28/03/2024

Alienação e estranhamento econômicos

Por

 

Ivan Cotrim[1]
USP-CUFSA
 
Hobbes: o estado de natureza ou a essência natural do homem
Observemos de início que com Hobbes nasce uma concepção sobre a essência natural do homem que virá a sofrer modificações concepcionais pelos futuros pensadores, muito embora a determinação natural da essência humana permaneça.
A defesa do estado absolutista expressa a luta de Hobbes contra a guerra civil, que acarreta, incontornavelmente, a morte dos indivíduos. Ele afirma que Deus deu tudo a todos, sem prévia divisão, resultando no fato de que tudo é de todos, mas também de cada um. Daí as lutas intestinas de cada um na busca de apropriação de tudo. Seus argumentos remontam à igualdade dos homens, em seu estado de natureza, a despeito de suas diferenças naturais relativas, como maior força física, melhor tirocínio, etc., mas dentro de determinações materiais e imediatas. As paixões humanas são semelhantes em todos os indivíduos (desejo, medo, esperança), e dessa igualdade derivam disputas, concorrências, oposições tais que impulsionam os homens a despojar outros, invadir territórios etc.. Frente a esse procedimento que se generaliza, surge a desconfiança de uns em relação aos outros e as ações preventivas de uns contra os outros.
Esse perfil humano de raiz natural, sempre comprometido com o procedimento egoísta e aquisitor, terá lugar, igualmente, nas argumentações hobbesianas sobre as causas da discórdia humana desde esse estado de natureza, em que viceja a competição, a desconfiança e a busca de glória. Da primeira categoria deriva a luta por lucro, um estado de violência na direção de tornar o indivíduo senhor de seus bens e de sua família; da segunda, a luta por segurança, um estado de violência visando a defender a si e à sua família da agressão alheia; e, da terceira, a luta por reputação, sendo a violência acionada mesmo frente a ninharias, atenção, opinião, desprezo etc.
Torna-se evidente nessas condições que esse indivíduo hobbesiano se afigura um ser de estatura humana restrita, pois suas motivações à ação definem-se dentro dos limites de seu estado natural, não podendo prosperar a indústria, a produção, o conhecimento, a arte etc., pois viceja apenas o temor, a morte violenta; sua vida é pobre, sórdida e curta, sujeita o tempo todo à guerra, isto é, à autodestruição. Chasin observa que em Hobbes
 
 “a maldade natural, o egoísmo, aparece sob versão descriminada, mitigado como pecado sem culpa; mas essa neutralidade não o redime por completo, a não ser que passe aos cuidados do Leviatã, que lhe veste a camisa de força que o protege de sua vocação suicida. É, pois, uma neutralidade sui generis, uma estranha essência de um ser incapaz de subsistir por si. Ou seja, é um ser que tem por mal a si mesmo, que insubsiste em sua essência e que depende, por isso mesmo, de uma exterioridade artificial. Numa palavra, o suposto hobbesiano do homem em estado natural é mais do que uma artimanha racionalista; mesmo que não admitido por seu criador, é uma versão formal do homem efetivo engendrado pela ordem humano-societária do capital. E enquanto tal um pecador perdoado, o que não abole o pecado, nem elimina o fato de que é o mal que exige a solução salvacionista do estado” (Chasin, 2000: 242).
 
Locke: a inserção do empirismo e a atualização do estado de natureza
Locke afasta-se das posições teóricas de Hobbes e outros ao adotar o procedimento empirista em suas pesquisas, ainda que mantendo como ele o racionalismo como um dos meios de acesso ao conhecimento. Contudo, torna-se cético quanto às possibilidades de domínio, pela consciência, da essência do mundo exterior e objetivo.
Alex Tadié dirá:
 
“Locke é ao mesmo tempo um racionalista e um empirista, mas defende versões fracas dessas doutrinas. Segundo o racionalismo, o mundo é acessível ao conhecimento, mas Locke sustenta que uma parte dos fenômenos se furta a ele. De outro lado, o empirismo de Locke não se baseia em uma defesa apaixonada do papel da experiência na formação do conhecimento. Os pontos essenciais de sua versão do empirismo são a recusa do inatismo e a tese que requer o acordo entre as proposições do conhecimento e o mundo exterior” (Tidié, 2005: 161/2).
 
A razão é explicada por Locke também como propriedade intrínseca dos indivíduos, adquirida por doação natural, divina, tanto quanto os sentidos, e irá articular-se com estes, se os indivíduos souberem dela se aproveitar.
É importante destacar que, embora, Locke de continuidade às determinações naturais dos indivíduos, ele acaba oferecendo uma nova explicação aos desígnios naturais dos indivíduos. Assim, a Lei Natural estará na base da liberdade dos indivíduos e lhas garante; essa garantia não se limita à liberdade, sendo extensiva também à igualdade, de forma que a liberdade e a igualdade como propriedade dos indivíduos estarão asseguradas pela lei natural.
De outro lado, essa igualdade e liberdade refletem uma demarcação pretendida por Locke quanto ao poder absoluto argumentado por Hobbes, pois enquanto neste o poder absoluto é condição incontornável à existência e sociabilidade dos homens, para Locke, ao contrário, o originário estado de natureza dos indivíduos conta com dispositivo moral, oferecendo condições para um agir essencialmente distinto daquele suposto pelo filósofo precedente.
Cabe registrar que Locke provoca uma inversão naquelas tendências filosóficas ao abordar com seu instrumental empírico=racionalista um novo estatuto humano; ele opera uma espécie de atualização no estado de natureza, que determina o ser e agir dos indivíduos, ao considerar a moral, a igualdade, a liberdade, como condições naturais destes.
 
Boisguillebert: as leis naturais governam a economia
Na França, igualmente, Pierre Boisguillebert põe-se a caminho na construção de novas concepções econômicas; ele se empenha na reforma das concepções mercantilistas defendendo, inicialmente, a noção de que as leis que governam a economia são leis naturais.
A defesa do livre comércio empreendida pelo autor francês é fundamentada com argumentos que remetem às inclinações naturais dos indivíduos, os impulsos às relações de troca encontram-se igualmente submetidos às inclinações naturais individuais, os indivíduos são aquisitores por natureza e tal caráter se manifesta nas relações de troca, movendo o autor à luta contra os entraves a elas. Por outro lado afirma Marx: “Boisguillebert só tem em vista o conteúdo material da riqueza, o valor de uso, a fruição, e considera a forma burguesa do trabalho, a produção de valores de uso enquanto mercadorias e o processo de troca destas como a forma social natural sob a qual o trabalho atinge esse objetivo” (Marx, 1980: 55)
Importa destacar que Boisguillebert se opõe à hegemonia do dinheiro frente aos valores de uso com princípios semelhantes aos de Platão, mas em condições sociais opostas. Seu procedimento corresponde à luta pelo liberalismo, que é necessária na França, por seu atraso, do que na Inglaterra, que já percorreu parte da trajetória liberal quanto à instalação de mercado, propriedade privada, trabalho assalariado, iniciando já a conversão das manufaturas em maquinofaturas etc., enquanto que à França convém mais o desenvolvimento da produção que das finanças.
A defesa do livre comércio empreendida pelo autor francês é fundamentada com argumentos que remetem às inclinações naturais dos indivíduos, pois, conforme Boisguillebert, os impulsos às relações de troca encontram-se igualmente submetidos às inclinações naturais individuais, os indivíduos são aquisitores por natureza e tal caráter se manifesta nas relações de troca, movendo o autor à luta contra seus entraves. Esse grande liberal francês mantém-se muito próximo das concepções fisiocráticas desenvolvidas naquele país. Em “Carta ao Contrôleur Général”, de 1700, sua defesa do valor de uso como finalidade precípua da economia é reveladora:
 
“O fim e a matéria da opulência não são, meu Senhor, a prata, mas as utilidades e os gêneros alimentícios. E isto não é tudo: por mais liberal que seja a natureza num país, os homens se fazem necessários tanto para produzi-los quanto para consumi-los” (Figueira, 2001: 164).
 
 Seu apego ao valor de uso o leva a reduzir o significado do dinheiro, como diz Marx: “A existência específica do valor no dinheiro parece-lhe um fato relativamente sem valor, uma degradação das outras mercadorias” (Marx, 1977: 257). Muito provavelmente, o atraso francês se reflete nas concepções de Boisguillebert determinando sua fundamentação no caráter natural do homem.
 
Quesnay: o sistema econômico natural
Quesnay tratou como natural as condições sociais da propriedade privada, visto encontrava-se num momento em que essa categoria apresentava-se como forma altamente progressista, ao lado do liberalismo individualista em construção; e, como seu antecessor Hobbes, apoia-se no direito natural à propriedade, acrescentando e naturalizando conjuntamente as desigualdades que derivaram socialmente dessa categoria. Assim se expressa ele:
 
“Ao considerar as faculdades corporais e intelectuais e os outros meios de cada homem em particular, encontramos ainda uma grande desigualdade relativamente ao gozo do direito natural dos homens. Essa desigualdade não admite nem justo nem injusto no seu princípio; resulta de combinações das leis da Natureza; e não podendo os homens penetrar os desígnios do Ser Supremo na construção do universo, também não pode elevar-se até o destino das regras imutáveis que Ele instituiu para a formação e conservação de sua obra” (Denis, 1990: 165/66).
 
Os fisiocratas refletem as condições econômicas do seu momento, mas convertem as leis que descobrem em condição intrínseca à vida social. Marx adverte que “o erro estava apenas em ver na lei material de determinado estádio social histórico, uma lei abstrata que rege por igual todas as formas sociais” (Marx, 1980: 19). Por outro lado, os fisiocratas avançam teoricamente ao tratar as categorias econômicas de forma objetiva, deslindadas das formas ideológicas: “Tiveram eles o mérito de considerá-las formas fisiológicas da sociedade: formas oriundas da necessidade natural da própria produção, independentemente da vontade, da política, etc.” (Marx,1980: 19).
 
Smith: o empirismo escocês e o agir econômico-moral
Na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith discutirá fundamentalmente os ângulos e aspectos que definem com melhor adequação o procedimento dos indivíduos, seu agir moral e sua preferência natural pelas virtudes, dando continuidade aos ensinamentos de Hutcheson, discípulo de Locke, e em constante diálogo com Hume. Essa tríade de filósofos criou a escola empirista escocesa, aprofundando a linha iniciada por Locke, e por essa razão acentuando as diferenças desenvolvidas entre este e Hobbes.
Smith demarca-se com radicalidade das teses hobbesianas que conferem aos indivíduos um egoísmo natural e racional; ao contrário, toma como fundamento do agir os sentimentos, dizendo que:
 
 “Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros e considera a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso, senão o prazer de assistir a ela” (Smith, 2002: 5).
 
Em sua análise crítica do conceito de estado de natureza, Smith mostra que o objetivo do filósofo inglês, ao elaborá-lo, residia na sua busca de solução dos conflitos, das guerras que dominavam o panorama inglês, e a subsunção dos indivíduos à ordem civil. Mas era necessário ir além de Hobbes e superar aquela concepção de indivíduo como indiferente ao certo e errado, do indivíduo amoral. Smith propõe o indivíduo moralmente virtuoso, que encontraremos na base de sua Teoria dos Sentimentos Morais.
Polemizando com Hobbes, assevera que, se a harmonia social carecia de uma lei social, do estado, ou de forças externas aos indivíduos para efetivar-se, estaria aí implicado o fato de que o certo e o errado registrados na lei, previamente estabelecida, funcionariam tal qual o falso e o verdadeiro, de raiz racional. Contudo, embora a virtude consista em estar em conformidade com a razão, o máximo que se pode afirmar, diz Smith, é que essa faculdade (da razão) é causa e não princípio da aprovação e desaprovação. E numa articulação teórica que reduz a experiência como base e fundamento das regras de julgamento moral, Smith afirma que seria absurdo supor que as primeiras noções de certo e errado tenham origem na experiência; em vez desta, as percepções primárias das quais se originam qualquer regra têm sua origem nos sentimentos.
Ao contrário de Hobbes, sustenta a existência de nexo entre os indivíduos com base numa subjetiva solidariedade provinda dos sentimentos de aprovação ou desaprovação moral:
 
“A humanidade consiste meramente na refinada solidariedade que o espectador nutre pelos sentimentos das pessoas principalmente afetadas, afligindo-se pelos sofrimentos delas, ressentindo-se com as ofensas que lhes fazem e alegrando-se com sua boa sorte. As ações mais humanas não exigem abnegação nem autodomínio nem um grande esforço do senso de conveniência. Consiste simplesmente em fazer o que essa refinada simpatia por si só nos incita a realizar” (Smith, 2002: 233).
 
E, reforçando as determinações naturais do agir humano, Smith dirá que a “natureza, ao que parece, ajustou de modo tão feliz nosso sentimento de aprovação e desaprovação à conveniência do indivíduo e da sociedade que após o mais rigoroso exame se descobrirá, creio eu, que se trata de uma regra universal” (Smith, 2002: 230).
Maurice Dobb, pautando-se pelo mesmo tema, expõe uma preocupação quanto à migração da postura filosófica e moral para a econômica operada por Smith. Centrado na formulação econômica de Smith sobre a conhecida “mão invisível”, afirma: “Tal como na conhecida frase de Hegel, ‘das ações dos homens resulta algo diferente daquilo que eles conscientemente quiseram e pretenderam’” (Dobb, 1973: 55) também em Smith “a ideia da força potencialmente criadora do interesse individual”, posta em movimento pelo agir humano, “relembra os ‘vícios privados e virtudes públicas’ da fábula das abelhas de Mandeville” (Dobb: 1973: 55).
Da leitura de suas obras, seu biógrafo e amigo Dugald Stewart retira uma definição do objetivo que levou Smith a esse padrão de construção filosófica. Diz ele então: “o principal propósito de suas especulações é ilustrar como a natureza proveu os princípios do espírito humano, e as circunstâncias da situação exterior do homem, a fim de aumentar gradual e progressivamente os meios de riqueza nacional” (Dobb, 1973: 57). Eis aí a consolidação da essência natural do homem através dos nexos entre a filosofia empirista escocesa e a economia política resultante das formulações intelectuais de Smith.
Por fim, quanto ao valor econômico destacamos a reafirmação de Smith sobre sua determinação natural, observando seu nexo com o mercado das trocas. Assim o valor de um objeto produzido para troca é “o poder, que a posse daquele objeto traz consigo, de adquirir outros bens” (Marx, 1980: 53). Esse poder de adquirir outro valor (de uso), através da propriedade do valor de troca, expressa uma ordem social fundada na produção para a troca, ordem essa que flui da condição natural dos indivíduos, por sua natural propensão para troca. Vale lembrar que Smith conduziu-se teoricamente pautado na condição natural do homem, inclusive como determinação do mercado, que para ele é consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra.
 
As críticas ontológicas de Marx nos “Cadernos de Paris”
A abordagem crítica originária de Marx permitiu-lhe expor a alienação e o estranhamento como expressões determinantes, no bojo teórico da economia política, da exclusão humana nessa ciência e a substituição destes por categorias abstratas e fetichizadas. Inicia destacando, pontualmente, uma categoria que se destaca na economia política, que é a propriedade privada. A economia política sustenta-se nessa categoria, afirmando que não há riqueza sem propriedade privada, mas não explica a necessidade humana dessa forma social, não explica a verdadeira demanda da propriedade privada, donde conclui Marx ser esta um fato carente de necessidade. Ressalta que, na concepção de Jean Baptiste Say, a propriedade privada é considerada no universo categorial jurídico, como possessão reconhecida, tal qual Hegel.
Mostra, também, a defesa que Say faz dos proprietários de terra, ao afirmar que sua propriedade tem origem em privações anteriores tripudiando esse autor ao dizer que essa privação não é o que pensa Say, é antes a privação principal, a da propriedade, a separação das propriedades dos trabalhadores.
Marx volta sua atenção para o valor-trabalho nos termos de Ricardo, indicando que o pensador inglês, tendo em mira o trabalhador, reconhece que este não tem qualquer vantagem com o desenvolvimento da produtividade, e que o trabalho é a fonte de todo o valor, particularmente do valor relativo das mercadorias. Contudo, ele adiciona ter o capital, também, origem no trabalho.
Põe em destaque o preço natural dos trabalhadores, nos termos de Ricardo, que não é mais que o valor dos seus meios de subsistência, e indaga, então, sobre a não inclusão das faculdades intelectuais dos trabalhadores, pelo pensador Inglês. E segue criticamente afirmando que a economia política, tendo em Ricardo um de seus maiores representantes, move-se num círculo vicioso, e que Ricardo, ao excluir o caráter intelectual do trabalho, apenas confirma esse círculo vicioso, justificando a diferença de classe, e tudo o mais que dela provém.
Assim, diz ele, a economia política defende que sua finalidade não se reduz aos bens materiais imediatos, contudo é o que resta para o trabalhador; que na prática, a economia política, para alcançar a liberdade, lega à maioria à servidão; que as necessidades materiais não são o único fim desejado, mas, as converte em fim único para a maioria; da mesma forma, se o fim é o matrimônio, a realidade da economia política lega a prostituição para a maioria; e, por último, sendo o fim a propriedade privada, ela lega a carência de propriedade para a maioria.
Seus questionamentos vão se avolumando a ponto de poder explicitar outra contradição central nas concepções dos defensores do capital, tendo Ricardo e Say em mira: como é possível concorrência, quebras gerais, crises, se “todo capital encontra sua oportunidade de investimento?” (Marx, 1974: 116) e em seguida referindo-se especificamente a Say: “Como é que estes ‘sábios’ indivíduos chegam a arruinar a si mesmos e aos outros, dado que para todo capital existe um lugar de inversão lucrativo e desocupado?” (Marx, 1974: 116).
 O jovem pensador alemão mostra forte interesse pelas das teorizações de Ricardo, passando a distingui-las das de Say e Sismondi, para indicar que a compreensão que estes mostram ter da economia política não se equivalem à de Ricardo. Esses autores, diz ele, combatem Ricardo por ter afirmado que, não sendo os trabalhadores nada senão máquinas, pouco importaria ao rei da Inglaterra o maior ou menor número “delas”, desde que o lucro líquido permanecesse o mesmo ou até ausente. Em defesa de Ricardo, Marx afirma que Say e Sismondi não fazem mais que combater a “expressão cínica de uma verdade econômica” (Marx, 1974: 119), pois, as concepções do primeiro são plenamente verdadeiras e consequentes quando se tem em conta a perspectiva da economia política, indicando que os dois últimos têm que se colocar fora da economia política se querem “combater seus resultados inumanos” (Marx, 1974: 119). Fica patenteado em sua compreensão que a perspectiva da economia política não revela qualquer preocupação com o homem, senão como meio para o trabalho, ou então com o custo de sua manutenção, e que Ricardo expressa tais condições à luz de uma posição científica, o que leva ao cinismo.
Bem antes das concreções encontradas sobre economia na Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, e em O Capital, de 1863, Marx, nos Cadernos, enfrentou os pensadores clássicos da economia política com espírito provido criticamente para desvelar, por meio da crítica, seus fundamentos. Aduzimos a isso que estas análises de Marx refutam cabalmente tanto os fundamentos clássicos de uma natureza humana como determinativa à sociabilidade quanto as formulações antropologizadas que marcaram a trajetória intelectual anterior à Marx.
Ao analizar o conceito de dinheiro em Mill, Marx avança para a compreensão do estranhamento e alienação que este envolve, e enquanto Mill trata-o como intermediário das trocas Marx afirma que ele não consiste em ser a alienação da propriedade privada, mas sim que a atividade humana mediadora encontra-se nele alienada e convertida em atributo deste, isto é, um atributo do homem que se torna coisa exterior ao homem. Ele busca expor o caráter da mediação exercida pelo dinheiro, isto é: incorporação da atividade mediadora, pois na sociedade mercantil, regida pelas trocas, pelo mercado, o dinheiro assume o papel da atividade humana, se afirmando como mediador, expressando, ao contrário, que esse ato humano “encontra-se estranhado e convertido em atributo do dinheiro, de uma coisa material, exterior ao homem” (Marx, 1974: 126).
Diante do dinheiro o homem “se aliena desta atividade mediadora; ele é ativo apenas como um homem que se perdeu a si mesmo, desumanizado” (Marx, 1974: 126), pois, continua Marx, “o homem mesmo deveria ser o mediador para os homens” (Marx, 1974 126), mas isso só seria possível numa comunidade verdadeira, em que sua atividade manifestasse sua verdadeira essencialidade, sua natureza ativa e genérica, autoconstrutora. O mediador pondera Marx, sendo “o poder real sobre aquilo com que me ponho em relação, é claro que se converte no Deus efetivo” (Marx, 1974: 127), isto é, o que significa mediador.
 
 “Cristo representa originalmente: 1]os homens frente a Deus; 2] Deus frente ao homem; 3] o homem frente aos homens. De igual maneira, o dinheiro representa originalmente, segundo seu conceito: 1] a propriedade privada para a propriedade privada; 2] a sociedade para a propriedade privada; 3] a propriedade privada para a sociedade” (Marx, 1974: 128)
 
 E completa afirmando que: “Cristo é tanto o Deus alienado como o homem alienado. Deus só tem valor na medida em que representa Cristo, o homem só tem valor na medida em que representa Cristo. “O mesmo sucede com o dinheiro” (Marx, 1974: 128). Assim, como o reconhecimento da essência divina do homem só se dá mediada por Cristo, também a essência humano na sociedade mercantil, do capital, da propriedade privada, só é reconhecida pela mediação do dinheiro.
Desta forma, ao renunciarem a atividade mediadora, como prática direta, homem a homem, os indivíduos colocam-se subordinadamente aos insondáveis desígnios do dinheiro, dentro desta sociedade criada pelos homens, mas, não controlada e nem compreendida por eles.
Por tanto, diz Marx:
 
 “assim como a propriedade privada é a atividade genérica alienada do homem – a mediação alienada entre a produção humana e a produção humana –, assim, por sua vez, este mediador é a essência estranhada, perdida de si mesma, da propriedade privada” (Marx, 1974: 127).
 
Mas, se a propriedade privada expõe-se como mediação alienada de si no interior das relações consigo mesma, é porque essas relações avançaram até a forma do mediador. É óbvio também que a presença do mediador só tem sentido real sobre a base da existência da propriedade privada. Assim, ao questionamento:
 
 “Por que tem a propriedade privada que avançar até a instituição do dinheiro?” (Marx, 1974: 128), Marx diz, “como ser social [o homem] tem de avançar até o intercâmbio, e /.../ o intercâmbio – sob as condições da propriedade privada – tem de avançar até o valor” (Marx, 1974: 128).
 
Não é difícil notar a exclusão humana que vai sendo processada no movimento e dinamismo de sua própria atividade, e a expressão cada vez mais negativa das relações humanas que se operam sob essa forma; e, sob o prisma dessa negatividade, ele afirma:
 
 “Com efeito, o movimento mediador do homem que intercambia não é um movimento social, um movimento humano, uma relação humana; é a relação abstrata da propriedade privada com a propriedade privada, e esta relação abstrata é o valor, cuja existência efetiva como valor é o dinheiro” (Marx, 1974: 129).
 
Podemos, então, depois de todas as determinações explicitadas por Marx sobre o mediador, o dinheiro, sintetizar sua compreensão sobre o valor. Ao tomar o mediador como objeto de análise crítica, ele observa que a atividade mediadora, a relação efetiva entre os indivíduos, encontra-se alienada e convertida em atributo do mediador. A mediação, ao contrário de criar nexos entre os homens, separa-os alienando e estranhando-os entre si.
Observemos, por outro lado, um fato que marca agudamente essa relação: trata-se da suposta compensação encontrada pelos homens quando subsumidos à alienação que caracteriza sua sociabilidade mercantil, sociedade das trocas, que é a manifestação do equivalente, equivalente do valor, ou o próprio valor de troca. Como se põe e o que significa tal situação? Considerando então a generalização dessa alienação, a sociabilidade, o intercâmbio, Marx observa que o produto do trabalho dos homens deixa de ser a “personalidade distintiva, exclusiva de seu possuidor, pois se alienou dele, ela se separou de seu possuidor, de quem era o produto, e adquiriu significação pessoal para alguém que não a produziu” (Marx, 1974: 141/2). Com isto, põe-se e confirma-se a mútua alienação, pois “a propriedade privada aparece para as duas partes como representante de uma propriedade privada de outra natureza” (Marx, 1974: 142). Consideremos então o fato de que essa representação de uma com respeito à outra, seguida da substituição de uma pela outra, leva a que se tornem equivalentes uma à outra, como diz Marx; com isso, elas já não existem mais “como unidade imediata consigo mesma, senão somente como referência a outra” (Marx, 1974: 142), e mais, “Sua existência como equivalente já não é sua existência peculiar” (Marx, 1974: 142), pois, ao quebrar aquela unidade, convertendo-se em equivalente de outra, de diferente natureza, ela se “converte em valor e, imediatamente, em valor de troca. Sua existência como valor é distinta de sua existência imediata, é exterior a sua essência específica; é uma determinação alienada de si mesma; é só uma existência relativa de sua essência” (Marx, 1974: 142). Vale ressaltar, mais uma vez, que essa separação do valor em relação à natureza específica do produto do trabalho humano é a separação do valor em relação ao valor de uso desse produto, explicitada mais tarde em “O Capital” ao demonstrar a bifurcação do valor das mercadorias nas formas relativa e equivalente.
De fato, o caráter negativo que o mediador implanta, a forja da alienação em que o mediador se converte, leva o homem a subsumir-se a ele, e reafirma o caráter adstringido e incompleto de suas relações. Por outro lado, Marx põe em destaque o caráter humano que a necessidade revela dentro do quadro relacional dos homens, ainda que sob as formas mercantis: “não cabe dúvida que tu, como homem, mantém uma relação humana com meu produto: tens necessidade do meu produto. Este se encontra presente para ti como objeto do teu desejo e vontade” (Marx, 1974: 150) indicando que essa necessidade, essa vontade dos produtos produzidos por outro homem reflete sua essencialidade humana. “Porém tua necessidade, teu desejo, tua vontade são necessidade, desejo e vontade impotentes ante meu produto” (Marx, 1974: 150), e aparecem mais como deformidade que como necessidade.
Vemos que Marx reafirma a reciprocidade mercantil como mútua exclusão humana; a propriedade privada dissimula a peculiaridade, nossa ação vital, nossa essência humana, substituindo-a pelo mediador magicamente poderoso. O decaimento humano, nestas condições, é inevitável, pois os homens se tornam estranhos uns para os outros, condição que perpassa a intimidade das relações de troca: “desde o teu ponto de vista, teu produto é um instrumento, um meio que te serve para apoderarte do meu produto e para satisfazer tua necessidade” (Marx, 1974: 154). E continua sua argumentação: “Porém, desde meu ponto de vista, teu produto é o fim de nosso intercâmbio” (Marx, 1974: 154). De forma que “para mim, és tu o meio ou o instrumento da produção desse objeto” (Marx, 1974: 154), e completa sua reflexão afirmando: “Porém (...) o que um faz é na realidade o que o outro vê que faz; para apoderar-te de meu objeto tu te convertes na realidade em meio, instrumento, produtor de teu próprio objeto” (Marx, 1974: 154), o que dá como resultado que “teu próprio objeto é para ti só o invólucro sensível, a figura em que se esconde meu objeto” (Marx, 1974: 154), tornando evidente que, nas trocas, os homens têm como fim último de sua relação os seus produtos recíprocos, de maneira que sua individualidade é subtraída da própria relação.
De forma que tendo por base a ordem social do capital, a sociedade como uma “série de intercâmbios recíprocos”, ele observa que por esse caminho “pode ver-se a maneira como a economia política fixa a forma estranhada do intercâmbio social como forma essencial e original, adequada à determinação humana” (Marx, 1974: 138).
Tais relações mostram o caráter alienado e estranho da vida societária mercantil, até mesmo na própria linguagem que expressam. Marx afirma que “A única linguagem compreensível que falamos entre nós são nossos objetos em sua relação entre si. Uma linguagem humana nos resultaria incompreensível e inefetiva” (Marx, 1974: 153). Nessa medida, nossa comunicação se dá através de uma “linguagem estranhada dos valores coisificados” (Marx, 1974: 1953) abstratos, separados de nossa verdadeira essencialidade, pois, “nosso valor recíproco é o valor que damos reciprocamente a nossos objetos. Portanto, o homem enquanto tal é reciprocamente carente de valor para ambos” (Marx, 1974: 153). Nessas condições, uma linguagem da essência humana verdadeira, pareceria, no mundo das trocas, da economia política, “um atentado contra a dignidade humana” (Marx, 1974: 154). A linguagem do homem sob a forma da propriedade privada é a linguagem da troca, do intercâmbio, do comércio, e é assim que a economia política compreende o homem e sua sociabilidade de proprietário privado.
Marx destaca ainda a contradição a que estão sujeitos os homens personalizados como proprietários privados: “Se se pressupõe o homem como proprietário privado, quer dizer, como possuidor exclusivo que afirma sua personalidade, se diferencia de outros homens e está em referência a eles em virtude dessa possessão exclusiva /.../ resulta então que a perda da propriedade privada ou a renúncia a ela é uma alienação do homem assim como da propriedade privada mesma” (Marx, 1974: 139).  
Ele diz, “Eu alieno minha propriedade privada. Coloco-a como propriedade privada alienada com respeito a mim. Porém, só a coloco como coisa alienada em geral; só anulo minha relação pessoal com ela, devolvo-a as forças elementares da natureza” (Marx, 1974: 139), e continua, “Para que se torne propriedade privada alienada é necessário que, ao mesmo tempo em que deixa de ser minha propriedade privada, continue sendo propriedade privada em geral, quer dizer, que entre com outro homem estranho a mim na mesma relação em que esteve comigo; numa palavra, que se torne propriedade privada de outro homem” (Marx, 1974: 140). Marx avança na direção de especificar mais e melhor o caráter contraditório de nossas relações sob o turbilhão de estranhamentos e alienações: ao referir-se à concepção de necessidade tão amplamente utilizada na economia política, Marx responde que, inversamente, esta tem uma existência humana real, pois “a necessidade de uma coisa é a prova mais evidente e irrefutável de que essa coisa pertence à minha essência, de que seu ser é para mim, de que sua propriedade é a propriedade, ou o atributo próprio de minha essência” (Marx, 1974: 140), no entanto sua realização concreta, a satisfação da necessidade, repõe o movimento da propriedade privada, das trocas.
Finalmente Marx argumenta: “enquanto o homem não se reconheça como homem e, portanto, organize o mundo de maneira humana, esta comunidade aparecerá sob a forma do estranhamento” (Marx, 1974: 137). Portanto, a forma social própria da economia política, com intercâmbio, propriedade privada etc., não é e nem pode ser tratada pelo autor como uma comunidade humana. Marx contrapõe a essa comunidade mercantil outra, despojada da alienação, do estranhamento, das condições fundantes da forma social da economia política para mostrar que “o verdadeiro ser comunitário é a essência humana” (Marx, 1974: 137), pois é resultado e projeto da atividade cotidianas, mundanas, dos homens: “O intercâmbio, tanto da atividade humana no próprio processo de produção como dos produtos humanos entre si = a atividade genérica e ao desfrute genérico, cuja existência real, consciente e verdadeira é a atividade social e o desfrute social” (Marx, 1974: 137).
É possível vislumbrar nessa última reflexão marxiana que o centro de sua atenção converge cada vez mais para o contorno do que entende por ser social. Mas que ser é esse? “Os homens, ao pôr em ação essa essência, criam, produzem a comunidade humana, a entidade social, que não é um poder abstrato-universal, enfrentado ao indivíduo singular, senão a essência de cada indivíduo, sua própria atividade, sua própria vida, seu próprio espírito, sua própria riqueza” (Marx, 1974: 137). Atentemos para o fato de que o autor, aqui, está expondo a forma essencial dessa comunidade, de como se põem os indivíduos, que, antes de tudo, são essa própria comunidade, e não forma invocada pela idealidade abstrato-universal, como ele já apontou. Portanto, trata-se de “comunidade verdadeira [posta] em virtude da necessidade e do egoísmo de cada indivíduo; quer dizer, é produzida de maneira imediata na realização de sua própria existência” (Marx, 1974: 137). Ele concebe a sociedade nas condições reais de sua existência, tal qual se põe, como se põe e por que se põe desta forma. Diz ele: “Esta essência são os homens, não em uma abstração, senão como indivíduos particulares, vivos, reais. E o modo de ser deles é o modo de ser daquela” (Marx, 1974: 137). Por outro lado, a comunidade posta sob o efeito determinante da propriedade privada, das categorias sociais características da economia política, a comunidade estranhada não pode ser outra coisa senão o repositório de indivíduos estranhados. Pode-se dizer com Marx que vale o sentido da situação onde prevalece a propriedade privada: “é exatamente igual dizer que o homem se estranha de si mesmo e dizer que a sociedade deste homem estranhado é a caricatura de sua comunidade real, de sua verdadeira vida genérica” (Marx, 1974: 137). Eis, portanto, a forma evidenciada das contradições, quando Marx confronta a comunidade mercantil à verdadeira comunidade, à comunidade humana.
 
 
Bibliografía
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[1] Pós-Doutorando em História Econômica na USP (São Paulo). Prof. Titular do CUFSA, e do Instituto Presbiteriano Mackenzie.

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