refugiados, prisões, etc... Inserimos cada vez mais esse objeto ''inofensivo'' para manutenção do bem-estar social. Os testemunhos de quem voltou de espaços de exceção nos permitem refletir sobre nossa condição dentro da Zona Cinzenta e levar em conta que nossa ação passará, também, por entender as contradições que a Ideologia burguesa cria no cerne da classe trabalhadora, sobrevivendo às custas de uma guerra intraclasse.
Bibliografia:
Blanchot, Maurice, A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
Foucault, Michel, História da sexualidade. I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1980
Levi, Primo, É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
-, Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
Marx, Karl, A ideologia alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feurbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo, 2007
-, O Capital. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011, v.1.
Mendes, Luiz Alberto, Cela Forte. São Paulo: Global, 2012.
Ziraldo, Cartilha UPP, em <http://www.upprj.com/upload/multimidia/Cartilha_Ziraldo_UPP.pdf.>  Acesso em 25/04/2014.
Žižek, Slavoj, A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.
-, Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo, Boitempo, 2011.
-, “The parallax view: Karatani’s trancritique on Kant and Hegel”. Disponível
em: <https://newleftreview.org/II/25/slavoj-zizek-the-parallax-view>. Acesso em: 07/04/2014
Filme:

A Viagem. Direção:  Lana Wachowski, Tom Tykwer, Andy Wachowski. [S.l.]: IMAGEM FILMES, 2012. 1 DVD (172 min.), NTSC, color. Título original: Cloud

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