26/04/2024

El problema de la cosificación en Historia y Conciencia de Clase, de Georg Lukács

Por

 

Bruno Moretti Falcão Mendes[1]
 
 
Resumo
Este trabalho tem como objetivo analisar a discussão filosófica acerca da reificação desenvolvida por Georg Lukács em História e Consciência de Classe (1923). Nessa obra, a discussão da reificação apresenta uma originalidade, pois, se em Marx a discussão da reificação centrava-se, sobretudo, nas relações materiais entre os homens no interior processo produtivo, em História e Consciência de Classe a própria teoria está em conexão com o processo de formação material da objetividade reificada. A teoria em questão seria a teoria formada no desenvolvimento da filosofia clássica alemã, pois, ao analisar primeiramente as formas objetivas da reificação na estrutura socioeconômica – a conceituação da reificação a partir das análises econômicas de Marx –, para depois deslocar o problema para a formação reificada da consciência no pensamento filosófico, Lukács apresenta a sua interpretação materialista acerca da formação da consciência: esta última possui uma base de formação material nos moldes da produção capitalista de mercadorias. Esse deslocamento efetuado representa um vínculo entre o marxismo e a filosofia clássica alemã em torno da questão da formação do sujeito na história. Em suma, a própria história da filosofia revelaria os fundamentos reais e concretos da reificação do sujeito na sociedade capitalista. Este foi o esforço de Lukács em identificar como em todos os momentos das antinomias filosóficas, de Kant à Hegel, havia um Programa, um intento de emancipação universal para o sujeito, ainda que desenvolvido apenas ao nível especulativo-conceitual.
Palavras-chave: Lukács. Reificação. Antinomias. Filosofia Clássica Alemã. Formação Da Consciência.
 
 
 
Introdução: Um breve contexto histórico sobre História e Consciência de Classe
História e Consciência de Classe, obra que contempla um conjunto de ensaios publicados em 1923, revela a forma própria com que Lukács desenvolveu o conceito de reificação a partir das análises de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, sobretudo no capítulo sobre A mercadoria, presente no Livro 1, Vol.1 de O Capital (MARX, 1983). Lukács entende o fetichismo da mercadoria como uma consequência histórica necessária da objetividade material reificada no plano da formação do sujeito. Sob o modo de produção capitalista de mercadorias, as relações humanas reificadas produzem um aspecto nebuloso que impossibilita para as formas objetivas do pensamento burguês o conhecimento da gênese real da formação fragmentada e reificada do sujeito. Esta barreira que impede o verdadeiro conhecimento de si da realidade é o fetichismo da mercadoria.
Em História e Consciência de Classe, Lukács procurou acompanhar como a formação do pensamento filosófico burguês estaria circunscrita aos limites impostos pela “estrutura reificada da consciência” (LUKÁCS, 2003, p.240). O desenvolvimento da consciência filosófica reificada, para Lukács, exemplificaria de modo fecundo dois aspectos fundamentalmente ontológicos: 1) o processo de formação do sujeito na história no âmbito das relações fetichistas, ou seja, ao ser reificado corresponde uma formação reificada do pensar; 2) a forma em que estaria velado a um ser social específico o acesso ao substrato material e histórico específico da reificação.
A exposição de Lukács apontaria as exigências materialistas da formação filosófica no idealismo alemão, destacando em um primeiro momento a forma objetivamente reificada das relações sociais no modo de produção capitalista de mercadorias, para posteriormente deslocar a análise para a discussão filosófica da formação do sujeito e da subjetividade fragmentada e reificada.
Na produção intelectual relativa ao período de 1923, Lukács ainda não havia tido contato com os Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2005), obra na qual Marx analisa o estatuto da alienação do trabalho em três aspectos: 1) a alienação diante do produto da atividade do trabalho, 2) a alienação diante do processo do trabalho e por fim, 3) a alienação do ser social em relação a si mesmo[2].
Mesmo sem a leitura dos Manuscritos, Lukács não torna indiferentes os conceitos de reificação, fetichismo da mercadoria e alienação e ambos constituem um papel específico no desenvolvimento estrutural da discussão filosófica da reificação: a) a reificação como a inversão estrutural da realidade social sob o domínio do capital: o domínio do processo material de produção de mercadorias sobre o homem. Assim, temos as relações sociais entre os homens assumindo a forma de uma relação objetiva entre coisas e a mercadoria é compreendida como forma estrutural universal: um hieróglifo mistificador que oculta as características sociais do modo de produção capitalista; b) o fetichismo da mercadoria é exatamente o caráter específico produzido a partir das relações humanas reificadas e que promove uma forma de encantamento mistificador que impossibilita o conhecimento verdadeiramente concreto da realidade, a compreensão dos aspectos essenciais nas mediações da totalidade concreta e, como consequência, o conhecimento da gênese histórica dos problemas da formação do sujeito; c) a alienação refere-se às formas objetivas para o sujeito, aos aspectos objetivos do trabalho alienado no âmbito da formação do sujeito[3].
Atentar para a diferenciação entre estes três conceitos torna-se necessário para melhor redimensionar o peso da discussão da reificação promovida por Lukács na esteira nas produções intelectuais do marxismo no século XX, pois o Lukács de 1923 teve o mérito de promover uma teorização filosófica do processo material de reificação capitalista. O trânsito operado por Lukács, entre os pressupostos críticos de Marx à filosofia recolocava a dimensão subjetiva da formação da consciência do sujeito da história no interior das discussões do marxismo, conferindo à História e Consciência de Classe  o papel renovador no período.
A renovação para o período vinha justamente no sentido de que Lukács, ao dar ênfase à subjetividade numa perspectiva dialética da reificação, que exigia uma sólida apropriação filosófica de Kant e todo o seu legado representado no idealismo alemão (Fichte,Schiller e Hegel), coloca-se no contraponto ao objetivismo cientificista predominante no campo do marxismo, seja em relação ao burocratismo sectarista de Béla Kun, ou em relação ao revisionismo de Bernstein e até mesmo Kautsky.[4]
O marxismo revolucionário, em nome da pretensa cientificidade, tentara depurar o seu método de qualquer traço da dialética de Hegel. Em História e Consciência de Classe, o retorno à dialética de Hegel representava mais uma tentativa de acertar as contas do materialismo histórico com a filosofia e estabelecer um vínculo dialético entre as bases da teoria filosófica alemã e a prática revolucionária.
Como Lukács afirmara no famoso Prefácio de 1967 à História e Consciência de Classe, “para um retorno revolucionário ao marxismo, era um dever óbvio, portanto, renovar a tradição hegeliana do marxismo”. (2003, p. 21). A renovação do hegelianismo como condição necessária para o acesso ao elemento estruturador da obra de Marx agregava outros autores como Karl Korsch e Ernst Bloch, que produziram respectivamente Marxismo e Filosofia (1923) e o Espírito da Utopia (1918-1923): obras as quais, juntamente com a obra de Lukács, emergiam do mesmo cenário teórico e prático do período.
O cenário era a conjuntura que se apresentava após a Segunda Internacional Comunista e toda a doutrinação teórica proveniente que procurava tornar o marxismo a ideologia oficial. Com efeito, a renovação filosófica do marxismo a partir da apropriação de Hegel representava um ponto comum entre estes três autores: a recusa ao reducionismo, ao mecanicismo e ao naturalismo, comuns do período, salvaguardando a tradição marxista em sua verdadeira dialética revolucionária[5].
A obra de Lukács representou um esforço extremo nesse sentido, pois a fundamentação filosófica constituiu-se como a base para a discussão teórica da reificação. Ao lançar mão de uma análise cuidadosa da dialética de Hegel e a sua apropriação materialista a partir de Marx, Lukács não objetivou simplesmente uma efetivação forçosa de um postulado hegeliano lógico-metafísico acerca da questão sujeito-objeto idêntico, mas procurou resolvê-la para além da estreiteza formal e reificada presente na esteira da tradição marxista do período.
Há de se destacar toda uma vasta e heterogênea produção do marxismo contemporâneo que, de alguma forma, dialogou com História e Consciência de Classe. Sobre o peso da obra para as posteriores discussões filosóficas no âmbito da tradição marxista, Michael Löwy afirma que “a análise de Lukács da sociedade moderna, no conjunto de suas manifestações, através da categoria da reificação, foi uma das fontes mais estimulantes e mais férteis da teoria social no século XX”. (1990, p. 69). Essa grande influência se estende entre pensadores do porte de Theodor Adorno e Max Horkheimer, Karel Kosik, Jürgen Habermas, dentre tantos outros.
 
Alguns aspectos gerais acerca da discussão filosófica da reificação em  e Consciência de Classe
A forma com que Lukács equaciona o problema sujeito-objeto em bases materiais, o seu esforço e desprendimento intelectual ao visualizar o processo de autorrealização do sujeito a partir de uma estrutura histórica específica do capitalismo moderno – o modo de produção de mercadorias –, como auto-objetivação, e a relação desta auto-objetivação com as formas progressivas de consciência permitem identificar objetivamente e subjetivamente a formação material reificada sob o domínio do capital.
Lukács desloca a análise da reificação capitalista para a subjetividade presente na produção da teoria filosófica que pretendia solucionar a fragmentação reificada do sujeito. A teoria filosófica, como Lukács identificara, permite revelar exemplos fecundos das formas reificadas e a que estágio fetichizado as relações humanas reificadas são representadas pelo pensamento burguês.
Nestas considerações, identificamos o elemento distintivo no processo gradual de Marx à Lukács, pois, se em Marx a teoria do fetichismo da mercadoria e da alienação reporta basicamente à estrutura das relações materiais entre os homens, em História e Consciência de Classe a originalidade está no fato de que a própria teoria que reporta ao aspecto fenomênico das relações materiais já é objeto da reificação. Para Lukács, a teoria já afetada pela objetividade reificada estaria registrada de modo significativo no desenvolvimento da filosofia clássica alemã, na forma da progressão antinômica do pensamento.
O presente trabalho tem como intuito analisar a discussão filosófica acerca do fenômeno da reificação desenvolvida por Lukács em História e Consciência de Classe. Será o nosso propósito estabelecer a relação entre o caráter fetichista da mercadoria com a formação reificada da consciência filosófica na trajetória da filosofia clássica alemã, nos dois grandes capítulos desenvolvidos nesse trabalho dissertativo. Pois, ao tratar primeiramente da teoria da reificação a partir das análises econômicas de Marx para depois conduzir a discussão ao nível filosófico – da formação reificada no pensar filosófico caracterizado pela progressão das antinomias – Lukács faz saber que a formação da consciência filosófica no idealismo alemão possui uma base de formação material; a produção capitalista de mercadorias.
Este deslocamento[6] revela a conexão entre o marxismo e a filosofia clássica alemã em torno da questão da formação do sujeito na história. Abordaremos mais detidamente as condições e as formas que possibilitam situar a trajetória da filosofia alemã como tentativas de se produzir uma síntese do sujeito universal autoconhecedor de si mesmo na produção da história, e como essa sequência de tentativas esbarra no caráter fetichista de sua própria formação. O fetichismo da mercadoria, exposto através da análise do plano material e objetivo da formação reificada, oculta para a filosofia o sentido realmente histórico da formação do sujeito; a formação histórica sob o domínio do capital, visualizada no trabalho alienado da divisão social do trabalho.
O que se pretende neste estudo é mostrar como a exposição de Lukács acerca da história da filosofia permite revelar a produção do fetiche, pois, a cada nível de desenvolvimento filosófico corresponde uma problematização do ser e a tentativa de superar a reificação da subjetividade. Estes níveis de problematização são registrados através da progressão das antinomias do pensamento burguês; progressão esta marcada por avanços e distanciamentos, tentativas de solução lógico-metodológica, aporias e imprecisões conceituais no trato com a questão do sujeito autoprodutor de si mesmo. Contudo, a progressão das antinomias permite interpretar dialeticamente as exigências materialistas que determinam a formação ao nível da consciência.
Esta afirmação significa dizer que o desenvolvimento filosófico se apresenta como etapas sucessivas na busca pelo conhecimento de si na realidade, no desejo de tomar a direção da realidade a um nível universal pelo sujeito. Este processo permite compreender a formação do sujeito em suas várias dimensões; sujeito do conhecimento, sujeito prático, sujeito estético e a Bildung, que compreende estas formações parciais do sujeito como momentos em contradição da própria formação do sujeito na perspectiva da totalidade. Estas soluções, das quais são destacados alguns dos representantes mais significativos em cada um dos momentos da filosofia clássica alemã (Kant, Fichte, Schiller e Hegel) buscam superar o aspecto contemplativo que penetrara na subjetividade reificada do sujeito (questão que envolve o problema da coisa em si e consequentemente, a indiferença da forma em relação ao conteúdo).
Mas é exatamente acompanhando a formação do sujeito no plano filosófico que permite a Lukács apontar a solução para a contemplação na práxis efetiva do sujeito ao nível concreto da história, a partir da figura do proletariado, ou em outros termos, como Lukács nos apresenta uma interpretação dialética do processo da reificação. Sobre essa passagem de uma perspectiva da Bildung como formação da consciência de si para uma perspectiva do proletariado como formação da consciência de si da realidade reificada, realizar-se-á apenas alguns comentários gerais na conclusão.
Lukács mostrará como a teoria constituída no movimento da filosofia alemã é gestada a partir destas exigências da realidade, “pois a consciência de si mesmo nasce num mundo que lhe é estranho, descobre-se enquanto sujeito das relações e faz oscilar o mundo reificado através da mediação consciente”, ou seja, “na análise do caráter fetichista da mercadoria, Lukács procura em História e Consciência de Classe, a chave para dissolver essa imediatez” (MÜNSTER, 1993, pp. 44-5). A Bildung em Hegel seria o momento em que já seria possível visualizar a alienação e a exploração na sociedade capitalista ao nível do pensamento, ou seja, seria possível apontar para além da formação material reificada através da figura do espírito.
 
A questão sujeito-objeto em História e Consciência de Classe: Lukács e o legado hegeliano
Lukács, em História e Consciência de Classe, procurou, por meio de uma densa e cuidadosa exposição acerca da subjetividade do passado, a solução para o problema da reificação capitalista. Em tempo, a subjetividade do passado refere-se às formas com que os principais representantes da filosofia clássica alemã assumem os problemas, impasses e possibilidades de constituição do sujeito autoconhecedor de si. Mas, ainda que a questão da realização do sujeito na história e, por assim dizer, o substrato material da práxis humana só pode ser interpretada filosoficamente por meio de conceitos, postulados lógico-metafísicos, o objeto social que envolve a práxis – as suas formas de objetividade –, é assinalado por Lukács durante todo o movimento filosófico das antinomias do pensamento burguês.
Por esse aspecto, a fundamentação filosófica que se apresenta na discussão central da obra de 1923 possui um objetivo bem definido: o de mostrar como a própria história da filosofia revela os fundamentos reais e concretos da reificação do sujeito na sociedade capitalista. Este foi o esforço de Lukács em identificar como em todos os momentos das antinomias filosóficas, de Kant à Hegel, havia um Programa, um intento de emancipação universal para o sujeito, ainda que desenvolvido apenas ao nível especulativo-conceitual.
A apropriação da dialética de Hegel por Lukács possui um peso inquestionável no alicerce argumentativo e na perspectiva metodológica de História e Consciência de Classe. Mas, em Hegel o trato filosófico com a função prática da teoria como consciência de si da realidade diz respeito a uma realização do sujeito-objeto idêntico no processo da história a partir de uma construção lógico-filosófica da exposição fenomenológica da consciência, e que não se confunde com a consciência da verdadeira essência das relações materiais das forças produtivas na sociedade capitalista dividida em classes sociais (aqui se situa a perspectiva de Lukács: a consciência de si como classe na realidade reificada do capitalismo moderno). Embora a renovação da filosofia de Hegel tivesse permitido os alicerces para um programa metodológico dialético, a distinção acima se faz necessário.
Na Fenomenologia do Espírito, a Bildung seria a formação da consciência como consciência-de-si – em níveis de mediação e efetivação –, a fluidificação entre a subjetividade da consciência e a objetividade do ser. Neste aspecto, a noção de teoria desenvolvida no trajeto histórico da filosofia clássica alemã e analisada por Lukács apresenta-se como conhecimento de si da realidade produzida pelo sujeito. Esse projeto resulta em fracasso por não desvelar o enigma da realidade concreta, o processo de produção de mercadorias na sociedade capitalista, mas, por outro aspecto, a abordagem materialista e histórica de Lukács possibilita situar a filosofia clássica alemã como uma série de tentativas de compreender o processo de autoprodução do sujeito na sua própria história, numa realidade concreta em que, dominada pela quantificação abstrata da produção de mercadorias, produz o seu próprio caráter enigmático, o processo reificante de formação incompreensível para o pensamento filosófico e que oculta o caráter real do sujeito da história.
 
A história seria este processo de formação do fetiche, que, “desfetichizado”, possibilita o fluir efetivo da formação oculta. Isto requer uma conscientização do processo, a ser obtida nos termos de uma teoria desenvolvida na filosofia clássica alemã, na qual se reflete no plano teórico a formação prática efetiva (MAAR, 1992, p. 173).
 
A formação reificante tendo como fundamento o trabalho fragmentado e alienado determina o movimento da formação da consciência na filosofia clássica alemã como registros filosóficos através da sequência das antinomias; impasses conceituais e “uma falta de clareza” (MAAR, 1992, p. 176) quanto aos dados concretos dos conteúdos destes conceitos, e deste modo, a filosofia só pode apresentar uma síntese do sujeito “concreto” da história pelo pensamento de modo universal e não empírico.
 
Por um lado, a filosofia apresenta o movimento formativo da consciência como movimento antinômico, “uma oscilação”, “uma falta de clareza. O idealismo alemão apresentara a formação do sujeito como uma tentativa de síntese de um sujeito universal, não empírico. Em Kant, o sujeito transcendental, que corresponde que à “unidade sintética da apercepção”; em Fichte, a faculdade produtora sintética originária, o ‘ato’; em Schiller, a educação estética da humanidade, em suas etapas sucessivas; em Hegel, o espírito objetivo, como contradição em processo. (Ibid, 1992, p. 176).
 
No contexto deste cenário que representa etapas graduais do conhecimento de si no movimento de autoprodução do sujeito da história, ainda que de modo transcendental, Hegel traria um elemento fundamental para a compreensão da relação dialética entre sujeito-objeto: o trabalho como elemento produtor na constituição da consciência. Em termos dialéticos, o trabalho seria um elo de mediação, através da objetivação entre o sujeito e o objeto.
A Bildung hegeliana seria justamente essa associação entre o processo de formação cultural e o processo de formação da consciência-de-si através do trabalho. Nestes termos, Hegel salienta na Fenomenologia do Espírito, ao tratar da dialética do senhor e do escravo, que o “trabalho forma” (HEGEL, 2005, p. 150; grifo do autor), sendo o elemento produtor dos conteúdos culturais de um processo que carrega as contradições como momentos de formação na perspectiva de uma totalidade.
Mas essa referência à universalidade através da figura do espírito objetivo resulta em uma séria de emaranhados e insucessos e não na formação da consciência-de-si, já que o trabalho que forma é na realidade deformador para o ser social. A formação pelo trabalho – nos moldes da produção material capitalista – está subsumida pela formação do capital, pelo caráter aviltante do processo de trabalho que se torna alienado para o sujeito produtor. Desvelar o conteúdo histórico dessas formas reificadas (que permanecera um invólucro para toda a filosofia clássica alemã), na medida em que possibilitem uma relação concreta com a realidade histórica, como consciência-de-si da realidade reificada, será o objetivo de Lukács.
 
Em Lukács, a perspectiva de uma dialética sujeito e objeto é trazida para um plano materialista e histórico, tendo como respaldo a teoria do fetichismo da mercadoria de Mar, que permite compreender como o aspecto da mercadoria torna-se uma categoria generalizável do ser social. Nestes termos, a perspectiva dialética da totalidade “promove uma refundação dialética da crítica marxiana, procurando apreender o capitalismo como uma totalização objetiva, como uma reconstrução que abrange [...] as formas da consciência em sua objetividade, como cultura e ciência” (MAAR, 2000, p. 123).
 
O último momento na progressão das antinomias. O método dialético: a produção do sujeito produtor
Como procuramos destacar a partir da análise do capitulo central de História e Consciência de Classe, a progressão antinômica verificada no trajeto da filosofia clássica alemã traz consigo “a fragmentação reificada do sujeito [e] a rigidez e a impenetrabilidade – igualmente reificadas – dos seus objetos”. (LUKÁCS, 2003, p. 294). Os impasses e imprecisões conceituais em torno do sujeito conhecedor de si mesmo é a reprodução no pensamento das formas objetivas da realidade reificada, ou seja, das condições de existência que envolve o ser social.
O desenvolvimento filosófico registrou níveis distintos de dilaceração do sujeito, que, por sua vez, acompanhava a fragmentação reificada do objeto. O trajeto revelou que em Kant, a tentativa de solucionar o problema da reificação através da síntese de um sujeito universal do conhecimento ainda estava focalizada no objeto, determinada pela ideia da natureza em correspondência às leis gerais. As etapas seguintes revelariam uma flexibilidade entre as determinações da natureza e a esfera da liberdade subjetiva. A disposição do método sobre o objeto, através da rigidez da predicação conceitual do ser, como em Descartes, por exemplo, vai sofrendo alterações na medida em que o método expressa a tentativa de se superar as formas reificadas de existência do ser social. A mudança gradativa de foco do objeto para o sujeito e operada na filosofia clássica alemã a partir de Fichte correspondia a uma orientação fundamentada na subjetividade da liberdade de criação do objeto, o que implicava numa diminuição da rigidez do conceito.
A tentativa de superar a rigidez da estrutura conceitual relativa à dinâmica do ser na forma de uma reconstrução da unidade humana pela formação estética resultou num dilaceramento ainda maior do sujeito. Correspondendo ao domínio do objeto amplamente reificado, o sujeito é fragmentado em sujeito do conhecimento, sujeito ético-político e sujeito estético. O estágio a que chega a filosofia clássica alemã confronta novamente a questão do dilaceramento fragmentado do sujeito. A filosofia deveria encontrar um método no qual a fragmentação do sujeito fosse compreendida como uma etapa necessária na formação do sujeito.
 
O restabelecimento da unidade do sujeito e a libertação intelectual do homem toam conscientemente o caminho da desintegração e da fragmentação. As figuras da fragmentação tornam-se então etapas necessárias para se chegar ao homem restabelecido e se dissolvem ao mesmo no vácuo da irrealidade, adquirindo sua justa relação com a totalidade compreendida e tornando-se dialéticas. (Ibid, 2003, p. 295).
 
A filosofia clássica alemã chega então a um nível de evolução que “a problemática ultrapassa agora a pura teoria do conhecimento, que apenas tentou procurar as ‘condições de possibilidades’ daquelas formas do pensamento e ação que haviam sido dadas em ‘nossa’ realidade” (Ibid, 2003, p. 294). Buscar a unidade do sujeito fragmentado através de uma “teoria estética” havia tornado ainda mais fragmentado o sujeito produtor, o “nós” do sujeito em seus mais diversos níveis e significados. Como então encontrar a gênese dessa produção fragmentada? O foco não recairia mais na gênese do objeto pelo sujeito, mas no próprio sujeito, produtor e produto da realidade.
Retomando, em Hegel o foco reside definitivamente no homem, no sujeito cindido que não está restrito às condições formais de possibilidade de produzir o conhecimento ou nas condições formais de ação, mas esse sujeito já é conhecimento e ação ao mesmo tempo; é consciência em sua realização histórica. O sujeito é o movimento dialético da consciência como saber e ser. Busca-se superar a cisão do sujeito a partir dos próprios elementos cindidos numa perspectiva da totalidade. Paralelamente, a rigidez do objeto é dissolvida, sendo a sua conceituação parte constituinte na formação no plano da consciência.
A gênese do sujeito faz necessário que os seus momentos fragmentados sejam orientados em torno de uma perspectiva da totalidade. Assim, os quadros que representam os aspectos do sujeito fragmentado; o sujeito do conhecimento, o sujeito ético-político e o sujeito estético não devem ser considerados isoladamente, mas sim como momentos parciais do todo em que a verdade se manifesta como o falso. O sujeito é consciência em seus mais variados níveis constitutivos e a consciência promove, em seu movimento dialético, uma interação entre o conteúdo das formas conceituais e a conceituação dos momentos da experiência que a consciência faz a si mesma no objeto.
Hegel estabelece “a guinada [Wendung] na questão metodológica [que] consiste no método dialético desenvolvido como processo de formação cultural [Bildung] [...] a partir do texto da Differenz e na Fenomenologia” (MAAR, 1988, p. 315). A sua concepção de formação da cultura compreende a cisão e a alienação como momentos necessários numa perspectiva da totalidade concreta. Eis que, no método dialético, todas as oposições fundamentais da filosofia confluem numa interação entre a subjetividade absoluta da liberdade e a objetividade absoluta do ser.
 
A Bildung é [...] a libertação e o trabalho de libertação superior, ou seja, o ponto de passagem absoluto para a infinita substancialidade subjetiva da esfera ética [Sittlichkeit – o âmbito da socidade civil] não mais imediata, natural, mas espiritual, erigida em figura da universalidade. – Esta libertação é no sujeito o trabalho penoso frente à mera subjetividade do comportamento, frente à imediatez do desejo, como frente ao orgulho subjetivo do sentimento e do arbítrio do gosto. Que ela seja este trabalho penoso constitui uma parte do desagradável que lhe cabe. Mas mediante este trabalho da Bildung a vontade subjetiva ela próprio adquire em si a objetividade pela qual se torna unicamente merecedora e capaz de ser a realidade [Wirklichkeit] da ideia (HEGEL apud MAAR, 1988, p. 313).
 
Nesse contexto, a Bildung seria a formação dialética da consciência como consciência-de-si – que comporta a fluidificação necessária entre sujeito e objeto – através de níveis de mediação entre a subjetividade da consciência e a objetividade do ser. Nesse contexto, o trabalho apresenta-se como o elemento produtor dos conteúdos culturais desse processo de formação que absorve a particularidade como negatividade em contradição, e não como simples oposição.
Nesse estágio da filosofia já é possível compreender o processo de formação dialética do sujeito como totalidade concreta. Na terminologia hegeliana, o espírito objetivo é o movimento dialético da consciência que se eleva da consciência singular à consciência-de-si universal, como espírito; “o espírito é, portanto, a verdade da razão: a consciência de si universal se tornou ela própria um ser em-si e para-si. É esse ser que, por sua vez, se desenvolve para nós na dimensão da história e explicita seu conteúdo vivo” (HYPPOLITE, 1999, p. 343). O conteúdo vivo desse espírito é representado na figura do indivíduo burguês individual que se pretende tornar universal por meio do trabalho, “o elemento mediador entre o particular e o universal”. (MAAR, 1992, p. 177).
O que está em questão para Lukács nesse momento é destacar a originalidade da dialética hegeliana: a concepção da formação do sujeito numa perspectiva da totalidade, na qual a cisão e a fragmentação reificada do sujeito são elementos constitutivos do processo em contradição que permite situar a dialética de Hegel em um estágio de superação em relação às posições filosóficas restritas à metodologia do racionalismo moderno. Sujeito e objeto, consciência e ser estão integrados numa perspectiva da totalidade. Na lógica dialética da totalidade, a forma não deveria mais estar indiferente ao conteúdo ao fazer a relação necessária com a história. A fixidez conceitual deve ser superada para permitir a fluidificação entre elementos antes compreendidos simplesmente como opostos.
 
Tais opostos, que deveriam valer como produtos da razão e como absoluto, foram expostos de forma diferente pela cultura de diferentes épocas, e o entendimento deu-se a esse trabalho. Os opostos que, outrora, tinham significado, sob a forma de espírito e matéria, alma e corpo, fé e entendimento, liberdade e necessidade, etc.; em esferas mais limitadas e ainda de modos diferentes, e ligavam a si todo o peso do interesse humano, transformaram-se, com o progresso da cultura, na forma das oposições entre razão e sensibilidade, inteligência e natureza e, para o conceito universal, entre subjetividade absoluta e objetividade absoluta. Suprimir tais opostos tornados fixos é o único interesse da razão. Este seu interesse não significa que ela se coloque em geral contra as oposições e as limitações; pois a cisão necessária é um fator da vida, que se forma a si mesma opondo-se eternamente, e a totalidade só é possível, na forma suprema da vida, através do restabelecimento a partir da suprema separação (HEGEL, 2003, p. 38).
 
A reunificação da unidade concreta a partir de uma perspectiva da totalidade ganha substrato com a noção do devir, na qual os elementos negativos da particularidade não são desprezados arbitrariamente, não se tem a ênfase no todo em detrimento das partes e sim a ideia de um processo de negação determinada. O que resulta em processo depende do que foi negado, possuindo determinidade. Dessa forma, a gênese do produtor, a supressão das formas fixas que representam a dualidade entre sujeito e objeto, a supressão da problemática da irracionalidade, da coisa em si “concentram-se doravante, portanto, na questão do método dialéctico. Nele, a exigência do entendimento [...] assume uma forma clara, objetiva e científica” (LUKÁCS, 2003, p. 295).
Lukács faz menção à longa trajetória do método dialético na história da filosofia, mas que apenas a partir de Hegel assume algo de qualitativamente distinto dos períodos anteriores. Para superar os limites do racionalismo formal é necessário que a inteligibilidade do conceito se oriente em função do problema lógico do conteúdo e do problema da irracionalidade, “de modo que, pela primeira vez – com a Fenomenologia e a Lógica de Hegel –, começou-se a compreender de maneira consciente todos os problemas lógicos” (Ibid, 2003, p. 296; grifo do autor).
Assim, surgia uma lógica inteiramente distinta [7], “uma lógica [...] do conceito concreto, da totalidade” (Ibid, 2003, p. 296). O processo dialético implica na superação das oposições rígidas que caracterizavam a dualidade sujeito-objeto, permitindo níveis de articulação entre a objetividade do ser e a subjetividade do sujeito. Esta relativização fluida e dinâmica entre os dois opostos estaria nas “dialéticas anteriores” limitada a uma sobreposição “ou, quando muito, desenvolvida dialeticamente uma a partir da outra. Elas não implicavam na relativização nem na fluência da própria relação do sujeito e do objeto” (Ibid, 2003, p. 297). Sobre essa fluência, a superação da rigidez conceitual e a consequente articulação dialética entre os opostos – sujeito e objeto – Hegel afirma, no prefácio da Fenomenologia do Espírito, “segundo minha concepção – que só deve ser justificada pela apresentação do próprio sistema –, tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito” (2005, p. 34).
 
Quando o sujeito (a consciência, o pensamento) é, simultaneamente, produtor e produto do processo dialético; quando, como resultado, o sujeito se move ao mesmo tempo num mundo que ele mesmo e do qual é a figura consciente, mundo que se lhe impõe, todavia em plena objetividade, somente então o problema da dialética e da supressão da antítese entre sujeito e objeto, pensamento e ser, liberdade e necessidade, etc., se pode ser considerado como resolvido (LUKÁCS, 2003, p. 297).
 
Um pouco mais de atenção quanto a questão “do sujeito da ação, da gênese” (Ibid, 2003, p. 302) revele-nos o limite conceitual da Bildung hegeliana. O conceito concreto da totalidade reporta à relação dialética entre as determinações vivas do pensamento e o processo real em que tais determinações se originam. Pois bem, para Lukács, a gênese do sujeito da ação na história não pode ser produzida a partir da história dos conceitos; deve-se compreender a formação da consciência em interação com a formação material, com o fundamento real e concreto na história que permita revelar a formação do sujeito e expor a solução objetiva para os seus problemas.
Apenas dessa forma poderia ser revelada a verdadeira gênese do sujeito da história, a relação efetiva desse sujeito com a história, tornando concreta a unidade “entre a gênese das determinações do pensamento e a história da evolução da realidade” (Ibid, 2003, p. 302). Mas, chegado a esse ponto, a filosofia clássica alemã se deteve, e permaneceu restrita ao labirinto conceitual sem saída. O sujeito de Hegel está no nível especulativo do conceito, pela razão predicada nos homens. É preciso lembrar que Hegel procurou na “astúcia da razão uma explicação para a estrutura da história” (Ibid, 2003, p. 304), mas encontrou uma história já pronta.
Desse modo, a filosofia de Hegel não está em condições de encontrar o sujeito-objeto idêntico na própria história, pois, ao buscar para além da historia, no reino da razão que se autodesenvolve em si mesma, a explicação para os conteúdos concretos do sujeito, a história é entendida como um elemento necessário, mas natural, para o desenvolvimento do método dialético e a consecução do programa. A Bildung em Hegel aparece como algo ainda determinado pelo pensamento e não pela realidade, o que implica em uma noção externalizada da consciência em relação à realidade histórica. Nestes termos, a lógica dialética é comprometida pelo fato de que a história aparece como mera ilustração necessária da dialética e não a dialética como expressão real do processo histórico.
Para Lukács, a Bildung ainda se encontra no nível especulativo do conceito, ou seja, onde prevalece a autonomia da razão conceitual e não os conteúdos vivos da história dos homens em sua dimensão histórica. Mas, se a história reaparece coma ilustração do movimento dialético, se as várias figuras do espírito objetivo aparecem como momentos específicos de formação cultural e se a consciência aparece de forma autônoma em face da realidade, a Bildung em Hegel só pode se envolver em um “invólucro místico” (MARX, 1983, p. 27).
A progressão das antinomias do pensamento burguês encontra os seus próprios limites na própria formação material que lhe engendra, as condições materiais de produção de mercadorias. Segundo Lukács, o método dialético pôde superar o modelo do racionalismo moderno e apontar, pela primeira vez, para além da sociedade capitalista. Isto significa dizer que a Bildung revelara de maneira mais clara (muito mais do que nos estágios anteriores das antinomias) o trabalho alienado e as contradições no seio da sociedade capitalista. A filosofia chegara ao seu limite enquanto emancipação humana na forma do pensamento.
 
Conclusão
A exposição de Lukács acerca do desenvolvimento do pensamento filosófico revela a forma como esse pensamento acompanha a formação material e real no processo histórico. Essa relação faz saber que a formação do sujeito filosófico dá-se em interação com a formação do sujeito concreto. No limite, os equívocos e imprecisões conceituais, as revelações e ocultações que a progressão do pensamento burguês registrou em seus vários níveis gradativos no seu intuito de precisar o conteúdo concreto do conceito, buscando superar o dilema da coisa em si e da indiferença da forma em relação ao conteúdo e, consequentemente, buscando resolver a questão da realidade diante do sujeito (da perda de controle deste diante daquela) significava em termos gerais a seguinte questão: que a progressão antinômica mostrou-se como a configuração no pensamento do processo de formação real do sujeito na história.
Não nos resta dúvida de que a análise das condições socioeconômicas da reificação – a formação material na realidade objetiva dominada pela forma do capital – que precede a análise da formação da consciência no plano filosófico, indica o fundamento materialista a que atribui Lukács na exposição filosófica da reificação em História e Consciência de Classe. Seja qual for a denominação a que se dê a essa relação; uma leitura marxista da história da filosofia ou então uma interpretação materialista do problema da formação da consciência, ambas conduzem a uma relação entre marxismo e filosofia clássica alemã em torno da questão da formação do sujeito.
Falamos então de uma intenção materialista que envolve os procedimentos lógicos e metodológicos na produção da filosofia clássica alemã. A progressão das antinomias se dera até o ponto em que os problemas da sociedade capitalista se tornaram mais claros e transparentes ao nível da consciência. Com Hegel, a Bildung revelou o processo contraditório ao nível da formação do próprio sujeito. Nessa perspectiva, já não suscitaria mais uma esperança de mudança em face da realidade do sujeito reificado as seguintes possibilidades: 1) o deslocamento para o objeto do conhecimento como produto do espírito humano, nos termos de uma teoria do conhecimento do mundo; 2) a superação da contemplação teórica do objeto (a superação dos limites da coisa em si) por meio da atividade individual do sujeito ético (mas que ainda estaria sob o domínio do objeto reificado; e 3) a tentativa de reconstruir a unidade do espírito humano a partir da formação artística, que possibilitaria a mediação entre razão e sensibilidade. Lukács situa o quarto estágio dessa progressão na questão do método dialético. Aqui, a formação da cultura como um processo dialético remete a “gênese ontológica” (MAAR, 1988, p. 315) do sujeito produtor de seus conteúdos culturais numa perspectiva da totalidade concreta.
Com o foco não mais na ideia de um sujeito pronto, mas no processo de formação que envolve esse sujeito, com todas as suas contradições que lhe são imanentes, anunciava-se os problemas da ordem real da sociedade capitalista, mas apenas no plano do pensamento. O que a filosofia não poderia era revelar a gênese concreta dessa formação do sujeito, ou seja, a reificação como formação real da formação da consciência, e que pelo próprio modo específico de formação material que produz um pensar reificante, impedia a pensamento filosófico de ter acesso à verdade. A progressão das antinomias elevaria no pensamento as condições humanas de alienação e exploração na sociedade capitalista, mas, justamente por apontar os limites da formação capitalista apenas especulativamente, por não poder revelar as condições específicas de formação que tornam o homem amordaçado e um mero espectador diante da realidade, desfecha-se o processo de formação reificante na filosofia clássica alemã. Ao final das antinomias, Lukács afirma:
 
A filosofia clássica alemã só pode, portanto, deixar como herança para o desenvolvimento (burguês) futuro essas antinomias não resolvidas. A continuação desse novo rumo tomado pela filosofia clássica e que começava, pelo menos no que diz respeito ao método, a apontar para além desses limites, em outras palavras, o método dialético como método da história, foi reservado à classe que estava habilitada a descobrir em si mesma, a partir do seu fundamento vital, o sujeito-objeto idêntico, o sujeito da ação, o “nós” da gênese: o proletariado. (LUKÁCS, 2003, p. 308).
 
O projeto da Bildung havia elevado a problemas filosóficos os problemas reais da formação no capitalismo. Mas o processo de formação do sujeito produtor dos conteúdos culturais numa perspectiva da totalidade, a formação da consciência como consciência de si não poderia avançar além do domínio conceitual. A realidade da formação material sob o domínio do capital é uma realidade deformadora, ou seja, as condições específicas da formação pelo trabalho na sociedade capitalista produtora de mercadorias são aviltantes e alienadas para o trabalhador.
Esse é o fundamento concreto da gênese de formação do sujeito. Neste sentido, se a forma social da mercadoria é uma forma que se universaliza no contexto específico de produção das relações humanas reificadas, a reificação é uma totalização da realidade social. Assim, a resposta ao fenômeno da reificação só poderia se dar sob uma perspectiva da totalidade. Pelas condições específicas de sua formação na história, a única classe social habilitada a realizar a dialética entre as formas da imediatidade produzidas no plano fenomênico do ser social e a mediação dessas formas imediatas seria a classe trabalhadora numa perspectiva da totalidade.
Apenas a classe trabalhadora poderia tomar consciência de si de sua condição específica de objeto-mercadoria enquanto classe social, mas como sujeito produtor desse processo. A elucidação concreta de sua condição particular representaria as condições gerais de toda a sociedade capitalista; os seus anseios locais poderiam ser traduzidos como uma necessidade real da sociedade. E por esses motivos seria a classe trabalhadora, pelas suas condições concretas na história, que poderia se colocar como representante universal. Eis o ponto de vista do proletariado. Abaixo, um trecho de Marx sobre as possibilidades de emancipação alemã, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, que sintetiza um pouco das ideias que envolveram a discussão deste trabalho.
 
A única libertação praticamente possível na Alemanha é a libertação do ponto de vista da teoria que declara o homem como o ser supremo do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é possível se realizar simultaneamente com a emancipação das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, nenhum tipo de servidão é destruído sem que se destrua todo tipo de servidão. A profunda Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar desde os fundamentos. A emancipação do alemão é a emancipação do homem. A cabeça dessa emancipação é a filosofia, o proletariado é seu coração. A filosofia não pode se efetivar sem a suprassunção [Aufhebung] do proletariado, o proletariado não pode suprassumir sem a efetivação da filosofia (2010, pp. 156-7).
 
Assim posto, chegamos ao término deste trabalho reafirmando o que foi dito nas primeiras páginas da Introdução; que o mesmo esteve mais vinculado com “a cabeça da emancipação”, mas, ao fim, levamos adiante algumas considerações acerca do “coração da emancipação”. Assim como Marx já anuncia no século XIX, Lukács em História e Consciência de Classe também apresenta uma relação necessária e dialética entre a produção material da realidade humana e o movimento das ideias correspondentes ao processo real. Se a emancipação humana não poderia ser levada a cabo somente com a produção filosófica, tampouco as questões que envolveram o pensar filosófico vinculam-se somente ao puro pensar.
 
 
Referências
ARATO, Andrew. A antinomia do Marxismo Clássico: Marxismo e Filosofia. In:
HOBSBAWN, Eric. (Org). História do Marxismo. Vol.4. Rio: Paz e Terra, 1984.
HEGEL. G. W. F. Diferença entre os sistemas de Fichte e Schelling. Tradução de Carlos Morujão. Lisboa: CEFUL/INCM, 2003.
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­_____. Wissenschaft der Logik, I. Frankfurt: Suhrkamp, 1993.
HYPPOLITE, Jean. Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito. Tradução de Sílvio Rosa e outros. São Paulo:Discurso Editorial, 2003.
KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Tradução de José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
LÖWY, Michael. “A sociedade reificada e a possibilidade objetiva de seu conhecimento na obra de Lukács”. In: Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1990, pp. 69-85.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MAAR, Wolfgang Leo. A formação da teoria em História e Consciência de Classe de Georg Lukács. Tese de doutorado defendida no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. São Paulo, 1988.
_____. “Formação social em Lukács: Dialética de reificação e realização – A perspectiva marxista como consciência de classe e crítica ontológica”. In: BOITO JR., Armando; NAVARRO DE TOLEDO, Caio; RANIERI, José Jesus; TRÓPIA, Patrícia Vieira (orgs.). A obra teórica de Marx: atualidades, problemas e interpretações. São Paulo: Xamã, 2000, pp. 123-57.
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Available from . access on 25 Nov. 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451992000300009.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2010.
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MÜNSTER, Arno. Ernst Bloch: filosofia da práxis e utopia concreta. São Paulo: Editora da Unesp, 1993.
 


[1] Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. [email protected]; [email protected].
[2] Cf. Em Marx (2005, pp.79-98), o Manuscrito Trabalho Estranhado e Propriedade Privada apresenta o tríplice movimento do estatuto da alienação do trabalho.
[3] Neste aspecto, nos distanciamos do texto autocrítico que Lukács redigiu especialmente para História e Consciência de Classe. Aqui, segundo Lukács, a forma de exposição de ambos os conceitos na obra de 1923 aparecia ainda os identificava como aparentados e sinônimos.
[4] Cf. ARATO, Andrew. A antinomia do Marxismo Clássico: Marxismo e Filosofia. In. HOBSBAWN, Eric. (Org). História do Marxismo. Vol.4. Rio: Paz e Terra, 1984.
[5] Cf. KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Tradução de José Paulo Neto. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. No primeiro capítulo desta obra fundamental, Korsch discute a relação entre o marxismo e a filosofia, num claro propósito de renovação do marxismo para a época.
[6] Embora consideremos que a exposição filosófica de Lukács acerca da reificação capitalista só possa ser compreendida de modo significativo sob o prisma da unidade estrutural de História e Consciência de Classe, enfocamos mais detidamente o quarto capítulo da obra – A reificação e a consciência do proletariado – , em suas seções I, II e III, pelo fato de que nesta parte estão estabelecidos os elementos mais nucelares para o nosso tema de interesse.
[7] Sobre essa lógica em Hegel, Lukács afirma que a mesma “permaneceu muito problemática [...] e depois dele deixou de ser elaborada seriamente” (LUKÁCS, 2003, p. 296).

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