25/04/2024

E. P. Thompson e a “Miséria da Teoria”: razão e apatia

Por

 

Ricardo G. Müller
UFSC
 
Introdução
Em suas análises e considerações sobre a história e a luta de classe, poucas vezes E. P. Thompson explicitou com clareza seu conceito de materialismo histórico. Nesse sentido, a coletânea The Poverty of Theory and Other Essays (1978) ocupa um lugar original no conjunto de sua obra, tanto por seu caráter polêmico, quanto porque nela Thompson expõe sua compreensão materialista da história e de luta política. The Poverty... reúne os resultados de quase 20 anos de trabalho e é composta de vários ensaios, além do destacado em seu título.[1] Em princípio a coletânea foi pensada como uma espécie de “operação casada”, de modo a não separar opções teóricas e políticas e, simultaneamente, apresentar um quadro teórico consistente reafirmando o compromisso com a tradição de “1956” e o “humanismo socialista”. O foco desse artigo é o ensaio The Poverty of Theory, uma das mais importantes contribuições para a teoria marxiana (Abelove, 1982: 132), com o intuito de rever, sistematizar e analisar seus principais argumentos.
A crítica desenvolvida em The Poverty... tem endereço certo: o estruturalismo de Louis Althusser (“o Aristóteles do novo idealismo marxista”). Thompson (1978: 196) considera o marxismo estruturalista althusseriano uma forma de stalinismo; uma conciliação teórica entre a sociologia funcionalista (em particular a de Talcott Parsons e Neil Smelser) e os postulados de Spinoza e um divórcio epistemológico entre fato e valor, similar às práticas do utilitarismo. Ademais, discute e refuta alguns dos principais eixos temáticos da obra de Althusser, como suas críticas ao historicismo, ao humanismo e ao moralismo (as hipóteses de Althusser para suas críticas à história). The Poverty... tece objeções a esses aspectos, nomeados por Thompson como “os ogros de Althusser”.
Thompson denuncia as análises estruturalistas que, a seu ver, constituem uma agressão política e teórica ao marxismo – sobretudo por sua concepção de um real epistemologicamente nulo e inerte e sua negação da inteligibilidade da história, da ação humana e dos conceitos de classe e ideologia como categorias históricas. Ao mesmo tempo, retoma sua defesa da razão, da centralidade da história e do agir humano (agency), contra a apatia:
 
No momento em que parecíamos prontos para novos avanços no campo do materialismo histórico, fomos subitamente atacados pela retaguarda – e não uma retaguarda de “ideologia burguesa” manifesta, mas por uma que pretendia ser mais marxista do que Marx. Da parte de Louis Althusser e de seus numerosos seguidores foi desferido um ataque imoderado ao “historicismo”. Os avanços do materialismo histórico, seu suposto “conhecimento”, tinham repousado – ao que se revela – em um frágil e corroído pilar epistemológico (“empiricismo”); quando Althusser submeteu este pilar a um duro interrogatório, ele estremeceu, esboroou-se em pó e toda a empresa do materialismo desabou em ruínas em sua volta. (Thompson, 1978: 194).
 
Um dos aspectos mais interessantes a destacar na reação de Thompson é o de sua perplexidade frente à influência dessa proposta sobre boa parcela do marxismo britânico, cuja história e pressupostos estariam sendo minados por essa “estranha” teoria. A responsabilidade pela difusão do marxismo estruturalista na Grã-Bretanha é atribuída por ele ao corpo editorial de New Left Review e, particularmente, aos professores B. Hindess e P. Q. Hirst, naquele momento dois dos mais célebres althusserianos ingleses. Para Thompson os efeitos do estruturalismo de Althusser haviam reduzido a teoria comunista a uma “religião”, uma ideologia, via de regra desumanizante e, contraditoriamente, esvaziada de qualquer caráter revolucionário. Além disso, argumenta que essa perspectiva isola-se cada vez mais no interior de seu casulo de procedimentos científicos e, despreocupada com o ser social e sua história, humilha a natureza da classe trabalhadora.
Thompson considera o marxismo estruturalista obscuro, desumano e racionalizado. Ele, ao contrário, reafirma a exigência de que a tradição iniciada por Marx ofereça à classe trabalhadora um princípio democrático, uma esperança que complemente sua experiência de vida. Os argumentos de Thompson reafirmam um comunismo libertário orientado pelos valores dessa tradição – e, também, a de William Morris – e um materialismo histórico que acentua conceitos fundamentais como os de práxis e agir humano. Tais noções, a seu ver, sublinham a confiança de que a experiência vivida é o diálogo fundamental entre o evento e o conceito, o ser social e a consciência social; de que sujeitar a classe trabalhadora a um sistema (partido ou burocracia) é autoritário e anticomunista; de que o imperativo ontológico do socialismo está além das leis ou de postulados de teorias de autonomia relativa e de que a concepção materialista da história encontra sua melhor expressão em um humanismo socialista ativo e atuante – em sua luta pela emancipação, contra um estado de alienação, conforme as aspirações dos trabalhadores.
De acordo com Thompson, o entendimento althusseriano do marxismo, seu desprezo pela história e a subsunção do agir humano à estrutura fragilizam as bases dessa tradição. De fato, com a difusão do esquema conceitual de Althusser nos diferentes circuitos acadêmicos, cresceu a aceitação da crença de que “o povo” não faz sua própria história e “as pessoas” seriam meros portadores de estruturas e, consequentemente, “o verdadeiro objeto da história” (evidência histórica) seria inacessível ao conhecimento.
Thompson (1978: 195-196) refuta tal interpretação e acusa os althusserianos de pertencerem a uma lumpen-intelligentsia burguesa, presos mais a uma batalha intelectual travada entre eles próprios do que à luta contra o sistema capitalista que pretendiam sabotar: tal embate reduzir-se-ia a um exercício acadêmico incapaz de efetivar, na prática, qualquer projeto intelectual. Sua expectativa em The Poverty... é a de eliminar tal “sectarismo” em nome de um diálogo mais ativo e produtivo no interior do marxismo. Essa proposta se transforma em uma defesa da história como disciplina e da tradição de um pensamento marxista britânico como um todo.
Em The Poverty... o método histórico tem como seu contraponto a metodologia e o conjunto teórico estruturalista. No embate, os temas principais são as denúncias de Thompson (1978: 197-198) quanto às interpretações do método empírico de investigação (e suas técnicas) confundindo-o com o empiricismo, uma formação ideológica equivocadamente atribuída ao materialismo histórico. A confusão de termos, afirma, impede a percepção de que o principal conflito de ordem metodológica reside na questão da prova (evidência histórica) que, para Althusser, deve ser interrogada e submetida às exigências do “discurso científico da prova”.
A evidência histórica, a “matéria-prima” de Althusser – sua manifestação como fatos, idées reçues –, quando submetida ao rigor de um exame teórico, deve aguardar seu ajuste a um conhecimento legitimado, tal como definido pela ciência.[2] Para Thompson (1978: 199), ao contrário, a historiografia deve voltar-se às “múltiplas evidências” e inter-relações, o solo da pesquisa histórica e, a seu ver, “se essa agitação, esses acontecimentos ocorrem no ‘ser social’, com frequência parecem chocar-se, lançar-se sobre, romper-se contra a consciência social existente”.
Assim, a partir de diferentes contradições econômicas e sociais e problemas, emergem novas experiências e esperanças, novos pensamentos e valores, que expressam as respostas humanas aos acontecimentos e às eventuais mudanças. Segundo Thompson (1978: 200-201), tais aspectos seriam irrelevantes para Althusser – que nega a importância do “conteúdo de vida” do “povo” como material de investigação e desconsidera o “mundo real”, o qual via com desdém elitista. Dessa forma, ainda segundo Thompson, Althusser desconsideraria que uma pesquisa mais profunda pudesse revelar as complexidades dinâmicas da experiência vivida no movimento da história:
Experiência – (...) por imperfeita que seja – é uma categoria indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e emocional, de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento (...) [Mas] ela é válida e efetiva dentro de determinados limites (...). A experiência surge espontaneamente no ser social, mas não sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais e refletem sobre o que acontece a eles e a seu mundo. (Grifo no original). (Thompson, 1978: 199-200).
Alongando-se em seu raciocínio, afirma:
Não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos organizadores e expectativas, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento. (...) Mudanças no ser social dão origem à experiência modificada, e essa experiência é determinante: exerce pressões sobre a consciência social, propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. (Grifo no original). (Thompson, 1978: 200).
Também nesse aspecto a divergência com Althusser aparece de forma inequívoca. Na perspectiva althusseriana o processo de conhecimento demanda a abstração de toda informação imediata processada pelas demarches metodológicas da ciência até alcançar o conhecimento concreto; a de Thompson – com base em sua convicção de que o modelo de ciência defendido por Althusser ignora o imperativo do diálogo entre o ser social e a consciência social –, propõe uma interação que redefine constantemente o objeto de conhecimento e depende das experiências vividas dos agentes históricos – um conhecimento que, contudo, o estruturalismo não pode reconhecer.
 
1. Estruturalismo e Método Dialético
Na perspectiva de Thompson (1978: 204) a teoria althusseriana, além do idealismo teórico, apóia-se basicamente na metáfora da base e superestrutura e na primazia do econômico – a determinação em última instância – sobre as outras instâncias que compõem a estrutura social [3]. Por essa razão, seu pensamento seria, em última análise, uma derivação do stalinismo, não obstante as intenções althusserianas de se libertar da vulgata stalinista e da compreensão de que tudo seria reflexo do econômico:
O absurdo de Althusser está no modo idealista de suas construções teóricas. Seu pensamento é filho do determinismo econômico fascinado pelo idealismo teórico. Postula (mas não procura “provar” ou “garantir”) a existência da realidade material (...) (e) a existência de um mundo (“externo”) material da realidade social, cuja organização determinada é sempre, em última instância, “econômica”; a prova disto está não na obra de Althusser (...), mas na obra madura de Marx. Esse trabalho já chega pronto ao início da investigação de Althusser, como um conhecimento concreto, embora (...) nem sempre cônscio de sua própria prática teórica. É tarefa de Althusser realçar o conhecimento que ele tem de si mesmo (e) rejeitar (as) impurezas ideológicas que cresceram nos silêncios de seus interstícios. Assim, um conhecimento dado (a obra de Marx) conforma os procedimentos de Althusser em cada um dos três níveis de sua hierarquia (das Generalidades). (Thompson, 1978: 204).
Thompson critica, ademais, a dicotomia e o uso seletivo das obras de Marx proposta por Althusser (1973). O “retorno ao próprio Marx” significava a leitura da obra da maturidade, os escritos posteriores a 1845, os do Marx “científico”. Os textos de juventude não seriam científicos, influenciados por Hegel e Feuerbach. Entre um e outro, o jovem Marx e o Marx maduro, teria havido uma ruptura, um corte, isto é, uma descontinuidade radical de pensamento e de propostas. Os escritos do jovem Marx seriam caracterizados pela temática da alienação, do ser humano genérico (como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos), e sua problemática consagrada à liberdade, em torno de uma humanidade que deve restaurar sua essência humana perdida na trama de uma história que a alienou. Portanto, trata-se da superação das contradições do estranhamento e da alienação postas pelo capital, entrave fundamental na restauração do ser humano genérico.
Para Althusser, esta fase é superada a partir de 1845, quando a problemática anterior é substituída por uma teoria científica da história, articulada por conceitos novos, como formação social, forças produtivas, relações de produção, explicitadas, sobretudo, em O Capital, sua grande obra científica da maturidade:
Se considerarmos o conjunto da obra de Marx, é indubitável que existe uma “ruptura” ou um “corte” a partir de 1845. O próprio Marx é quem o diz. Mas não se deve acreditar na palavra de ninguém, nem mesmo de Marx. É preciso julgar os fatos. Ora, toda a obra de Marx o demonstra. Em 1845, Marx começa a lançar os fundamentos de uma ciência que não existia antes dele: a ciência da história. E, para tanto, antecipa (...) conceitos novos, que se precisam e ajustam pouco a pouco num sistema teórico, e não encontrados em suas obras juvenis humanistas: modo de produção, forças produtivas, relações de produção, infra-estrutura, superestrutura, ideologias, etc. Ninguém pode negar esse fato. (Grifo do autor) (Althusser, 1978: 41).
O corte epistemológico – “uma concepção imaculada que não exigiu nenhuma fecundação empírica vulgar” (Thompson, 1978: 205) – se localiza nas Teses de Feuerbach (1845) e em A Ideologia Alemã (1846). Conforme a proposição althusseriana, portanto, somente a obra posterior de Marx é propriamente ciência (teoria). No entanto, nem mesmo O Capital escapa a uma crítica severa, pois, para Althusser, também nessa obra e em outros escritos posteriores se encontram traços de humanismo e historicismo, bem como. Para Althusser (1972), as únicas exceções seriam a Crítica do Programa de Gotha (1875) e as “Notas Marginais ao ‘Livro de Adolpho Wagner sobre Economia Política’” (1880), “completamente livres de qualquer traço de influência hegeliana” (Thompson, 1978: 386, n. 24).
Thompson (1978: 205) considera esse método idealista e inaceitável e sublinha sua incompatibilidade com a dialética de Marx. Em relação ao sistema de Althusser, afirma: “A categoria foi alçada a uma primazia sobre seu referente material; a estrutura conceitual paira sobre o ser social e o domina”. Desse modo, os procedimentos de análise tornam-se mais importantes que os tópicos analisados.
Se as tendências cientificistas de Althusser e as demais estruturalistas provocam a indignação de Thompson, sua oposição mais veemente volta-se às suas conseqüências para a teoria da história. Em The Poverty... encontra-se uma defesa sistemática da história contra o “ataque” da prática teórica proposta por Althusser, em que a história seria pouco mais do que “esboços ideológicos de teorias” aplicadas de modo inadequado a um objeto de conhecimento. Ou seja, a teoria da história não teria alternativa senão a de “cair” no empiricismo. A contradição, lembra Thompson (1978: 207), seria autodemonstrável, e cita o próprio Althusser a esse respeito: “A verdade da história não pode ser lida em seu discurso manifesto, porque o texto da história não é um texto em que fale uma voz (o Logos), mas a inaudível e ilegível anotação dos efeitos de uma estrutura das estruturas”. Assim, a “verdade” da história só poderia ser revelada por um procedimento teórico definido. O “rigor formal” desse procedimento torna-se a garantia de veracidade do objeto de conhecimento, no interior da “cidadela”, a que Thompson (1978: 206) se refere com ironia. Assim, o conhecimento purificado pela prática teórica só pode emergir no interior do pensamento, negando a possibilidade de qualquer paradigma de experiência de vida: afirma-se a irrelevância da história como processo. Resumindo os procedimentos de Althusser, Thompson assinala:
O rigor formal de tais procedimentos é a única prova da “verdade” desse conhecimento e de sua correspondência com os fenômenos “reais”: o conhecimento-concreto, assim estabelecido, traz consigo todas as “garantias” necessárias – ou todas as que podem ser obtidas. (...) Só podemos construir nosso conhecimento da história “no conhecimento, no processo de conhecimento e não no desenvolvimento do concreto-real”. (Thompson, 1978: 207).
Thompson critica Althusser por considerar que a ciência do materialismo histórico dispensa as práticas externas (como a de examinar as experiências de vida promovidas por fatores subjetivos, consciência, costumes, valores, etc.) como provas. Mais ainda, de que é fundamental uma separação absoluta entre pensamento e realidade para que o pensamento não se confunda com o real. Quando as hipóteses estruturalistas são utilizadas, o real parece ser submetido ao procedimento; mas, assinala Thompson, a complexidade da relação é mais dinâmica do que o procedimento pode aduzir. A seu ver não há teoria sem a influência do objeto de análise e a evidência faz ouvir sua voz na investigação:
O objeto real (...) é epistemologicamente inerte: isto é, não se pode impor ou revelar ao conhecimento: tudo isso se processa no pensamento e seus procedimentos. Mas isto não significa que seja inerte de outras maneiras: não precisa, de modo algum, ser sociológica ou ideologicamente inerte. (...) O real não está “lá fora” e o pensamento dentro do silencioso auditório de conferências de nossas cabeças, “aqui dentro”. Pensamento e ser habitam um único espaço, (...) nós mesmos. Mesmo quando pensamos, temos fome e ódio, adoecemos ou amamos, e a consciência está misturada ao ser; mesmo ao contemplarmos o “real”, sentimos a nossa própria realidade palpável. De tal modo que os problemas que as “matérias-primas” apresentam ao pensamento consistem, com freqüência, (...) em suas próprias qualidades ativas, indicativas e invasoras. Porque o diálogo entre a consciência e o ser torna-se cada vez mais complexo – (...) atinge imediatamente uma ordem diferente de complexidade, que apresenta uma ordem diferente de problemas epistemológicos –, quando a consciência crítica atua sobre uma matéria-prima feita de seu próprio material: artefatos intelectuais, relações sociais, o fato histórico. Um historiador – e, sem dúvida, um historiador marxista – deveria ter plena consciência disto. O texto morto e inerte de sua evidência não é de modo algum “inaudível”; tem uma clamorosa vitalidade própria; vozes clamam do passado, afirmando seus próprios significados, aparentemente revelando seu próprio conhecimento de si mesmas como conhecimento. (Grifo no original). Thompson (1978: 210).
A história, afirma Thompson (1978: 210-211) produz e revela conhecimentos. A história real apresenta relações empiricamente verificáveis que podem ser relativamente determinantes: isto é, a história tem uma fala e pode ser decodificada. De seu ponto de vista, a história faz com que os procedimentos exponham uma interpretação mais ponderada, de modo a haver uma articulação efetiva entre as hipóteses e a realidade. A epistemologia de Althusser, embora não negue a existência do objeto “real”, considera-o desprovido de determinações e sem condições para influenciar sua compreensão. Por isso, depende da teoria.
Nessa interpretação, a historiografia, mesmo a historiografia marxista, é insuficiente em rigor teórico, a menos que seja transmitida e purificada por meio do léxico da teoria marxista (althusseriana); o preconceito há que ser expurgado do método: “Qual a base para o historicismo contemporâneo, o qual nos teria feito confundir o objeto de conhecimento com o objeto real, ao atribuir ao objeto de conhecimento as mesmas ‘qualidades’ do objeto real das quais ele é o conhecimento”? (Althusser, 1970: 106).
Como historiador, Thompson reconhece a importância da consistência das provas. A seu ver, fontes essenciais (como dados públicos, relatórios de censos, etc.) podem ser valiosas se interrogadas sem a interferência dos interesses ideológicos que representam. Althusser interpreta essa abordagem como empiricista. Em sua argumentação, Thompson (1978: 214-216) considera a metodologia althusseriana anti-histórica e observa que, em sua negação da empiria, ela conduz a “partos teóricos: o parto da partogênese intelectual”.
Para Thompson, é possível analisar as evidências, mesmo as registradas de modo intencional, de forma plenamente objetiva. Se não houver um dado, ainda que parcial em sua referência a fatos, então a prática histórica e, aliás, a própria lógica althusseriana, podem meramente fabricar a história como um todo a partir de sua própria lógica (como o fez o stalinismo).
Thompson (1978: 224) considera que a epistemologia implícita no método estruturalista impede a compreensão dos diálogos pelos quais o conhecimento histórico emerge – entre o ser social e a consciência social e entre a organização teórica da evidência e o caráter determinado do objeto –, sem o que a historiografia marxista não poderia existir: ela só pode se efetivar por meio de algum procedimento empírico.
Na visão de Thompson, ao confundir os procedimentos empíricos com a empiria, Althusser não poderia compreender o real como processo e práxis humana. O “corte epistemológico” aplicado a Marx por Althusser significa, para Thompson, “um corte com o autoconhecimento disciplinado e um salto na autogeração do ‘conhecimento’, de acordo com seus próprios procedimentos teóricos, isto é, um salto para fora do conhecimento e para dentro da teologia”. Thompson considera que tal atitude iguala o estruturalismo ao positivismo que Althusser tanto criticava. A análise de Thompson (1978: 225), recorrendo mais uma vez à imagem de teatro, busca acentuar essa contradição e perceber as relações entre cada proposta metodológica, colocando-as em oposição ao materialismo histórico autêntico:
O positivismo,com sua estreita visão da racionalidade, sua aceitação da física como paradigma da atividade intelectual, seu nominalismo, atomismo, sua falta de hospitalidade para com todas as visões gerais do mundo – isso não foi inventado por Althusser. Aquilo de que ele quer fugir – a prisão empirista (...) – certamente existe. Althusser escalou seus muros, pulou e agora constrói seu teatro em um sítio adjacente. (...) Mas (...) tanto a prisão como o teatro estão construídos em grande parte com os mesmos materiais, embora os arquitetos rivais sejam inimigos jurados. Vistas do ângulo do materialismo histórico, as duas estruturas evidenciam uma identidade extraordinária. Sob determinadas luzes, parecem ecoar-se mutuamente, fundir-se, exemplificar a identidade dos opostos. Ambas são produtos da estase conceitual, erguidas, pedra sobre pedra, com categorias não-históricas estáticas. (Thompson, 1978: 225).
Na discussão sobre a legitimidade epistemológica do conhecimento histórico, Thompson (1978: 226) introduz aportes de Karl Popper, notadamente os apresentados em A Miséria do Historicismo. Para Thompson, mesmo caminhando em direções opostas, Popper e Althusser chegam ao mesmo lugar, pois ambos consideram os “fatos” como “matéria-prima” impura, algo não explicado, apenas suposto, e localizam os fatos históricos sempre no interior de um campo ideológico. Múltiplos fatos só multiplicam as impurezas. Assim, Popper e Althusser dignificam “a teoria ou a lógica” e as colocam “acima das aparências ilusórias da ‘realidade objetiva’”.
Thompson (1978: 226-227) percebe que essa lógica e essa teoria chegam à mesma realidade ulterior. Seus procedimentos desprezam e desconfiam (como Althusser) “(das) interconexões dos fenômenos sociais (e da) causação no interior do processo histórico, tudo parece estar além de qualquer prova experimental”. Essa posição conduz a que a compreensão dos fatos examinados seja determinada pela lógica ou pela ciência e que esses fatos sejam interrogados de modo a dissipar as manifestações externas (história, política, etc.). Ao fim e ao cabo, apenas confirmam-se as proposições prévias da teoria; o estruturalismo reconhece tão somente o que deseja enxergar (Thompson, 1978: 229).
Em defesa da análise histórica, Thompson apresenta seu método historiográfico. Trata-se também de uma defesa do método empregado em sua obra e das premissas da “história vista de baixo”. Thompson (1978: 229) recusa o idealismo cientificista do método de Althusser; define os procedimentos da disciplina da história e a natureza do conhecimento histórico e, ao mesmo tempo, expõe uma metodologia rigorosa, a “lógica histórica”.
Em uma exposição prévia, Thompson (1978: 220-221) indica seis procedimentos de exame que deveriam ser adotados pelo historiador, de modo a criar uma visão de totalidade do processo histórico e destacar as condições do agir humano e da mudança. Os procedimentos são os seguintes: 1. O historiador deve analisar as credenciais da evidência histórica como um fato a ser confirmado ou negado. 2. A evidência pode ser assumida no nível de sua própria aparência e em especial quando se relacionar a evidências portadoras de valor (value-bearing). 3. Pode, também, ser abordada a partir de evidências isentas de valor, neutras (sem valor), procedimentos estatísticos, demográficos, etc. 4. A evidência pode ser relacionada como elos em “séries lineares”, os acontecimentos reais, pelo uso da narrativa, “um elemento essencial da disciplina histórica”. 5. Os fatos podem ser avaliados como elos em séries laterais de relações sociais/ideológicas/políticas que permitem restabelecer, ou inferir “a partir de muitos exemplos, pelo menos uma ‘seção’ provisória de uma dada sociedade do passado”. 6. Finalmente, os fatos podem ser examinados pelas evidências que sustentam a estrutura; por exemplo, os efeitos do sistema legal, penal, ou de propriedade, etc., e seus resultados.
Thompson acredita que essa abordagem em relação à teoria (sua triangulação) seja quase exclusiva para o materialista histórico – uma refutação do método de pesquisa de Althusser que nega que a estrutura esteja inscrita no real ou o dos nominalistas, que não consideram a estrutura uma abstração. Para Thompson (1978: 222-223) essas premissas, e as técnicas de interrogar os fatos, contribuem para “detectar qualquer tentativa de manipulação arbitrária”, uma vez que o historiador deve se empenhar para transmitir os fatos “em suas próprias vozes”. Mas Thompson (1978: 222) alerta: “Não a voz do historiador, e sim a sua (dos fatos) própria voz,mesmo que o que podem ‘dizer’ e parte de seu vocabulário sejam determinados pelas perguntas feitas pelo historiador. Os fatos não podem ‘falar’ enquanto não tiverem sido ‘interrogados’”. Em seu método, as evidências portadoras de valor, isentas de valor, e as que sustentam a estrutura interagem para assegurar o conhecimento histórico.
Em The Poverty..., na fundamental seção VII – na edição brasileira denominada “Intervalo: a Lógica Histórica” –, Thompson (1978: 231-242) avança a discussão do “método lógico de investigação adequado a materiais históricos”, a “lógica histórica”. Na seção ele apresenta oito pontos contra Althusser e em defesa do materialismo histórico, entre os quais encontramos algumas de suas mais conhecidas afirmações. Mesmo com o risco de repetir algumas idéias, vale a pena uma breve exposição:
1. O objeto imediato do conhecimento histórico compreende “fatos” ou evidências, dotados de existência real, mas só se tornam cognoscíveis segundo procedimentos que devem ser a preocupação dos “vigilantes métodos históricos”.
2. Por sua própria natureza, o conhecimento histórico é provisório e incompleto; seletivo (mas nem por isso inverídico); limitado e definido pelas perguntas dirigidas à evidência (e os conceitos que orientam tais perguntas) e, dessa forma, só é “verdadeiro” no interior do campo assim definido. Nesse sentido, afirma Thompson (1978: 231), “estou pronto a concordar que a tentativa de designar a história como “ciência” sempre foi inútil e motivo de confusão”.
3. A evidência histórica possui determinadas propriedades e, nesse sentido, embora “lhe possam ser formuladas quaisquer perguntas, apenas algumas serão adequadas” (Thompson, 1978: 231-232). Sendo assim, são falsas todas as teorias que não estiverem em conformidade com as determinações da evidência.
4. Das proposições acima, Thompson conclui que a relação entre o conhecimento histórico e seu objeto não pode estabelecer que um deles seja função (inferência, revelação, atribuição etc.) do outro: “a interrogação e a resposta são mutuamente determinantes e a relação só pode ser compreendida como um diálogo” (Thompson, 1978: 232).
5. Talvez um dos mais significativos pela afirmação do caráter ontológico da história, o quinto argumento sustenta que o objeto do conhecimento histórico é a história “real”, cujas evidências serão necessariamente sempre incompletas e imperfeitas. Embora, em The Poverty..., Thompson não se refira às correntes pós-modernas e ao pós-estruturalistas, naquele momento já divulgadas e aceitas no mundo acadêmico, ele estabelece uma importante demarcação em relação a um dos principais argumentos dessas correntes, o de negar o estatuto ontológico do real e sua inteligibilidade, o de negar a própria história. Thompson (1978: 232-233) é incisivo ao declarar que sempre haverá novas formas de interrogar as evidências ou de trazer à luz alguns ou muitos de seus aspectos desconhecidos: nesse sentido, o produto da investigação histórica estará sempre sujeito a revisão, com as preocupações de diferentes gerações ou nações, de cada sexo ou classe social. No entanto, isso não significa que os próprios acontecimentos passados se modifiquem ao sabor de cada interrogação investigativa ou que a evidência seja indeterminada. Bem ao contrário, afirma: “Supor que um “presente”, por se transformar em “passado”, modifica com isso seu status ontológico, é compreender mal tanto o passado como o presente”.
6. Esse tópico refere-se a aspectos metodológicos importantes. De acordo com Thompson (1978: 235), a investigação da história como processo – ou “desordem racional” – supõe que o historiador recorra a “noções de causação, contradição, mediação e da organização (às vezes da estruturação) sistemática da vida social, política, econômica e intelectual”. Por certo, continua, tais noções são refinadas no interior dos procedimentos da teoria histórica, mas, ao contrário do que pensariam os althusserianos, “não é verdade que a teoria pertença apenas à esfera da teoria”.
Tudo deve ser decodificado pela teoria apropriada e sujeito às propriedades determinadas da evidência. Na medida em que uma tese (o conceito ou a hipótese) é relacionada a suas antíteses (determinação objetiva não-teórica), e disso resulte uma síntese (conhecimento histórico), a conseqüência é o que Thompson denomina dialética do conhecimento histórico. Esse talvez seja o mais importante aspecto de sua rejeição ao estruturalismo. Uma hipótese aplicada à evidência, e não tendo sido negada por nenhuma contraprova, emerge como conhecimento verdadeiro. Para ele, o diálogo entre hipótese e evidência é a base do materialismo histórico.
7. Continuando a exposição, Thompson (1978: 236) refina sua argumentação e demonstra que a diferença entre o materialismo histórico e outras linhas de interpretação das evidências históricas não reside em quaisquer premissas epistemológicas, mas no caráter de totalidade das hipóteses adotadas e na permanente relevância de sua análise. Ademais, sua distinção pode ser identificada “por suas categorias, hipóteses características e procedimentos conseqüentes e no reconhecido parentesco conceitual entre estas e os conceitos desenvolvidos pelos praticantes marxistas em outras disciplinas”. A seu ver, a historiografia marxista não depende de uma Teoria localizada em uma parte qualquer, ou em uma Sede, como a prática teórica althusseriana. Pelo contrário, “a pátria da teoria marxista continua onde sempre esteve, no objeto humano real, em todas as suas manifestações”. Para Thompson, portanto, o movimento histórico é a preocupação do materialismo histórico, da dialética de Marx e, para um historiador marxista explicar um evento é explicar como e por que ele se moveu em uma determinada direção e também os princípios e tendências fundamentais em um processo.
8. No último argumento, Thompson apresenta sua restrição fundamental à epistemologia althusseriana, bem como a outros estruturalismos ou sistemas funcionais. Nesse ponto estão argumentos já apresentados, e algumas das mais conhecidas frases de Thompson (1978: 238-239): “Certas categorias e conceitos críticos empregados pelo materialismo histórico só podem ser compreendidos como categorias históricas”; ou “A história em si é o único laboratório possível de experimentação e nosso único equipamento experimental é a lógica histórica”; ou “O materialismo histórico emprega conceitos (gerais e elásticos) mais como expectativas do que como regras”. Concluindo, reproduzimos uma afirmação representativa de seu estilo crítico:
A história não é uma fábrica para a manufatura da Grande Teoria, como um Concorde do ar global; também não é uma linha de montagem para a produção em série de pequenas teorias. Tampouco é uma gigantesca estação experimental na qual as teorias de manufatura estrangeira possam ser “aplicadas”, “testadas” e “confirmadas”. Esta não é absolutamente sua função. Seu objetivo é o de reconstruir, “explicar” e “compreender” seu objeto: a história real. (Thompson, 1978: 238).
 
2. Uma Renovação do Marxismo?
Thompson (1978:261-262) assinala que, na medida em que a conceituação estática do marxismo estruturalista é incompatível com os pré-requisitos da análise histórica, a interação e o movimento entre estrutura e processo só podem ser compreendidos adequadamente como uma “heurística alternativa”. Para uma interpretação equilibrada do processo histórico, as heurísticas diacrônica e sincrônica devem ser levadas em consideração. Respectivamente, tais heurísticas representam o desenvolvimento histórico do objeto (a diacrônica) e sua existência em um tempo dado (a sincrônica). Thompson admite a necessidade de procedimentos sincrônicos na análise social, econômica e histórica. Tais procedimentos, que “congelam” a sociedade em um momento específico, são importantes para os historiadores em seu desafio de interrogar a história.
A seu ver, o materialismo histórico estuda o processo social em sua totalidade, i.e., propõe-se a ser uma história total da sociedade, na qual todas as histórias setoriais estariam reunidas (Thompson, 1978:262). Nesse esforço, como uma disciplina unitária, discerne a natureza determinada de cada um dos aspectos setoriais em relação ao outro e procura mostrar “de que modos determinados cada atividade se relaciona com outra, a lógica desse processo e a racionalidade da causação”. A racionalidade da causação não implica causas suficientes:
A explicação histórica revela não como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira e não de outra; que o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionaram-se, não de (uma) maneira que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades; que certas formações sociais não obedecem a uma “lei”, nem são os “efeitos” de um teorema estrutural estático, mas se caracterizam por determinadas relações e uma lógica particular de processo. (...) Nosso conhecimento pode não[4] satisfazer a alguns filósofos, mas é bastante para nos manter ocupados. (Grifo no original). (Thompson, 1978: 242).
Embora as credenciais do materialismo histórico tenham sofrido inúmeros e contínuos assaltos de várias frentes (economia política clássica, sociologia funcionalista, estruturalismo, funcionalismo, empirismo, positivismo) e, não obstante as diferenças metodológicas entre elas, de um modo ou de outro as críticas lançadas surpreendem pela “similitude de seus modos de argumentação e de suas formas e conclusões”. Por exemplo, seu ponto de partida é a recusa de que o processo histórico pode ser conhecido e que sua lógica de mudanças, acomodações e ajustes em um conjunto de atividades inter-relacionadas seja dotada de inteligibilidade. O ponto de chegada é um vocabulário de “progresso” técnico ou econômico baseado unicamente em um procedimento sincrônico. O diacrônico, lembra Thompson (1978: 263), “é posto de lado como uma mera ‘narrativa’ não estruturada, um fluxo ininteligível de uma coisa oriunda de outra”. Nessa perspectiva, prossegue, “o fluxo dos acontecimentos reduz-se a uma fábula empirista e a lógica do processo é recusada”.
Opondo-se a essas interpretações em relação à heurística sincrônica e diacrônica, Thompson (1978: 266-267) retoma suas críticas a Althusser e sugere que o althusserianismo encontra fortes inspirações no utilitarismo do estrutural-funcionalismo de Neil Smelser e nos princípios fundamentais do materialismo dialético no quadro do stalinismo.[5] Thompson identifica em Smelser a tentativa de normatização do processo social no qual as pessoas nada mais seriam que meros suportes para o crescimento “progressivo” de mercados ou para o fortalecimento do Estado. Dito de outro modo, haveria um sistema social auto-regulador – seu próprio juiz e árbitro – “governado” por um sistema de valores, em que as normas estariam entronizadas nas instituições e nas atitudes dos representantes teóricos dominantes, de maneira que tais valores definem e legitimam as atividades do sistema social como um todo. Nesse sistema, as manifestações civis e populares devem ser reguladas para se adequar a essas normas, na medida em que a teoria pode ser empregada para legitimar o sistema social e “de fato tem conseqüências”.[6] Segundo Thompson (1978: 269), tal sistema dominante de valores se reproduz a si mesmo e procura, sistematicamente, impedir a formação de valores alternativos, por intermédio de mecanismos de controle de tensão e de dissidência política. O uso funcional dessas normas dominantes justifica a auto-reprodução e autolegitimação desse poder. Por isso, afirma, o sistema de Smelser “ofende o discurso da lógica histórica e, como sociologia, deve ser compreendido apenas como um momento da ideologia capitalista”.
Thompson identifica em Smelser e em Stalin uma reificação similar do processo histórico, uma vez que, na defesa de seus interesses políticos, desqualificaram o processo histórico e negaram o agir humano. Para Thompson (1978: 271), “ambos mostram (...) a história como um ‘processo sem sujeito’, (...) colaboram para expulsar da história a ação humana (exceto como ‘apoios’ ou vetores de determinações estruturais ulteriores) (e) apresentam a consciência e as práticas humanas como coisas automotivadas”.
Entretanto, adianta Thompson (1978: 270-272), a ideia do processo histórico como “processo sem sujeito” é althusseriana. Ele lembra que essa compreensão é a base de suas análises de O Capital e que a contribuição de Stalin à “ciência” do marxismo está presente na obra de Althusser, articulada sobretudo à relação entre base e superestrutura. Assim, Thompson (1978: 272-273) classifica o trabalho de Althusser como uma reutilização daquele modelo, “uma nova concepção da relação entre instâncias determinantes na estrutura – o complexo da superestrutura”, “essência de qualquer formação social”.
Procurando superar seus principais pares antagônicos – de um lado o economicismo e o tecnologismo, de outro o humanismo e o historicismo –, Althusser reelabora a relação entre base e superestrutura e propõe três novas noções explicativas: “estrutura com dominante” (la structure à dominante),[7] determinação em última instância e sobredeterminação.[8] A estrutura com dominante é o conceito-chave, a totalidade; o que determina sua existência é, em última instância, o econômico – uma última instância que, a rigor, nunca chega, cuja hora nunca soa. Ela é, portanto, na leitura de Thompson, mais uma estrutura fixa, rígida e cristalizada, análoga às dos modelos de Smelser. Para ele (1978: 275), ambas as estruturas definem “categorias de estase”, “progresso” como um movimento por partes, confirmando os sistemas determinados pela contingência estrutural. Na verdade, denuncia (1978: 288), a categoria “última instância” é pouco explorada por Althusser, sempre adiada em sua obra e, embora a “autonomia relativa” seja “amorosamente desenvolvida por muitas páginas” e reapareça como “instâncias”, “níveis”, “temporalidades diferenciais”, “defasagens”, “torções”, nunca se esclarece como se operacionaliza tal conceito ou se explicita o que é relativamente autônomo – a Educação, por exemplo? – e, sendo assim, autônomo de que e relativamente a quê?
Em seu ataque ao historicismo, Althusser retirou da história seu caráter mutável, de modo a orientar uma ciência envolvida em uma coleção de eventos conduzindo à estrutura com dominante; o processo histórico reduz-se a uma articulação estrutural de formações sociais e econômicas (à la Smelser).
Segundo Thompson (1978: 282-283), Althusser, paradoxalmente, teria reintroduzido a teoria da modernização burguesa, uma teoria do desenvolvimento reajustada à terminologia do marxismo fazendo a estrutura adquirir precedência em relação ao processo histórico. Nesse caso, ao congelar a dinâmica do processo (como o nível sincrônico), confunde a análise da evidência. Cada instância, nível ou tempo seria relativamente autônomo. Relações de produção, formações científicas e filosóficas, superestrutura, cada uma teria uma história peculiar. Entretanto, na sua independência reside a viabilidade latente sobre o todo, a autonomia relativa. Mas, no processo de análise, o teórico deve precisar a função de cada um “na efetiva configuração do todo”. Thompson (1978: 285) reconhece nessa teoria um conhecimento sincrônico, a análise do movimento no tempo, a noção da eternidade spinoziana. O desequilíbrio entre o diacrônico (processo) e o sincrônico (relacionado a um sujeito em um tempo específico) reduz a diacronia a um mero atributo da estrutura. Segundo Thompson, o paradigma estrutural de autonomia relativa poderia ser uma defesa contra o reducionismo econômico se suficientemente qualificada. Entretanto, a condição “em última instância”, tão cara a Althusser, termina por expulsá-lo da insegurança de um sistema aberto (como o materialismo histórico) e devolvê-lo ao economicismo (traduzido como estruturalismo), mas com uma face socialista.
Por meio dessa sincronia abstrata e dessa categorização sistemática, permanece um conjunto de categorias distintas e de permutações, isoladas e independentes, na órbita da estrutura com dominante. O econômico, o político, o legal, todos giram em torno dessa estrutura de determinação, evitando referência a fatores mais complexos de poder, consciência e valores. As categorias interrogadas são somente as que o sistema de Althusser pode acomodar, as que não contêm nenhuma inferência histórica, social ou de valores. Além disso, mediante o estudo de uma “instância” particular, como a “legal” (o Direito), em Whigs and Hunters (1975), Thompson (1978: 288) observou que o suposto nível de “autonomia relativa” (na visão de Althusser) na verdade está presente em cada nível e imbricado no modo de produção, das relações de produção à religião, filosofia e política. Dessa forma, Thompson (1978: 289) rejeita o teorema central de Althusser, qualificando-o como absurdo acadêmico: as construções de Althusser são erradas e enganosas. Sua noção de “níveis” percorrendo a história a diferentes velocidades e em diferentes momentos é uma ficção acadêmica, pois todas essas “instâncias” e “níveis” são de fato atividades, instituições e idéias humanas. Thompson (1978: 289) considera que essas atividades, relações, a experiência vivida como mediação entre o ser social e a consciência, tudo é deformado (por Althusser). Nesse sentido, observa:
Estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações e em sua autoconsciência dessa experiência. Por “relações determinadas” indicamos relações estruturadas em termos de classes, em formações sociais particulares – um conjunto diversificado de “níveis”, geralmente ignorado por Althusser – e que a experiência de classe encontrará expressão simultânea em todas essas “instâncias”, “níveis”, instituições e atividades. (Thompson, 1978: 289).
Em sua contestação, Thompson sustenta que o fator determinante a instilar todos os níveis, categorias, instâncias, atividades e instituições é a luta de classe. Os efeitos podem se manifestar de diferentes maneiras e aparecer também como histórias distintas, mas, adverte:
Trata-se da mesma experiência unitária ou pressão determinante, ocorrendo no mesmo tempo histórico e movimentando-se no mesmo ritmo (...), de modo que todas essas “histórias” distintas devem ser reunidas no mesmo tempo histórico real, o tempo em que o processo se realiza. Esse processo integral é o objetivo final do conhecimento histórico e é isto o que Althusser se propõe a desintegrar. (Grifo no original) (Thompson, 1978: 289).
Por conseguinte, o tempo real, histórico, compreende variadas histórias e a realização do processo histórico (“o objetivo final do conhecimento histórico”).
 
3. Luta e agir humano
Para Thompson as questões relativas ao agir humano (agency), e sua realização, representam um conflito significativo no interior do estruturalismo. Althusser (1978: 75-128) já havia manifestado seu entendimento sobre o agir humano em um debate com John Lewis em Marxism Today e os títulos de seus ensaios já revelavam suas respostas – “Nunca esqueça a Luta de Classe”, “(A) Primazia Absoluta da Luta de Classe”, “A Luta de Classe é o Motor da História”. Thompson identifica uma contradição que diferencia fundamentalmente a abordagem de Marx e a de Althusser em relação à história e à luta de classe como “motor” da história. A confusão reside na compreensão literal e figurativa do termo “motor”. Para Thompson (1978: 295) o motor não é uma categoria mecânica, um conceito, mas uma analogia, a “força-motriz”. Porém, na interpretação de Althusser,
a história é um imenso sistema natural-humano em movimento e o motor da história é a luta de classes. (...) A história é certamente um processo sem Sujeito nem Fim(ns), cujas circunstâncias dadas, nas quais “os homens” agem como sujeitos sob a determinação de relações sociais, são o produto da luta de classes. Portanto, a história não tem, no sentido filosófico do termo, um Sujeito, mas um motor: a luta de classes. (Grifo no original) (Althusser, 1978: 70-71).
Segundo Thompson (1978: 297-298), nessa concepção que torna o processo histórico dependente de contradições estruturais, as classes se transformam em simples “funções do processo de produção”, o agente é excluído e o próprio processo histórico reificado. Nada nos é revelado sobre a natureza das classes, de como se processa a luta, ou como o “motor” funciona. A rigor, a história é negada e considerada inerte por Althusser, desqualificando os sujeitos, considerados incapazes de pensar e atuar em nome de mudanças. Para Thompson (1978: 298), no entanto, é inadmissível que a tradição britânica de historiografia marxista se conforme às normas desse planetário, pois “a classe trabalhadora se fez tanto quanto foi feita”:
As formações de classe (...) surgem no cruzamento da determinação e da auto-atividade: a classe operária “se fez a si mesma tanto quanto foi feita”. Não podemos colocar “classe” aqui e “consciência de classe” ali, como duas entidades separadas, uma vindo depois da outra, já que ambas devem ser consideradas conjuntamente – a experiência da determinação e sua abordagem – de maneira consciente. Nem podemos deduzir a classe de uma “seção” estática (já que é um vir-a-ser no tempo), nem como uma função de um modo de produção, já que as formações de classe e a consciência de classe (embora sujeitas a determinadas pressões) se desenvolvem em um processo inacabado de relação – de luta com outras classes – no tempo. (Grifo no original) (Thompson, 1978: 298).
Para Thompson (1978: 339), portanto, homens e mulheres permanecem os agentes do processo histórico. Por outro lado, como assinalamos, Althusser, sobretudo em Reading Capital, condena a “redução” das relações de produção a relações humanas historicizadas (inter-subjetivas), aceitas como agir humano. O conceito de humanidade, tão prevalente para Marx e Engels, é interpretado como uma provocação filosófico-antropológica estranha ao marxismo. Os sujeitos são portadores (vetores) de estruturas, “ocupantes” ou agentes (Althusser, 1970: 139-141 e 180).
Não obstante, o fato de colocar os indivíduos para além do preceito do agir humano, e em uma seqüência de leis fixas, traduz uma posição teórica partilhada de forma semelhante pela economia política e pelo utilitarismo. O próprio Marx havia desafiado essa desumanização teórica (porém fundamental para o estruturalismo) e se empenhado em expor essas contradições e esclarecer a esperança inerente que a resistência da classe trabalhadora representa contra a violenta desumanização imposta pelo capital. Diferente do uso do termo “homem” feito por Hegel e Feuerbach, seu emprego por Marx em seus primeiros escritos aponta para uma conotação de classe. Posteriormente ele incorpora a qualificação “conjunto das relações sociais”, assegurando, assim, uma referência ontológica na análise dessas relações.
Para Thompson (1978: 345), a interrogação das instâncias, níveis ou categorias, proposta por Althusser, representa um tipo de miopia que serve apenas como procedimento para procurar pela estrutura e a segurança teórica em seu interior. Nesse sentido, ele observa que, por exemplo, “esse modo (capitalista) de produção pôde (...) ser conceituado como uma estrutura integral, na qual todas as relações devem ser tomadas simultaneamente como um conjunto e na qual cada regra tem sua definição dentro dessa totalidade”. Assim, os indivíduos só poderiam ser vistos como vetores da máquina do capital.[9] Dessa forma, Thompson reafirma a importância de se distinguir “modo capitalista de produção” e “capitalismo”.
A crítica de Thompson ao estruturalismo (método, conceitos, conseqüências políticas) enfatiza, além do mais, o uso de seu vocabulário e condena a arrogância acadêmica que acompanha seu desenvolvimento. Thompson (1978: 300-301) localiza seus adversários no interior das universidades, portanto de espaços institucionalizados e, segundo ele, desprovidos de conhecimento prático e da habilidade de observar a sociedade. A própria experiência estruturalista impõe-se sobre sua linguagem, que depende de analogias a dispositivos mecânicos para articulação, como categorias, circuitos e programas. Thompson (1978: 301) percebe essa situação como um apelo a uma segurança cognitiva, uma “agorafobia intelectual” à qual todas as disciplinas devem aderir ou ser rejeitadas. A “história vista de baixo” optou por uma interpretação aberta. Uma noção flexível de estrutura poderia ser incluída, não de forma estática, mas como uma “determinação estrutural” (limites e pressões) no interior de uma formação social.[10]
A crítica de Marx a Proudhon, objeto de a Miséria da Filosofia, serviu de inspiração a Thompson – não só no título do livro, mas no que se refere ao sentido e ao estilo – em sua argumentação contra Althusser e alguns de seus principais discípulos. Contra Proudhon, o ataque de Marx foi lançado em defesa de uma “análise histórica integradora”, a dialética própria ao materialismo histórico. Em The Poverty..., as críticas a Althusser cobrem todo o espectro da concepção thompsoniana de materialismo histórico. Nesse contexto, Thompson retoma o que ele chama de “termo ausente”, a idéia de experiência humana, a categoria de experiência:
Voltamos ao termo que falta, experiência, e enfrentamos os verdadeiros silêncios de Marx. Não se trata apenas de um ponto de junção entre “estrutura” e “processo”, mas um ponto de disjunção entre tradições opostas e incompatíveis. Para uma delas, a do dogma idealista, esses “silêncios” são espaços em branco ou ausência de “rigor” em Marx (incapacidade de teorizar plenamente seus próprios conceitos) e devem ser costurados aproximando os conceitos gerados conceitualmente pela mesma matriz conceitual. (...) Essa procura da segurança de uma teoria perfeita, totalizada, é heresia original contra o conhecimento. (Thompson, 1978: 357).
Althusser e seus seguidores, no entanto, consideram a experiência humana como empirismo. Thompson (1978: 357) retoma a questão: “Os sentidos empíricos são obstruídos, os órgãos morais e estéticos reprimidos, a curiosidade sedada, todas as evidências ‘manifestas’ de vida ou de arte desacreditadas como ‘ideologia’ (...)”.
 
4. A Política da Teoria
No plano político, Thompson (1978: 263-264) associa o estruturalismo às correntes de pensamento anti-revolucionário. Afirma, por exemplo, que “um historiador, face ao estruturalismo, deve farejar e sentir no ar um cheiro de conservantismo” (1978: 266). Thompson (1978: 263) busca uma explicação histórica para esse fato, entende que “a ascensão do estruturalismo tem raízes reais na experiência histórica e que essa tendência da mente moderna deve ser vista, em parte, como uma tendência da ideologia (...)”. Ressalta que o momento estruturalista pode ser considerado “a ilusão desta época” e, nesse sentido, similar às noções de “inevitabilidade”, “evolução” e “progresso” (associadas ao evolucionismo e ao positivismo e que invadiram o vocabulário marxista), noções que confundiram o movimento socialista na Segunda Internacional (1889) e nos debates que se seguiram.
Para ilustrar o sentido político de uma experiência histórica, Thompson (1978: 264) recorda a emergência do fascismo e a Guerra Civil Espanhola. A seu ver, na época se forjou, no marxismo, uma opção voluntarista que realizou um diálogo utópico entre “agir humano, escolha, iniciativa individual, resistência, heroísmo e sacrifício”:
O marxismo, nas emergências decisivas da insurreição fascista e da Segunda Guerra Mundial, começou a adquirir o “sotaque” do voluntarismo. Seu vocabulário passou a englobar – como na Rússia depois de 1917 – mais verbos ativos de ação (...). A vitória nessas emergências já não parecia estar no curso da “evolução” (...). As próprias condições de guerra e repressão (...) impuseram sobre eles, diretamente, como indivíduos, a necessidade de julgamento político e de iniciativas práticas: como quando um destacamento da resistência explodia a ponte ferroviária crucial, parecia que “faziam história”. (Thompson, 1978: 264).
Durante esse período (1936-1946, para efeito dos objetivos de Thompson), a suposta neutralidade objetiva do evolucionismo deu lugar à necessidade, comprometida e engajada, não só de fazer a história, mas também de salvá-la. Thompson (1978: 264) admite e reconhece que sua linguagem e sensibilidade foram marcadas por esse (trágico) momento formativo. Como uma tendência comunista, Thompson observa que ela sobreviveu, nos anos posteriores à II Guerra Mundial, sobretudo nos países ditos em desenvolvimento, com seus impulsos periódicos reverberando no marxismo ocidental. Ele reitera que “1956” (como marco e proposta de agenda) representa a afirmação mais significativa dessa tradição, em especial na luta contra a política e a retórica da guerra fria. Thompson expressa tal perspectiva teórica e política por meio do realismo moral e do apelo da new left por um comunismo autêntico e libertário. Por outro lado, entre os anos de 1960 e 1970, o pensamento estruturalista consolida, junto ao marxismo, uma nova tendência. O vocabulário adquirido compõe e orienta a abordagem estruturalista e é incorporado nos procedimentos de outras disciplinas, como a antropologia, lingüística e psicanálise, e contribui, ironicamente, para um ostensivo conformismo político. Essa tendência teórica não só confirma a própria posição política de Thompson, mas também distingue sua interpretação do marxismo em oposição às correntes pró-soviéticas.
Nesse contexto, Thompson chama a atenção para a importância dos “conceitos mediadores” (junction-concepts), como classe, necessidade, determinação, que, ao lado do conceito de experiência, permitem compreender a estrutura como processo e impedir que o sujeito seja excluído da história, como no estruturalismo:
Exploramos, tanto na teoria como na prática, os conceitos de junção (“necessidade”, “classe” e “determinação”), pelos quais, por meio do termo ausente, “experiência”, a estrutura é transmutada em processo e o sujeito reinserido na história. Ampliamos (...) o conceito de classe, que os historiadores da tradição marxista empregam comumente – de maneira deliberada e não por uma “inocência” teórica – com uma flexibilidade e indeterminação desautorizadas (...) pelo marxismo (e) pela sociologia ortodoxa. (Thompson, 1978: 362).
O conceito mais amplo de classe e as complexidades das relações sociais são examinados para aproximar a “genética” de uma totalidade interativa no processo histórico (Thompson, 1978: 362-363). A noção de cultura, como um middle term, é introduzida e, juntamente com a de experiência, constitui um ponto de junção.[11] Essa compreensão pressupõe que a experiência dos sujeitos não se reduza a ideias no âmbito do pensamento, mas também seja sentimento. Em sua cultura os sujeitos “lidam” com o sentimento “como normas, obrigações familiares e de parentesco e reciprocidades, como valores, ou através de formas mais elaboradas na arte ou nas convicções religiosas”. Thompson (1978: 363-365) compreende essa “metade da cultura (uma metade completa) como consciência afetiva e moral”; o “querer” voltado para o “ter de”, à possibilidade de superação e emancipação; um ethos socialista básico. Mesmo com a constante repressão da ortodoxia, esse ethos encontrou condições para se expressar.
Para Thompson (1978: 372-373), os valores do povo tanto quanto suas necessidades materiais envolvem contradições. Valores, necessidades e “modos de vida” também se manifestam e fazem parte da luta de classe. Sua rejeição é a da razão negativa do Iluminismo, que recorre aos “naturalismos” espúrios dos cálculos de felicidade, às medidas de Bentham e aos avanços da ciência. Para ele a história humana significa mais do que isso.
O humanismo socialista, por representar um tipo de escrúpulo e de responsabilidade, uma ética, é considerado inaceitável: moralidade seria equivalente a teologia e ideologicamente contaminada. Como afirma Althusser, em “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”, ética, moralismo e valores são constitutivos desses aparelhos, que atraem, interpelam e detêm os indivíduos (sujeitos) com um apelo ideológico e/ou repressivo. Dessa forma, seu projeto visa redimensionar a epistemologia marxista de maneira a classificar, comparar e se opor a essa “consciência moral irracional” (Althusser, 1994: 123-140). Ademais, Althusser (1978: 59) associa o humanismo ao liberalismo burguês, pois ambos encontram suas bases nas categorias do direito burguês e da ideologia jurídica, materialmente indispensáveis ao modo de produção capitalista.
No entendimento de Thompson, a negação estruturalista dos valores constitui “uma heresia metafísica contra a razão”, um “encantamento mágico”, “ilusão teórica exaltada”, de uma “ordem totalmente reacionária”. Sua teoria reflete uma complicada inabilidade para lidar com a prática política, caracterizando, sobretudo na Europa Ocidental, um marxismo com pouca ou nenhuma experiência de luta, com efeitos de isolacionismo. O resultado é um elitismo, um afastamento intelectual e sociológico de fato entre teoria e prática, convicto, no entanto, de sua infalibilidade:
A noção do marxismo como uma Suma teórica auto-suficiente constituiu a essência da heresia metafísica contra a razão e inibiu a investigação ativa do mundo na tradição em desenvolvimento, provisória e autocrítica do materialismo histórico. O marxismo é proposto como um sistema de verdade final, (...) uma teologia. Todos buscam colocar Marx de volta na prisão do marxismo. Por que deveria ter havido esse “corte epistemológico” da racionalidade para o idealismo, essa rejeição das origens, ocorrida na década de 1950 e princípios da de 1960, essa reversão a um mundo interno de fórmulas mágicas e exaltada ilusão teórica, esse bloqueio dos sentidos empíricos (e) auto-fechamento de uma tradição? (...) É um problema de ideologia e da sociologia das ideias (...). (Thompson, 1978: 375).
Nesse contexto, a teoria é definida pelo partido e a classe trabalhadora é subordinada a suas decisões, desprovida de sua condição histórica de ação e iniciativa. Esse pseudomarxismo representa uma dominação ideológica e uma tendência autoritária no interior do próprio comunismo. Assim, ocorreu uma divisão entre teoria e prática, nociva aos interesses da classe trabalhadora. Thompson acredita que essa ruptura, ilustrada pela prática teórica de Althusser, havia sido conveniente para as classes dominantes emergentes dos países em desenvolvimento, devido à sua retórica antiimperialista e de teorias de “modernização”, em geral atraentes para a burguesia emergente. Para Thompson, a experiência do Khmer Rouge, cujos intelectuais, segundo ele, receberam uma interpretação particular de marxismo em Paris, é um exemplo preocupante dessa situação.
As críticas de Althusser (1970a: 221-247) ao humanismo socialista, sobretudo as de natureza política, são vistas por Thompson como um ataque ao mesmo tempo teórico, político e ideológico que faria parte de um projeto maior associado ao sectarismo da retórica da guerra fria. Com o processo de desestalinização, Althusser e John Lewis (no Partido Comunista Britânico) reconheceram que uma “nova moralidade” ganhava confiança no marxismo ocidental. A seu ver, um “humanismo de classe”, ou um “humanismo socialista”, se restringiria apenas à (então) União Soviética ou à China. Os dois pesquisadores consideravam a (então) União Soviética a “utopia desconhecida”, o mundo do “homem” humano, a realização da Teoria (de Althusser). Na perspectiva de Thompson, ambos fazem a apologia de um stalinismo reconstruído e suas interpretações simplesmente reconfirmam sua tese de 1957 sobre “humanismo socialista” e contra a ortodoxia do partido (Thompson, 1957: 105-143).
Eventos como o da repressão soviética em Budapest, em 1956, e o crescimento mundial da oposição comunista libertária, ao lado da maior divulgação das idéias do humanismo socialista, convenceram as lideranças dos partidos comunistas de que era necessário disciplinar seus membros e submetê-los à sua versão de comunismo. Preocupado com as investidas teóricas contra o “revisionismo”, Althusser, como teórico do Partido Comunista Francês, empenhou-se na tarefa de purificar o marxismo de influências “burguesas”. Nesse sentido, destaca-se a designação de Althusser como chefe-inquisidor (depois da publicação de Pour Marx e Lire le Capital), ocorrida durante seu encontro com o Secretário Geral do Partido, Waldeck Rocket (Althusser, 1978: 79-80 e 84-85).
O crescimento do humanismo socialista durante os anos de 1960 somou-se à insegurança no interior dos partidos e provocou uma reação em cadeia, como a rearticulação das tendências mais ortodoxas, em crise desde os tempos de Stalin. Althusser assumiu o encargo de refazer a disciplina e o ordenamento no campo da teoria e, ao mesmo tempo, atacar o humanismo e revelar as inconsistências teóricas de Stalin, acusando-as de dogmatismo e, algumas vezes, de “desvio” (Althusser, 1978: 54-55).
Pelos critérios de Althusser, um terço do partido comunista britânico em 1956 seria composto de burgueses moralistas, justamente “o momento de total contestação dentro do stalinismo”, como observa Thompson. Em conseqüência, Althusser fechou o comunismo a todos os que não aderissem à sua concepção. No entanto, para Thompson, essa disciplina e a discussão do desvio stalinista seriam mais de direita do que a esquerda libertária poderia jamais conspirar. Em última análise, a comparação do estruturalismo althusseriano a um planetário condena o salto do materialismo dialético para a prática teórica que, segundo Thompson, ofereceu ao stalinismo sua manifestação máxima, uma recorrente justificativa às agressões que precipitaram os movimentos de 1956.
 
Considerações Finais
Comparando-se os pontos de contato entre seu texto de 1957 (“Socialism Humanism: an Epistle to the Philistines”) e o de 1978 (The Poverty of Theory), o pensamento de Thompson permanece coerente, em especial ao aproximar o stalinismo e o althusserianismo como eventos históricos e políticos similares em sua particularidade. O stalinismo teria se desenvolvido na contingência contraditória da proposta de Stalin de construção de uma “base” produtiva na União Soviética (economicismo), articulada aos sonhos de um “Novo Homem Soviético”, enquanto o althusserianismo estruturalista representaria as tentativas de compreender e justificar tacitamente os “erros” dos percursos da União Soviética. A partir do Vigésimo Congresso do Partido Comunista, em 1956, os partidos passam a defender o marxismo ortodoxo e a preservar o sistema construído por Stalin, condenando somente o personagem Stalin, morto em 1953 (Althusser, 1978: 56-63). Dessa perspectiva, o estruturalismo marxista seria ao mesmo tempo a apologia da opressão, entendida como simples irregularidade e, no limite, a “legitimação teórica da prática”.
Para Thompson (1978: 345), em sua operacionalidade, o estruturalismo seria o “terminal do absurdo e da não-liberdade” e o “produto final da razão auto-alienada”. Dessa forma, nesse “terminal”, ou por meio dessa desrazão, “todos os projetos, compromissos, empreendimentos humanos e instituições, e a própria cultura humana parecem situar-se fora dos homens, contra os homens, como o ‘Outro’ que, por sua vez, movimenta os homens como coisas” – como os fundamentos da noção de estrutura para Althusser. Thompson (1978: 345) considera que esses fundamentos oferecem falsas escolhas: “devemos afirmar que não há regras, mas apenas um enxame de indivíduos ou que as regras jogam os jogadores”.
Mais uma vez, com sua habitual ironia e perspicácia, Thompson analisa o significado da abordagem estruturalista e de suas possíveis tendências e efeitos teórico-políticos:
Hoje os estruturalismos invadem (a área de liberdade e autonomia dos indivíduos) por todos os lados: somos estruturados por relações sociais, falados por estruturas lingüísticas previamente dadas, pensados por ideologias, sonhados por mitos, gerados (gendered) por normas sexuais patriarcais, atados por obrigações afetivas, cultivados (cultured) por mentalités e representados pelo roteiro da história. (Thompson, 1978: 345).
Nesse sentido, como devemos lembrar, a agenda da primeira new left incluía uma dupla confrontação: contestava o stalinismo e o capitalismo do pós-guerra como duas faces de um problema comum. O humanismo socialista pode ter sido um momento de redefinições e refinamento para o comunismo, mas, como Thompson (1978: 332) alerta, o processo não se completou. Para ele, as redefinições deveriam ter se reiniciado nos anos de 1970 e ainda não haviam se completado até o momento em que concluiu a redação de The Poverty....
A opção de Thompson – ao mesmo tempo intelectual, política e militante – propõe um socialismo democrático, independente e revolucionário em uma polêmica oposição ao legado do stalinismo. Ao apresentar esse projeto como uma alternativa, Thompson acrescenta que mesmo Marx deve ser libertado de manipulações teóricas, de forma a resgatar sua obra e seu legado da prisão do “modo de produção”:[12]
A questão é que Marx está do nosso lado; nós não estamos do lado de Marx. Ele é uma voz cujo vigor nunca será silenciado, mas não foi jamais a única voz (...) Ele tinha pouco a dizer (por opção) quanto aos objetivos socialistas, em relação aos quais Morris e outros disseram (...) mais coisas pertinentes hoje. Ao dizer esse pouco, ele esqueceu (e pareceu negar) que não só o socialismo, mas qualquer futuro feito pelos homens e mulheres não se baseia apenas na “ciência” ou nas determinações da necessidade, mas também numa escolha de valores e nas lutas para tornar efetivas essas escolhas. (Grifo no original) (Thompson, 1978: 384).
Naquele momento, para Thompson (1978: 384), a escolha que a tradição marxista deveria enfrentar era entre o irracionalismo idealista (da prática teórica) e a razão ativa e operativa (do comunismo libertário). Tais escolhas e definições, sob novas roupagens, podem ser pensadas e avaliadas no atual momento histórico.
Ao discutir esse conjunto de temas, The Poverty... tornou-se talvez o mais relevante texto teórico sobre os procedimentos adotados por Thompson, assim como norteou a perspectiva da “lógica histórica”.
A abordagem, contudo, também expôs suas fraquezas, especificamente em relação à sua compreensão do estruturalismo. A posição engajada de Thompson ainda se pautava pela “agenda de 1956”, como ele mesmo afirma, e orientou a maioria das polêmicas de seu ensaio. O olhar exclusivo da abordagem de Thompson talvez lhe tenha impedido o acesso a outras leituras sobre o materialismo histórico ou o marxismo – como, por exemplo, as de G. Lukács e I. Meszaros. Ironicamente, não obstante a coerência e a consistência de sua análise, este fato promoveu interpretações e acusações em um arco que se estende do revisionismo ao sectarismo.
 
 
Referências
ABELOVE, Henry. “Review Essay of ‘The Poverty of Theory’”, History and Theory, vol. 21, 1982.
ALTHUSSER, Louis. Reading Capital. London: New Left Books, 1970.
ALTHUSSER, Louis. For Marx. London: Vintage Books, 1970a.
ALTHUSSER, Louis. Para Leer el Capital. 4 ed., México: Siglo Veintiuno, 1970b.
ALTHUSSER, Louis. Lénine et la Philosophie. Paris: Maspero, 1972.
ALTHUSSER, Louis. Pour Marx. Paris: Maspero, 1973.
ALTHUSSER, Louis. Essays in Self-Criticism. London: New Left Books, 1976.
ALTHUSSER, Louis. Posições I. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. 2 ed., Rio: Zahar, 1979.
ALTHUSSER, Louis. “Ideology and Ideological State Apparatuses (Notes towards an investigation)”, in ZIZEK, Slavoj (ed). Mapping Ideology. London: Verso, 1994.
ALTHUSSER, Louis et al.. Lire le Capital. Col. Quadrige, Paris: la Decouverte/PUF, 1996.
BALIBAR, Étienne. “From Bachelard to Althusser. The Concept of Epistemological Break”, Economy and Society, vol. 7, n. 3, August, 1978.
HIRST, Paul Q. Marxism and Historical Writing. London: Routledge, 1986.
THOMPSON, Edward P. “Socialist Humanism: an Epistle to the Philistines”, New Reasoner, n. 1, Summer, 1957.
THOMPSON, E. P. et al. (ed). Out of Apathy. London: Steven & Sons/New Left Books, 1960.
THOMPSON, E. P. The Making of the English Working Class. Harmondsworth: Penguin, Pelican Books, new ed., 1968.
THOMPSON, E. P. Whigs and Hunters. New York: Pantheon, 1975.
THOMPSON, E. P. The Poverty of Theory and Other Essays. London: Merlin, 1978.
THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria. Rio: Zahar, 1981.
WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.


[1] Além de “The Poverty of Theory, or an Orrery of Errors” (1978), “An Open Letter to Leszek Kolakowsky” (1973), “The Peculiarities of the English” (1965) e “Outside the Whale” (1960). Constam também: um “Foreword”, um “Note on the Texts” e um “Afternote”. As edições brasileira e espanhola, ambas de 1981, e a reedição inglesa de 1995 (também pela Merlin Press, que lançou a primeira edição), só publicaram o ensaio “A Miséria da Teoria”.
[2] Cf. Althusser (1970: 52-58) e Thompson (1978: 197-198). Com base nas críticas de Thompson, Paul Hirst (1986: 76-77) admitiu que “(a) História não é uma disciplina empírica, ela está relacionada a fenômenos reais, o que não deve ser confundido com empiricismo, como fez Althusser”.
[3] Thompson não observa que Althusser emprega a noção de infra-estrutura e não base.
[4] Na edição brasileira a frase é afirmativa: o “não” foi omitido, comprometendo o sentido.
[5] Cf. Thompson (1968: 9-14), “Prefácio” de The Making..., onde ele atacou previamente essa perspectiva.
[6] A própria expressão, “distúrbios”, freqüentemente usada para designar essas manifestações, já traduz essa matriz ideológica. Cf. pronunciamento de E. P. Thompson no seminário do grupo “History Workshop” sobre o livro The Poverty of Theory, Oxford, dezembro de 1979, fita do acervo da biblioteca do Ruskin College.
[7] De acordo com a tradução da edição brasileira, cf. Althusser (1979: 176 et passim).
[8] Cf. Williams, R. (1977: 83-89), sobre o conceito de determinação, como contraponto à posição althusseriana.
[9] Cf. Williams (1977: 90-94) sobre o conceito de forças produtivas.
[10] Thompson não esclareceu suficientemente essa conceituação, e remete seus leitores às formulações de Raymond Williams (1977), em Marxismo e Literatura, ou a exemplos análogos de Maurice Dobb. Cf. Thompson (1978: 242), onde cita os conceitos “fixação de limites” e “exercício de pressões”, elaborados por Williams (1977).
[11] A noção de junction concepts resulta de discussões entre Thompson e Raymond Williams, como também os conceitos de determinação, como mencionado, e o de estruturas de sentimento – desenvolvido particularmente por Williams e a que Thompson se refere nesse trecho. Ambos empregam o conceito de “estrutura”, mas em sentido distinto ao de Althusser. Cf. Williams, R. (1977: 128-135).
[12] Observar na citação as premissas do realismo moral de William Morris, fundamentais para Thompson.

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