09/05/2025

Autonomia e antagonismo em Rosa Luxemburg e Gramsci

Por

Autor: Marcos Del Roio*

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No decorrer do último quarto do século XX, difundiu-se a convicção que a teoria e a prática social gerada a partir da obra de Karl Marx estavam esgotadas, não só pela sua possível debilidade intrínseca, mas, no limite, em decorrência de uma série de crimes surgidos nas engrenagens do stalinismo. Ademais, a revolução científico-técnica, a reestruturação produtiva, a globalização neoliberal do mercado e da cultura estariam eliminando o próprio substrato material da teoria marxiana, que seria a classe operária industrial.

As mais diversas concepções ideológicas (incluindo parte do campo das esquerdas) contribuíram para apagar a memória das lutas emancipatórias do movimento operário de época imperialista -- que poderíamos identificar como "clássica" (1880-1980) --, fortemente permeado pelas lutas de resistência e de formação mimética de Estados nacionais. O fim do século XX assistiu a uma crise do movimento operário de talhe fordista e de suas instituições, e também a uma crise da luta de resistência nacional. Essa afirmação pode parecer paradoxal, considerando a desintegração da URSS e de seu campo imperial, mas o fato é que a imposição de regimes de matiz neoliberal nesses países fez prevalecer a impôs a opção imperial do Ocidente, uma renovada perspectiva colonialista, que visa a configuração de um império universal centrado no domínio inconteste do capital (as grandes corporações), com a mediação do Estado americano -- um imperialismo unipolar.

No entanto, de uma outra perspectiva, essa fase iniciada em torno de 1980, pode ser vista como sendo de uma ofensiva do capital em crise de acumulação contra o mundo do trabalho, contra os seus espaços de autonomia e de antagonismo. A tentativa, por meio da globalização e reestruturação produtiva e gerencial, foi a de romper os laços de solidariedade gerados pela cooperação social do trabalho, demandado e imposto pelo próprio capital no seu processo de reprodução.

A resistência operária se manifestou, de maneira corporativa, por meio do sindicato e do partido, as instâncias de organização social e política dos trabalhadores que se desenvolveram com mais força a partir de fins do século XIX. Mas a resistência se manifestou também de maneiras e com temas novos, como a autogestão e a questão do ambiente e da diversidade sexual e etária. A crise do capital possibilitou a emergência de outros aspectos do desenvolvimento da sua contradição intrínseca e externa, relativa ao trabalho e ao ambiente, mas a cultura política e a ideologia do movimento operário encontraram séria dificuldade em apreender a totalidade da contradição em processo, de modo que essas lutas se manifestaram como lutas parciais ou setoriais. O sindicalismo operário e os partidos políticos sucumbiram aos regimes neoliberais e se adequaram às imposições do capital. Assim, de uma maneira mais ou menos inadvertida, colabora para a recriação da cooperação social do trabalho em vistas a acumulação do capital e o agravamento da alienação.

O limite teórico-político do movimento operário do século XX e da teoria socialista, em geral, pode ser identificado (não sem grande polêmica) na idéia que a cooperação social do trabalho gerada pela ação do capital se voltaria contra a dominação e assumiria um papel emancipatório. O complemento dessa concepção seria que a ocupação do poder estatal capitalista teria o condão de arrefecer a sanha da acumulação predatória e encaminhar soluções socialistas.

A partir do início do novo século os novíssimos movimentos sociais começaram a se impor na cena, de certo modo ocupando o lugar do movimento operário do século XX. Não que fossem tão novos, pois apenas vinham germinando há muito tempo, desde os anos 70, como ação de resistência, de autonomia, de antagonismo às mazelas do domínio do capital. Podem mesmo ser o embrião de um novo movimento operário, mais amplo e mais universal, orientado por um efetivo internacionalismo.

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Há uma tendência no seio do movimento de resistência ao domínio imperial do capital em subestimar, quando não zerar a contribuição da refundação comunista do inicio do século, o chamado marxismo clássico. Enquanto no Ocidente a teoria social de Marx era subsumida ao liberalismo-democrático e à alta cultura burguesa (mormente após a morte de Engels em 1895), na periferia russa, particularmente com Lênin e Rosa Luxemburg o comunismo foi refundado e retomada a reflexão crítica do capitalismo. Ambos esses autores viveram e pensaram a situação limite do impacto da difusão do capitalismo na Polônia e na Rússia, assim como ambos viveram e sorveram muito da cultura crítica gerada na Europa central. A diferença é que Lênin viveu um exílio suíço e Rosa Luxemburg adotou a Alemanha como centro da sua batalha política e ideológica.

Disso resultou que cada um lutou lado a lado com um movimento operário com diferentes características e contou com grupos políticos organizados como aliados ou interlocutores próximos também diferenciados. Lênin travou batalha no cerne da contradição imperialista, que se postava exatamente na periferia ou no elo fraco da corrente. Rosa lutou na Rússia e na Polônia, mas o principal da sua atividade se desenrolou na Alemanha, o berço da teoria comunista (quando a Alemanha era periferia da revolução burguesa), mas também um pólo decisivo no desenvolvimento da teoria reformista que impregnou o movimento operário. A diferença de perspectiva determinada pelo espaço político cultural de ação foi contrabalançada sempre pela perspectiva internacionalista que ambos tinham introjetado.

A eclosão da guerra imperialista causou um sério impacto moral e teórico na formulação de ambos, que foram levados a aprofundar a refundação teórico-prática do comunismo, que alcançaria o seu ápice no bojo da revolução socialista internacional originada na Rússia e difundida pela Europa centro-oriental. Como se sabe, a revolução refluiu logo para o seu berço russo, onde ficou isolada após 1921, com a derrota tomando conta do movimento revolucionário na Europa toda. A morte precoce de Lênin (1924), condições objetivas extremamente limitativas, a indefinição estratégica e cisão do grupo dirigente bolchevique levaram a refundação comunista ao esgotamento.

A derrota da revolução socialista internacional na Europa centro-oriental (Alemanha, Áustria, Hungria, Polônia, Itália) e a morte ainda mais precoce de Rosa Luxemburg (1919) fazem com freqüência com que a sua reflexão teórica seja colocada em segundo plano e que não se considere a sua influência decisiva para a continuidade da refundação comunista. A segunda fase da refundação comunista contou como grandes expoentes as figuras de Lukács e de Gramsci. Note-se que são ambos originários de regiões periféricas sob impacto da difusão do capitalismo. Lukács era da Hungria, a parte mais oriental do poder imperial dos Habsburgo, e logo se envolveu com a alta cultura burguesa alemã. Por meio da Rosa Luxemburg e da cultura crítica da esquerda encontrou-se com Marx e com Lênin. Da Sardenha, uma ilha que havia sido tornada parte da Itália meridional, símbolo de periferia atrasada, apareceu Gramsci, que também sorveu da cultura da esquerda autonomista e anticapitalista da Alemanha.

Interessa nesse escrito indicar aspectos da elaboração de Rosa Luxemburg e a sua possível influência (ou congruência) em Gramsci a fim de identificar nesses autores a ênfase na autonomia e no antagonismo na luta política e cultural com vistas à revolução socialista. Esse pode ser o indicativo da atualidade desses autores e da possível contribuição que podem oferecer às lutas sociais emancipatórias do nosso tempo.

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No final do século XIX era latente a crise estratégica do movimento operário e socialista, agravada ainda com a nova fase expansiva do capital (após 1895) e com os laivos de democratização dos Estados liberal-imperialistas. A Introdução que Engels escreveu para a nova edição do livro de Marx sobre As lutas de classes na França (1848-1850), foi não só um indicativo dessa crise, como foi um primeiro intento para sugerir um caminho viável para o movimento naquelas condições históricas, particularmente para o caso alemão. Engels sabia que a aposta no caminho da insurreição, num prazo curto, só envolveria uma pequena fração da classe operária e a clara decorrência seria uma derrota de proporções históricas, tal qual a ocorrida na França por ocasião da Comuna de Paris (1871).[1]

A análise da situação concreta indicava que a classe operária deveria passar por uma longa fase de fortalecimento das suas instituições sociais - o sindicato e o partido - com fito de organizar e educar a classe para o socialismo. A participação nas instituições liberal-burguesas, particularmente o Parlamento, teriam a sua importância nesse processo, na medida que servissem de instrumento para o objetivo maior da organização e educação das massas. Nessa perspectiva, a revolução socialista seria um fenômeno inédito na história, pois viria a ocorrer como um amplo movimento de massas conscientes do objetivo a ser alcançado. Apenas um movimento insurrecional com essa qualidade teria condições de paralisar e vencer o aparato repressivo burguês.

Apesar do prestígio com que contava no SPD - Partido Social-Democrata da Alemanha --, o grupo dos seguidores de Marx não era grande e se cindiu após a morte de Engels. Bernstein, um dos diletos interlocutores e seguidores de Engels, se beneficiando da ambigüidade e insuficiência das sugestões do mestre, buscou desenvolver uma concepção teórica sofisticada que desse cabo da crise estratégica do movimento operário. O ponto de partida era considerar a expansão capitalista como duradoura e assim também o processo de democratização do Estado. Nessas circunstâncias, as instituições sociais da classe operária deveria se inserir no Estado a fim de acentuar a sua democratização e descaracterizar a sua natureza de classe. Por meio de lutas parciais dos sindicatos e do partido, o controle da produção e uma melhor distribuição da riqueza social seriam alcançados, satisfazendo a demanda de cidadania e justiça. Nesse raciocínio, a própria noção de socialismo perde o sentido, pois não passa de uma abstração.

Embora ferisse o discurso oficial do partido, a elaboração de Bernstein racionalizava e sistematizava a cultura política difusa na massa partidária, mas também nas lideranças sindicais e parlamentares, que já se manifestavam nessa direção, de modo que, com o passar do tempo, a sua concepção passou a predominar, ainda que não com a clareza e sinceridade do precursor. De início a defesa da "ortodoxia" foi encabeçada por Kautski, mas foi Rosa Luxemburg, recém chegada da Suíça (1897), que com denodo se empenhou em refutar as teses de Bernstein.

A crítica fundamental de Rosa, exposta na coletânea de textos Reforma social ou Revolução?, incidiu sobre o problema do método. A critica de Bernstein à dialética e a sua adesão ao neokantismo o transportava para dentro da cultura burguesa. Rosa insistiu nas teses marxianas das crises cíclicas e agravadas do capitalismo, da natureza intrinsecamente classista do Estado e na necessidade incontornável da revolução socialista. Na situação que se apresentava, porém, o movimento socialista deveria lutar pela educação das massas por meio de objetivos parciais vinculados ao objetivo final do socialismo e para isso a democracia era um elemento indispensável. Enquanto Bernstein vislumbrava na democracia burguesa em constante ampliação o meio de tornar supérflua a revolução, Rosa, pelo contrário, pensava ser a democracia a tornar necessária e indispensável a conquista do poder por parte do proletariado.[2]

Mas Rosa encontra-se ainda no mesmo terreno onde se encontrava Engels e chega a reconhecer esse limite. A reflexão de Engels (acima recordada), dizia ela, se referia ao comportamento do proletariado diante do Estado capitalista enquanto classe dominada, não a um proletariado vencedor. Mas Rosa tampouco consegue delinear uma orientação estratégica clara para fazer vencer o proletariado. Sugere apenas que a luta de classe deve se desenrolar de tal modo a evitar tanto o oportunismo pelo qual clama Bernstein, como o blanquismo, contra o qual já prevenira Engels. A importante intuição de Rosa nesse debate é que desde logo ela entende a revolução socialista como um processo de longa duração, e que "a revolução socialista pressupõe uma longa e aguerrida batalha, no curso da qual, muito provavelmente, o proletariado será empurrado para trás mais de uma vez, de modo que, a primeira vez, do ponto de vista do resultado final da luta, terá chegado ao poder "cedo demais"".[3]

Para defender a sua impostação, Rosa teve que se aferrar ao papel que cumpriria nesse processo as leis objetivas do desenvolvimento capitalista, que levariam a ordem burguesa às crises sempre mais dramáticas e que não deixariam saída ao proletariado senão a tomada do poder. Embora Bernstein tenha sido momentaneamente derrotado em nome da "doutrina", o fato é que os acontecimentos pareciam lhe dar razão naquela virada de século.

Em oposição ao reformismo estabelecido na França, em 1904, foi fundada a CGT - Confederação Geral do Trabalho, condensando a vertente sindicalista revolucionária, que se formara depois da expulsão dos anarquistas da Internacional Socialista, em 1896. Um novo e decisivo impulso no movimento operário ocorreu na Rússia, onde já havia uma tendência ascendente desde o início do novo século. A partir da França o sindicalismo-revolucionário se espalhou pela Itália, pela Alemanha, pela península ibérica e pela América Ibérica.

O sindicalismo-revolucionário enfatizava a autonomia e o antagonismo diante da ordem do capital. Em rápidas palavras, o sindicalismo-revolucionário defendia a auto-organização dos trabalhadores em sindicatos, que serviriam como escolas de uma vida emancipada e como embrião de uma nova forma de organização econômica. O estímulo ideal seria dado pela ereção do mito da greve geral contra a ordem estabelecida. A luta dos trabalhadores deveria se dirigir contra toda forma de poder, o que explica a recusa da política e do partido político como instrumento de emancipação do trabalho. O sindicalismo-revolucionário recusava também a criação de uma camada de intelectuais ou de dirigentes, porquanto seria essa uma forma de diferenciação e hierarquização entre os homens. Note-se que assim a reflexão sindicalista-revolucionária reproduzia a cisão posta pela ordem burguesa e pela ideologia liberal, entre as dimensões do econômico e do político, mas não aceitava a noção de direção política, no sentido de vanguarda jacobina blanquista.

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A ascensão do movimento operário russo e a greve geral do proletariado belga, em 1902, indicaram a Rosa o caminho a ser trilhado em busca de um desenho estratégico no qual a emancipação dos trabalhadores fosse obra deles mesmos. Daí a insistência na auto-organização e auto-atividade das massas, na autonomia e no antagonismo da sua luta anticapitalista. O debate sobre a greve de massas estava já posto às lideranças do movimento operário quando eclodiu a revolução russa. Essa ofereceu exemplos práticos do desenrolar da greve de massas, mas a maioria da social-democracia descartou os argumentos daí exarados por entender ser a Rússia um país oriental e atrasado, que estava às voltas com uma revolução burguesa, situação muito diferente da Alemanha e do Ocidente, que já contaria com instituições democrático-parlamentares consolidadas.

A batalha teórico-ideológica de Rosa teve que se dar em duas frentes: contra o sindicalismo-revolucionário e contra o sindicalismo reformista do SPD. Contra ambas as vertentes, agitava a concepção da greve política de massas como estratégia da revolução socialista de longo prazo. Não há dúvida, porém, que Rosa estivesse mais próxima do sindicalismo-revolucionário quando defendia a autonomia e a auto-atividade das massas, o antagonismo permanente frente à ordem do capital, a greve massiva como método de luta. A necessidade da política, de um partido político revolucionário que se estruturasse a partir das lutas sociais das massas trabalhadoras, a diferenciava do sindicalismo-revolucionário e a colocava no campo do marxismo revolucionário, de uma refundação do comunismo.

Contra o reformismo, Rosa deveu desenvolver a crítica da democracia burguesa e a congruência da luta operária contra o capital, o que implicava dizer da ampla validade da estratégia da greve de massas, fosse na Rússia ou na Alemanha, fosse contra o absolutismo ou contra o capitalismo. Importante era acentuar a autonomia da luta operária contra a exploração capitalista. Era a greve de massa a indicar a superação da contradição dialética posta ao movimento operário, que opunha uma vontade popular formada na luta cotidiana dentro dos limites da ordem a uma vontade popular desejosa de superar os limites da ordem e construir uma nova sociabilidade.

Durante o cotidiano operário sob o domínio do capital, a luta se desenrola sob forma sindical e parlamentar, mas a disciplina operária "não vem enxertada no proletariado somente pela fábrica, mas também pela caserna, também pelo moderno burocratismo, em uma palavra, por todo o mecanismo do Estado burguês centralizado".[4] A cooperação operária e a sua consciência coletiva se constroem na luta ativa e prática contra o capital, ocorre quando o cotidiano da fábrica, da caserna e da burocracia é rompido.

Como é o conjunto do movimento a determinar a direção da luta, para Rosa, o centralismo é apenas "o momento imperativo no qual se unifica a vontade da vanguarda consciente e militante da classe operária diante de seus grupos e indivíduos isolados, e isso é por assim dizer ‘autocentralismo’da camada dirigente do proletariado, o domínio da maioria no interior da própria organização do partido".[5]

A cooperação e a disciplina operária surgida da sua auto-atividade e antagonismo é, portanto, diferente da cooperação e disciplina impostas pelo capital, de modo que

Não é coligindo-se à disciplina enxertada (ao operário) pelo Estado capitalista, mediante a simples passagem do bastão de comando da mão da burguesia àquela do comitê central social-democrata, mas extirpando pela raiz aquele espírito escravista de disciplina, que o proletariado pode ser educado para uma nova disciplina, a autodisciplina voluntária da social-democracia. [6]

O essencial para Rosa é a ruptura do cotidiano imposto pelo capital por conta da rebeldia do trabalho, que se expressa centralmente na abstenção do processo de produção da mais-valia. Na ação prática e coletiva é que se forja a consciência e a vontade coletiva transformadora, na experiência se formam os embriões de novas instituições da democracia socialista, inclusive o partido das massas trabalhadoras revolucionárias. Não há mais sentido em se falar em programa mínimo (dentro da ordem burguesa) e programa máximo (para uma abstrata revolução socialista plantada no futuro), pois se trata agora de fazer a transformação por meio de uma seqüência de objetivos intermediários.

A greve de massa é o meio pelo qual se rompe o cotidiano da ordem, é o meio que pressiona por objetivos estabelecidos. Por precaução, Rosa tenta se desvincular da noção de greve geral, de greve de massa, característica do anarquismo clássico (Bakunin, por ex.), acatando as críticas de Engels, feitas há seu tempo. Defendia o método da greve de massa na Rússia como meio adequado para se alcançar os objetivos da emancipação política das massas, mas enfatizava que a greve de massa não pode ser uma ação a ser decidida em favor ou em contra por direções sindicais ou políticas do movimento operário.

Em determinadas situações, nas quais a auto-atividade das massas vem a predominar, irrompe a greve de massa. É quando o movimento indica a tática política, é quando a centralização democrática da luta socialista se impõe às direções que devem coordenar as ações. Se a revolução produz a greve de massa é importante que a direção política esteja vinculada estreitamente à disposição das massas, mas a tática política deve estar sempre na frente, mais avançada do que a efetiva relação da forças políticas em cena.

A avaliação feita por Rosa da experiência russa mostra como, a partir de 1896, as greves de massa começaram por motivos econômicos e como, no desenrolar da revolução de 1905, as greves surgiram em atendimento à orientação da direção social-democrata. A greve de massa que ocorre por toda a Rússia, que apresenta características insurrecionais, que sofrem recuos, deveria se concluir numa ação coordenada de greve e de insurreição de massa. O caso particular da revolução russa mostra a diversidade de formas e de meios pelo qual se chega à greve de massa, mas indica também que a greve de massa é uma forma de luta operária e popular que pode ser generalizada para realidades sociais diferentes. Rosa afirma que "a greve de massa, como nos mostra a revolução russa, é um fenômeno assim mutável que reflete em si todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e os momentos da revolução". [7]

Rosa concebe a greve de massa como a estratégia enfim encontrada para a revolução socialista, uma estratégia que não se confunde com o anarquismo ou o sindicalismo-revolucionário e ainda menos com o social-reformismo. A greve de massa é o método da luta da classe operária seja para alcançar objetivos democráticos, seja para abater o domínio do capital. É também a estratégia de embate parcial, de desgaste, de acúmulo de experiência e de força, posto que a revolução pode ser é um processo de longo prazo. Assim que a greve de massa é "o modo do movimento da massa proletária, a forma de manifestação da luta proletária na revolução", é "o conceito que resume um inteiro período de luta de classe que pode durar anos e talvez décadas".[8]

Se a greve de massa esgarça o domínio do capital, abre também espaço para uma organização crescente autônoma e antagônica da parte do proletariado, um espaço de emancipação que cria as suas próprias instituições. A greve de massa se orienta pra a criação de um poder dual: forma-se um antipoder proletário, que assedia e cerca o poder do capital.

Outra característica para a qual Rosa chama a atenção é que a greve de massa tende a dissolver a cisão do mundo burguês (e reproduzida pelo sindicalismo revolucionário ou reformista) entre as dimensões do econômico e do político. A greve de massa pode ter início por motivos econômicos que redundam em disputa política ou por razões políticas que alimentam as reivindicações econômicas, mas ao fim essa dicotomia é falsa, pois o enfoque da totalidade que emerge na luta revolucionária promove um forte entrelaçamento e a fusão das lutas. Na verdade, "a luta econômica é o elemento condutor de um a outro nó político; a luta política é a fecundação periódica do terreno para a luta econômica".[9]

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Desenvolvendo algumas pistas deixadas por Engels, mas descobrindo a rota que a levaria a refundação do comunismo no Ocidente, por ocasião da revolução russa de 1905, Rosa já antecipava a noção de dualidade de poder, de hegemonia, de guerra de posição, desenvolvidos pela reflexão posterior de Lênin e ainda mais de Gramsci. Por ocasião da eclosão da revolução socialista internacional na Rússia de 1917, Rosa retomou e aprofundou os problemas, cujo fio condutor havia encontrado em 1905, e que não foi mais abandonado. Em 1910, defendeu a greve de massas pela ampliação do sufrágio e a proposição da república democrática para a Alemanha, num debate intenso que envolveu também os marxistas russos. A partir daí, a ruptura teórica e política com Kautski e com todas as formas de reformismo estava consumada.

Rosa havia resistido ainda à cisão orgânica do movimento operário alemão, mesmo com a gravíssima traição a todos os princípios da Internacional Socialista, que houvera sido perpetrada pela grande maioria da direção política e sindical ao se vincular com os interesses imperialistas. Essa posição se explica pelo fato de Rosa perceber o reformismo como produto de uma contradição inerente ao movimento operário: a contradição entre o cotidiano vivido sob a ordem do capital, com possíveis ganhos parciais, e o objetivo de transposição da ordem pela revolução socialista.

A partir de 1916 rompe-se o quase consenso que havia em torno da guerra imperialista nos diversos países beligerantes e as manifestações de greve se multiplicam, até que, em março de 1917, eclode a revolução socialista internacional na Rússia. Rosa sabia, tanto quanto Lênin ou Trotski, que a revolução na Rússia não podia se manter dentro dos contornos da revolução democrático-burguesa e tanto menos nos contornos do império russo, de modo que logo a revolução teria que se espalhar pela Alemanha. Com a vitória da revolução russa, Rosa valoriza a jacobinismo e a capacidade de direção dos bolcheviques afirmando que "o caminho não vai à tática revolucionária através da maioria, mas a maioria através da tática revolucionária", mas insiste que "a democracia socialista começa junto com a obra de destruição da dominação de classe e de construção do socialismo. Essa começa a partir do momento em que o partido socialista toma o poder".[10]

A difusão da revolução pela Alemanha tornou possível a saída de Rosa da prisão, onde se encontrava desde os começos da guerra imperialista, à qual se opôs com denodo e paixão. A queda do regime monárquico prussiano e a formação dos conselhos de operários e soldados logo colocaram na ordem do dia a formação de um novo partido revolucionário que organizasse e representasse as massas operárias mais avançadas na luta, consumando a cisão orgânica com a social-democracia reformista. A social-democracia -- já então dividida em dois partidos -- controlava o Governo Provisório republicano e também os conselhos de operários e soldados, que decidiram em congresso pela autodissolução em favor de uma Assembléia Nacional Constituinte com base nos partidos políticos, a qual deveria constituir uma república democrática parlamentar.

Essa decisão apressou o agrupamento das forças políticas que defendiam a revolução socialista e a criação de um Estado baseado nos Conselhos. Assim, fosse da esquerda da USPD - Partido Social-Democrata Independente, onde se destacava a Liga de Spartakus de Rosa Luxemburg, ou de pequenos grupos regionais de esquerda revolucionária, houve uma convergência para a formação do KPD - Partido Comunista da Alemanha.

No Discurso sobre o Programa, Rosa expõe com a clareza possível uma concepção de revolução socialista de tempo longo, uma revolução que depende fundamentalmente do antagonismo e da auto-atividade das massas proletárias, "revolução que tem ainda um esforço imenso por cumprir e um longo caminho por percorrer". [11] Rosa entende que

está na natureza mesma dessa revolução que as greves se desenvolvam sempre mais, que devem sempre mais se transformar no ponto central, o momento fundamental da revolução. Essa é então uma revolução econômica e com isso se transforma em revolução socialista. Mas a revolução socialista pode ser combatida somente pelas massas, imediatamente peito contra peito contra o capitalismo, em cada empresa, por cada proletário contra o seu empresário. Só então será uma revolução socialista.[12]

Assim, revolução socialista para Rosa Luxemburg é a alteração profunda das relações sociais de produção, é a ruptura da engrenagem reprodutiva da mais-valia. A greve de massa é o instrumento principal para garantir a paralisia da reprodução do capital. A luta do trabalho contra o capital, pela gestão da produção é a base e o fundamento da revolução socialista, de modo que a essa ação destrutiva da ordem social burguesa deve vincular-se uma ação de construção de uma nova ordem e de um poder efetivamente público / social. O conselho de operários e soldados é então a forma que possibilita a reorganização da produção, mas também a gestão da coisa pública em moldes radicalmente democráticos e socialistas. A construção da nova ordem socialista passa pela difusão e fortalecimento dos conselhos o que implica a articulação de um arco de alianças sociais que inclua o proletariado agrícola e os pequenos camponeses.

A difusão e o fortalecimento dos conselhos, a sua capacidade de assumir as tarefas de gestão da produção e da coisa pública, subtraindo da empresa privada e do Estado burguês as funções administrativas, constituem o processo revolucionário. Assim que "a conquista do poder não deve realizar-se toda de um golpe, mas progressivamente, inserindo cunhas no Estado burguês, até ocupar-lhe todas as posições e a defendê-las com unhas e dentes". [13]

O antagonismo e a auto-atividade das massas se expressam na greve de massas e na organização de um novo poder público / social e, por isso mesmo, anticapitalista, por meio dos conselhos de operários, num processo que pode ser mais ou menos longo, de acordo com o desenrolar da luta de classes. Nesse processo, esclareça-se, há uma progressiva substituição do poder político da burguesia por um novo poder público anticapitalista. Não se trata exatamente de uma tomada do poder do Estado, como se esse centralizasse e nucleasse todo o poder, ou mesmo que o poder fosse algo indistinto a ser tomado por uma ou outra força política. Até porque o poder público definido nos conselhos promovia a diluição das falsas fronteiras entre a dimensão do econômico e do político, do privado e do abstratamente público.

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A derrota da revolução socialista na Alemanha e da experiência dos conselhos, que teve no assassinato de Rosa Luxemburg um episódio distintivo, não impediu que os conselhos, com outras particularidades, surgissem na Hungria e na Itália. Não é de se espantar que Rosa Luxemburg tenha sido uma das importantes referências teóricas para o momento seguinte da refundação comunista e que tenha exercido a sua influência em Lukács e em Gramsci. A influência de Rosa sobre Lukács é mais clara, não só porque explicitada em alguns ensaios da importante obra História e consciência de classe, publicada em 1923, mas também porque pode eventualmente ser vislumbrada na experiência húngara de república baseada nos conselhos com sua relativa subestimação do papel do partido como dirigente e organizador.

A experiência italiana dos conselhos não chegou a se constituir como poder estatal como na Hungria, mas durou mais tempo e apresentou particularidades mais expressivas. No grupo do L’Ordine Nuovo, com destaque para Antonio Gramsci, é de se perscrutar a influência teórico política de Georges Sorel e de Rosa Luxemburg, de entre outros. O ponto nodal da postura teórico política que envolve todos esses autores é a cisão do trabalho diante da ordem do capital, a recusa da exploração e da alienação. Essa recusa se manifesta como antagonismo, luta pela autonomia e pelo autogoverno dos produtores, ação que se manifesta praticamente na greve de massas e na mudança das relações sociais de produção.

Note-se, no entanto, a diferença fundamental existente entre as concepções de greve de massa de Sorel e Rosa. Para o primeiro, a greve de massa é uma representação cultural da cisão e do antagonismo anticapitalista, um possível ato final da luta que se desenvolve contra o capital por meio da organização autônoma dos trabalhadores na produção e na cultura. Rosa, como se viu anteriormente, via na greve de massa uma expressão da autonomia e do antagonismo dos trabalhadores e uma forma de luta política e econômica contra o capital e também um processo de revolução e construção da nova ordem. Na prática política da classe operária de Turim essas duas concepções se confundiram.

Já no decisivo e seminal editorial do nº 07 da revista L’Ordine Nuovo, Gramsci trabalha com o tema proposto por Rosa Luxemburg em 1903, da antecipação, ainda que não no mesmo sentido.[14] Então se questiona sobre o "como soldar o presente ao futuro, satisfazendo as urgentes necessidades do presente e utilmente trabalhando pra ‘antecipar’o futuro". Para Gramsci,

o Estado socialista já existe potencialmente nas instituições de vida social características da classe trabalhadora explorada. Coligir entre si essas instituições, coordená-las e subordiná-las em uma hierarquia de competências e poderes, centralizá-las fortemente, ainda que respeitando as necessárias autonomias e articulações, significa criar desde agora uma verdadeira e própria democracia operária, em contraposição eficiente e ativa com o Estado burguês, preparada desde agora para substituir o Estado burguês em todas as suas funções essenciais de gestão e de domínio do patrimônio nacional. [15]

Para Gramsci, assim como para Rosa Luxemburg, o Estado socialista é radicalmente democrático, até porque encontra os seus fundamentos na autogestão do processo produtivo, de modo a não separar o econômico do político. É um Estado que surge da conquista da autonomia da classe operária no processo de luta pelo autogoverno, em antagonismo irreconciliável com o capital e que se prepara pra substituir o Estado burguês. O processo produtivo fabril é o fundamento do Estado democrático operário porque o "processo revolucionário se efetiva no campo da produção, na fábrica, onde as relações são entre o opressor e o oprimido, entre explorador e explorado, onde não existe liberdade pra o operário, onde não existe democracia;...".[16]

Daí ser o conselho de fábrica o fundamento último do novo Estado do autogoverno dos trabalhadores, que se desenvolve autonomamente e em antagonismo ao Estado do capital. O conselho de fábrica é competente tanto para atuar o controle da produção como para exprimir as demandas da classe no processo de gestão da coisa pública. Desse modo, o sindicato profissional e o partido político, institutos nascidos sob a égide da liberdade política liberal-burguesa, devem apenas estabelecer as condições gerais para a emancipação do trabalho e "não devem postar-se como tutores ou supraestruturas já constituídas dessa nova instituição [o conselho de fábrica] na qual toma forma histórica controlável o processo da revolução, ...". [17]

Por serem institutos constitutivos da ordem liberal-burguesa, Gramsci percebia que o sindicato e o partido tendiam a desempenhar um papel apenas reformista, reprodutor da cisão entre o econômico e o político, característica da ordem burguesa. Pelo contrário Gramsci percebia a necessidade da politização dos trabalhadores dentro do processo produtivo do capital, assim como a urgência de se fazer da luta pelo Estado uma luta econômica. Sindicato e partido poderiam, no limite, se postar contra a revolução, exatamente como ocorrera na Alemanha, e ocorreria também na Itália. De fato, a ocupação das fábricas, em setembro de 1920, numa situação desesperada, garante a autogestão operária e a transferência de autoridade em antagonismo ao capital e ao Estado burguês, mas também em oposição ao sindicato e ao partido socialista. Mas a derrota -- e a responsabilidade do sindicato e do partido -- tornam evidente que a perspectiva que Gramsci defendera até pouco antes, de uma possível "renovação do partido socialista", era inexeqüível.

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A trajetória de Gramsci foi análoga àquela de Rosa quanto ao problema da cisão orgânica do movimento e do partido. Ambos retardaram quanto o possível essa iniciativa, acreditando que a vertente revolucionária pudesse ainda vir a predominar no partido operário existente, graças à iniciativa e pressão das massas. Gramsci diria que "temos simplesmente o defeito de acreditar que a revolução comunista possa ser feita apenas pelas massas, e que não possa fazê-la um secretário de partido ou um presidente da república a golpe de decreto; parece que era essa também a opinião de Karl Marx e Rosa Luxemburg, e que seja a opinião de Lênin".[18]

Fundado o Partido Comunista da Itália, numa convergência de grupos e tendências diferentes, houve o predomínio do grupo alinhado ao lado de Amadeo Bordiga, tendo ficado Gramsci e o L’Ordine Nuovo numa situação secundária. De todo modo, por algum tempo foi unânime a orientação da necessidade de se combater o partido socialista como elemento organizador da classe operária sob a hegemonia burguesa e da necessidade de se constituir uma vanguarda operária dotada de uma clara perspectiva revolucionária. A desconstrução do PSI ocorreria nos locais de trabalho e na ação sindical pela atração dos operários para o campo revolucionário e em oposição à incrustação pequeno-burguesa que havia se apossado do partido operário.

Em meio à repressão fascista e o contencioso do PCI com a direção da Internacional Comunista, absorvendo as lições da revolução russa, Gramsci emergiu como o dirigente capaz de pensar a autonomia e o antagonismo das massas como processo de auto-educação e auto-governo. Era um complexo de idéias que trazia de Sorel e de Rosa, com a concepção de partido de vanguarda, dirigente e educador das massas, mas originado e educado pelas massas das quais é produto. Mas foi principalmente capaz de compreender que somente um partido assim pode ser o instrumento organizativo da hegemonia da classe operária.

Afastava-se então da visão posta por Sorel, quanto ainda devedora do liberalismo, que separava economia e política, e retomava, em outro patamar, a perspectiva já presente na experiência dos Conselhos de Fábrica da necessidade de confrontar o poder político do capital no próprio processo produtivo. Alargava a visão da necessidade de abarcar o tema dos intelectuais e da cultura como expressão material da subjetividade reprodutora da ordem do capital. Somente assim a classe operaria poderia subtrair a base de sustentação da ordem burguesa e atrair aliados sobre os quais exerceria a sua hegemonia. O objetivo histórico da revolução socialista só poderia então ser alcançado por meio da unificação da classe operária e de sua aliança com o proletariado agrícola e com o campesinato pobre.

Afastava-se de Sorel, mas não de Rosa. O que acontecia era que a concepção de luta revolucionária que Gramsci desenvolvia para a Itália "traduzia" tanto Rosa quanto agora também Lênin para as circunstâncias da formação social italiana. Era imprescindível a existência de um partido revolucionário que fosse expressão orgânica da classe operária, que fosse composto pela sua parte mais organizada e educada do ponto de vista da práxis revolucionária. Mas esse partido não poderia deixar de ser a expressão da auto-organização da classe operária, não poderia não ser a classe se constituindo em partido, pois é a auto-atividade e auto-organização das massas trabalhadoras que constrói uma nova hegemonia e um novo Estado.

Gramsci passou aos pouco a perceber que a orientação da IC -- exarada depois do III Congresso Mundial (1921) --- centrada na fórmula política da frente única poderia oferecer a chave para a elaboração teórica de uma estratégia da revolução socialista de prazo indeterminado, pois que dependente das condições da luta de classes ao nível nacional e mundial. Enriquecido pela experiência do período da revolução socialista internacional de 1917-1921 e pelos debates travados no seio da IC, Gramsci se pôs a desenvolver uma formulação teórica que muito contou com a contribuição de Rosa Luxemburg (e Korsch) e de Lênin.

Menos que uma constatação feita pela exegese de textos, essa afirmação pode ser deduzida a partir da avaliação das diferentes particularidades nacionais na qual atuavam esses teóricos revolucionários. O predomínio demográfico massivo do campesinato e a forte herança feudal fizeram com que Lênin acentuasse a necessidade incontornável da aliança operário-camponesa na fundação de um novo Estado. Rosa, por sua vez, diante do grande grau de avanço industrial da Alemanha e de organização sindical, deveu enfatizar a questão da unidade da classe operária constituída em partido. A Itália era muito menos industrializada que a Alemanha e contava com uma massa trabalhadora majoritariamente camponesa, mas havia desenvolvido uma revolução burguesa, ainda que truncada. Ademais, a questão agrária e camponesa na Itália estava fortemente marcada pela questão meridional, ou seja, por um problema territorial, que também incidia na organização material do Estado e de sua ideologia.

Assim, da Alemanha, de Rosa Luxemburg, Gramsci obteve elementos para valorizar a necessidade da unidade operária, mas não uma unidade abstrata, de mero princípio, mas uma unidade constituída na luta antagônica contra a ordem do capital, uma unidade construída pela auto-atividade e pela auto-organização das massas. Rosa, no entanto, pensava que o reformismo pudesse ser batido na medida que avançasse a luta operária, enquanto Gramsci havia assimilado de Lênin a tese da existência de uma ‘aristocracia operária’ como estrato social diferenciado e incorporado ao Estado burguês.

Mas como Rosa, Gramsci notava que apenas a luta autônoma e antagônica contra o capital poderia produzir a emancipação do trabalho, e também que eram o controle e a organização do processo de produção da vida material o fundamento e o núcleo dessa luta política. Eis por que o Conselho de Fábrica deveria cumprir um papel essencial na configuração do Estado operário. Por outro lado, tal como na Rússia de Lênin, e com as devidas mediações, o problema da aliança com o proletariado agrícola e com o campesinato pobre era também primordial.

Durante a crise política derivada do assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti, em junho e julho de 1924, Gramsci teve a ocasião de explicitar como a fórmula política da frente única se colocava como uma estratégia de luta revolucionária. Começava por dizer que "a primeira tarefa do proletariado, mesma nessa situação, é a de assumir uma atitude autônoma". [19]

Autonomia e antagonismo não implicavam isolamento social, pois Gramsci entendia que naquela conjuntura a aliança entre as forças revolucionárias proletárias e pequeno-burguesas era indispensável para a derrubada do fascismo. Gramsci perscrutava para a Itália e para o capitalismo uma séria crise econômica que poderia selar o fim do fascismo, cuja obra teria sido a de retardar momentaneamente o avanço revolucionário, mas "antes contribuiu para ampliar a aprofundar o terreno da revolução proletária, que depois da experiência fascista será verdadeiramente popular".[20]

A noção de uma revolução popular seria mais tarde colocada no centro do discurso político do PCI, até que a IC forçasse a sua retirada. Mas o significado teórico era bastante inovador, pois pressupunha o proletariado como o núcleo dirigente de um arco de forças sociais que poderiam assumir uma posição anticapitalista. A questão da autonomia e do antagonismo da classe operária se transformava em hegemonia e fundação de uma nova ordem social. Uma nova ordem social que se construía a partir da luta pelo controle da produção e pela formação de uma frente única com base nos comitês de operários e camponeses. Aqui, o desenvolvimento da frente única pressupõe a geração de organismos autônomos da classe operária e de seus aliados antagônicos ao domínio do capital na produção e no Estado. A frente única cumpre o papel que a greve de massa desempenhava na elaboração de Rosa Luxemburg.

8

Para Gramsci, a revolução socialista pressupunha o "espírito de cisão" do mundo do trabalho diante do domínio político e cultural da burguesia e de seus intelectuais, a fim de que se alcançasse a reordenação do processo produtivo e a extinção do capital. O partido revolucionário é uma construção desse espírito de cisão pela ação coordenada de uma parte da classe, a qual, por sua vez, é um processo histórico no qual se desenvolve a luta anticapitalista. Isso significa que a classe operária só é tal enquanto autônoma e antagônica, pois de outra forma é apenas instrumento de produção do capital, ordenada pelo capital com esse fim, subordinada à hegemonia burguesa.

A preocupação permanente de Gramsci é com a centralidade da fábrica, do processo produtivo e das relações de poder que ai se determina. Na auto-atividade das massas, geradora de consciência antagônica e de uma intelectualidade própria, Gramsci localiza a ontologia do partido, um partido que é parte da classe, mas que pretende se confundir com a totalidade da classe, a fim de extinguir as relações de domínio. Entre partido e massa se estabelece uma dialética entre o partido como educador e a massa do qual se origina e que também o educa. É bastante evidente a proximidade dessa formulação com aquela de Rosa Luxemburg, assim como são ainda perceptíveis os ecos das idéias de Sorel.

Acontece que os desenvolvimentos da luta interna no KPD - Partido Comunista da Alemanha - se encaminharam para a marginalização crescente dos espartaquistas que se identificavam na figura de Rosa Luxemburg e tiveram como corolário a estigmatizarão das formulações teóricas da grande revolucionária polonesa no V Congresso da IC (1924), tanto no referente à teoria do imperialismo quanto à da luta política. Assim, a influência dessas idéias na reflexão gramsciana ficou sempre mais nebulosa, até porque a luta fraccionista desencadeada por Bordiga no PCI e a persistente repressão fascista puseram em destaque a necessidade de se garantir uma organização política centralizada e disciplinada, que se aproximava bem mais do padrão leniniano: "o Partido Comunista ‘representa’ os interesses da inteira massa trabalhadora, mas ‘atua’ só a vontade de uma determinada parte das massas, da parte mais avançada, daquela parte (proletariado) que quer derrubar o regime existente com meios revolucionários para fundar o comunismo".[21]

De todo modo, a questão da autonomia e do antagonismo de classe permaneceu sempre no cerne da elaboração teórica e prática de Gramsci. Na dura situação do processo de consolidação do fascismo, Gramsci indicava ainda que

o problema fundamental que na situação presente o Partido Comunista deve se propor a resolver é aquele de levar o proletariado novamente a ter uma posição autônoma de classe revolucionária, livre de toda influência de classes, grupos e partidos contra-revolucionários, capaz de recolher em torno de si e guiar todas as forças que possam ser mobilizadas para a luta contra o capitalismo, .... [22]

A proximidade entre o tema da greve de massa em Rosa Luxemburg e a elaboração de Gramsci sobre a frente única parece ser deveras plausível. A frente única das forças sociais anticapitalistas, mantido o espírito de cisão diante do Estado do capital, seria forte na medida que materializasse uma subjetividade antagônica na fábrica e em todos os locais de trabalho, nos sindicatos e na organização da educação e da cultura. Para observar como era alcançável esse escopo, Gramsci trabalhava com a idéia da capacidade orgânica (espontânea?) que podia ser identificada na classe operária e que aparecia na "1) capacidade de autogoverno da massa operária ...; 2) capacidade da massa operária em manter e superar o nível de produção do regime capitalista ...; 3) capacidade ilimitada de iniciativa e de criação das massas trabalhadoras". [23]

Mais uma vez a exemplo de Rosa, para Gramsci a democracia proletária começava tão logo a classe operária e seus aliados se mostrassem em condições -- dentro da frente única --, de constituir institutos autônomos e antagônicos à ordem do capital em condições de se oporem ao poder político do capital na produção e no Estado. Nas suas últimas intervenções - como foi visto - Rosa se dera conta de que a revolução socialista poderia ser um processo de prazo mais longo, do que aquela aparente eclosão fulminante que ocorrera na Rússia. Em alguns de seus escritos, Gramsci parecia aguardar a revolução antifascista, anticlerical e anticapitalista para um prazo breve, mas o fato é que toda a sua elaboração teórica apontava já para uma revolução socialista de longo prazo. O prazo necessário para a frente única se constituir em Estado operário, um novo Estado que substituísse o Estado burguês capitalista.

Em mais de uma ocasião, Rosa se lastreou em Engels para melhor fundamentar as suas formulações. A perspectiva de um ritmo diferenciado do movimento revolucionário estava já sugerida por Engels, quando divisou as mudanças profundas na geopolítica do poder burguês e também do movimento operário depois da derrota da Comuna de Paris (1871). A força armada incontrastável por uma insurreição de tipo jacobino, a ampliação da capacidade burguesa de organizar a classe operária segundo seus desígnios, o imperialismo e o reformismo, tudo isso dificultava a organização operária autônoma e antagônica a ordem, demandando um prazo mais extenso para a efetivação das condições da revolução socialista, com destaque para a questão da educação das massas. Mas mesmo no momento que a revolução estava posta na ordem do dia (como em 1919) a questão dos prazos mantinha a sua importância. Como se viu, a greve de massa para Rosa e a frente única para Gramsci eram as saídas estratégicas para se confrontar o domínio do capital.

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Gramsci foi preso em novembro de 1926 e do cárcere só saiu alguns dias antes de morrer, pouco mais de 10 anos depois. Entre 1929 e 1935 produziu as anotações que ficaram conhecidas como os Cadernos do cárcere, onde aprofundou vários dos problemas atados ao desenvolvimento da estratégia da frente única e da revolução socialista como fenômeno histórico de longo prazo. Na verdade, foi quando Gramsci tomou uma consciência mais límpida da revolução socialista como fenômeno de longo prazo e superou a perspectiva que manteve até 1926 de uma situação revolucionária em permanência na Europa ocidental. O método de Gramsci nessas suas anotações foi estabelecer um dialogo com todos os principais autores que haviam influenciado a sua formação político cultural e também, por certo, com adversários importantes, intelectuais da ordem.

O problema da persistência ou quanto da influência de Rosa nas reflexões de Gramsci do período carcerário não é de fácil resposta. A persistência da presença de Rosa no pensamento de Gramsci no período carcerário pode ser eventualmente localizada na luta comum contra a vulgarização do marxismo e na defesa do marxismo como filosofia integral e autônoma, que deve servir de fundamento cultural de uma nova civilização. Esses dois aspectos de um mesmo problema se articulam perfeitamente com o visto em precedência sobre a necessidade da autonomia e antagonismo da classe operária na luta contra a exploração e o domínio do capital.

Na luta de resistência contra o capitalismo, no início da agregação das forças do movimento operário, é explicável que o marxismo se vulgarize ou pareça estagnado. A prática política do movimento socialista poderia estar aquém da teoria, como sugeria Rosa na relação da obra de Marx com o movimento operário alemão do começo do século XX, o que colocava o marxismo então em situação paradoxal: "um incomparável instrumento espiritual permanece estéril, pois que inadequado à cultura de classe da burguesia, enquanto ultrapassa de longe as necessidades de armas de luta da classe operária".[24]

No começo dos anos 30, Gramsci identificava novamente um momento de estagnação do marxismo, mas agora a situação não poderia ser mais tolerada porquanto na URSS se procedia ao esforço de construção do socialismo, de elaboração do começo de uma nova civilização. De onde então ser imprescindível o resgate do melhor que a filosofia marxista havia gerado. Neste caso encontrava-se Antonio Labriola, autor de uma obra essencial, pois que não se identificava com as duas correntes que então prevaleciam no marxismo: uma visão que havia incorporado o mecanicismo e uma outra que havia se submetido ao idealismo neo-kantista. Baseado no citado texto de Rosa, Gramsci afirma que

no período romântico da luta, do Sturm und Drang popular, se dedica todo o interesse sobre as armas mais imediatas, sobre os problemas de tática política. Mas a partir do momento que existe um novo tipo de Estado, nasce (concretamente) o problema de uma nova civilização e assim a necessidade de elaborar as concepções mais gerais, as armas mais refinadas e decisivas.[25]

Assim, para explicar a estagnação ou a regressão teórica do marxismo, e a suas diferentes combinações com outras filosofias, Gramsci se ampara em Rosa (e também em Sorel) e arremata: "No campo filosófico me parece que a razão histórica deva ser procurada no fato que o marxismo tenha devido aliar-se com tendências estranhas para combater os resíduos do mundo pré-capitalista nas massas populares, especialmente no terreno religioso".[26]

Da mesma maneira, como também já foi sugerido, Gramsci desenvolve uma concepção de revolução socialista como processo de longo prazo, cuja fonte comum com Rosa poderia ter sido o ultimo Engels. Algumas indicações disso podem ser observadas na acurada análise que Gramsci faz da revolução francesa como um processo revolucionário de longo prazo. Em 1789 vieram à luz os germens da revolução que em ondas sucessivas se desenrolou até a Comuna de Paris (1871), "quando não só a nova classe que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade que não quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota também os novíssimos grupos que consideram já ultrapassada a nova estrutura surgida da transformação iniciada em 1789 e demonstra assim sua vitalidade tanto em relação ao velho quanto ao novíssimo".[27]

Mas Gramsci não havia percebido essa faceta da reflexão de Rosa, que se desenvolve, de fato apenas depois de 1906, quando ela deixa paulatinamente de lado a tradição predominante na social-democracia alemã do acúmulo de forças dentro da ordem e da proeminência do desenvolvimento econômico. Gramsci avalia o opúsculo de Rosa Greve geral, partido e sindicatos como uma excelente análise do que seria a guerra manobrada, mas critica a autora pela sua presumível fé que as crises econômicas fossem, por si mesmas, geradoras de possibilidades revolucionárias.

A Rosa que Gramsci critica é a teórica que crê que a revolução é uma explosão gerada pela crise econômica. Na verdade, indiretamente Gramsci parecia criticar a involução teórica ocorrida na IC e na URSS, orientadas então por uma concepção e uma linha política de fundo econômico-corporativo e voluntarista. Na análise da revolução russa de 1905, segundo Gramsci, "Rosa, com efeito, negligenciou os elementos ‘voluntários’ e organizativos que, naqueles eventos, foram muito mais difundidos e eficientes do que Rosa podia crer, já que ela era condicionada por certo preconceito ‘economicista’ e espontaneísta". [28]

Na revolução socialista de longa duração o essencial era que a autonomia e o antagonismo da classe operária não sofressem qualquer esmorecimento. A estratégia da revolução que Rosa amadurecia desde 1906, tinha o seu eixo na greve de massa como forma de progressiva anulação do poder do capital. Essa estratégia exigia uma auto- educação e uma educação das massas que já antecipassem a nova civilização, tal como fizera a burguesia.

Para Gramsci a revolução de longa duração estaria em desenvolvimento com a ampliação da frente única, por uma guerra travada em busca de posições que antecipassem uma nova hegemonia, um novo bloco histórico, uma nova civilização que superasse as relações de domínio e de exploração. Na revolução de longo prazo a antecipação que Rosa indicava no seu texto de 1903, quanto ao marxismo, deveria mudar de significado e superar o paradoxo por meio de um vigoroso progresso intelectual de massas e uma reforma moral e intelectual (que não pode andar separada de uma profunda reforma que atinja o processo produtivo do capital).

Nessas condições, o marxismo, a filosofia da práxis, deveria ser ela mesma uma arma de luta do movimento operário pelo comunismo a fim de que a substituição do poder do capital fosse possível. O marxismo vulgar ou entrelaçado com outras vertentes de pensamento não poderia ter eficácia nessa luta. Uma cultura antagônica deve ser um elemento imprescindível na luta anticapitalista, de onde a necessidade de uma refundação comunista, de um marxismo vivo e radicalmente crítico.


*Prof. de Ciências Políticas. UNESP - FFC

[1] ENGELS, F. Introdução. In: MARX, K. A luta de classes em França (1848-1850) (Obras escolhidas em 3 v.). Rio de Janeiro: Vitória, 1957.

[2] LUXEMBURG, Rosa. Riforma sociale o rivoluzione. In: Scritti politici. Roma: Riuniti, 1976, p. 196.

[3] Idem, idem, p. 198.

[4] LUXEMBURG, Rosa. Problemi di organizzazione della socialdemocrazia russa. In: Scritti politici. Roma: Riuniti, 1976, p. 223.

[5] Idem, idem, p. 223.

[6] Idem, idem, p. 224.

[7] LUXEMBURG, Rosa. Sciopero generali, partito e sindacati. In: Scritti politici. Roma: Riuniti, 1976, p. 326.

[8] Idem, idem, p. 327.

[9] Idem, idem, p. 331.

[10] LUXEMBURG, Rosa. La rivoluzione russa. In: Scritti politici. Roma: Riuniti, 1976, p. 571 e 593.

[11] LUXEMBURG, Rosa. Discorso sul Programma. In: Scritti politici. Roma Riuniti, p. 617.

[12] Idem, idem, p. 618.

[13] Idem, ibidem, p. 629.

[14] LUXEMBURG, Rosa. Ristagno e progresso del marxismo. In: Opere scelte. Milanao: Avanti, 1963.

[15] GRAMSCI, Antonio. Democrazia operaia. Apud: SPRIANO, Paolo, " l´Ordine Nuovo" e i Consigli di Fabbrica. Turim: Einaudi, 1971, p. 145-146.

[16] GRAMSCI, Antonio. Il Consiglio di Fabbrica. Apud: Idem, p. 260.

[17] Idem, idem, p. 260.

[18] GRAMSCI, Antonio. L´Ordine Nuovo Turim, Einaudi, 1975, p. 489.

[19] GRAMSCI, Antonio. La costruzione del Partito comunista. Turim, Einaudi, 1978, p. 462

[20] Idem, idem, 30-31

[21] Idem, idem, p. 239

[22] Idem, idem, p. 84

[23] Idem, idem, p. 346-347.

[24] LUXEMBURG, Rosa. Ristagno e progresso nel marxismo (1903). In: Opere scelte. Milano: Avanti, 1963., p. 265.

[25] GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Turim: Einaudi, 1975, p. 309.

[26] Q. p. 422.

[27] GRAMSCI, Antonio. Quaderni del cárcere. Turim: Einaudi: 1975, p. 1581.

[28] Q., p. 1613.

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