28/03/2024

Tecnologia e emancipação em Herbert Marcuse.

Por

 

Rafael Cordeiro Silva*
 
A revolução cibernética é o que se vive hoje. Cada vez mais nos acostumamos a lidar com termos que outrora eram de difícil compreensão para as gerações mais velhas. Palavras como robótica, nanotecnologia, internet, telefonia celular, imagens tridimensionais, engenharia genética e outras tantas passaram a ocupar o cotidiano de toda uma geração que não chegou a ter clareza do quão rapidamente este desenvolvimento tecnológico se processou. Como parte da mesma situação, os anúncios publicitários sempre tendem a exaltar as maravilhas da tecnologia que facilitam nossa vida cotidiana e que podem ser compradas por outras tantos meios tecnológicos como a internet e os cartões de crédito. Essas duas formas de relação com a tecnologia implicam dois modos distintos de considerá-la. Por um lado, a tecnologia parece estar distante, frequentemente associada com pesquisas de laboratório, grandes descobertas e dizem respeito exclusivamente ao ofício dos pesquisadores e cientistas; por outro, a tecnologia parece estar bem próxima, nas nossas casas, no trabalho e, sobretudo, no lazer e entretenimento. A distância e a proximidade tornam-se formas não refletidas de relacionamento com a tecnologia. E se a humanidade vive em tempos de paz, ela lida de modo mais irrefletido e natural com os artefatos técnicos.
O século XX foi o período da história que conheceu os maiores desenvolvimentos tecnológicos. É um período muito curto na história da humanidade, mas muito longo para conter tantas transformações que parecem assustadoras aos olhos dos mais vividos. Se o impacto das transformações tecnológicas resulta tão visível, a discussão sobre tais transformações não parece ter conhecido um desenvolvimento na mesma proporção.
As realizações técnicas do século XX têm sido objeto de discussão e debate ao longo de décadas. O rápido desenvolvimento tecnológico em um período de tempo tão curto e muitas vezes conturbado causou distintos impactos nesse debate. Por um lado, uma visão essencialmente negativa, sobretudo quando se analisa o progresso técnico a partir de seus efeitos nefastos nas primeiras décadas do século. O emprego das tecnologias bélicas e de sua capacidade destrutiva é um exemplo desse desenvolvimento rápido cujas consequências não puderam passar despercebidas. Em pouco mais de 20 anos os artefatos projetados para matar seres humanos se tornaram tão eficientes, que o número de vítimas fatais e de mutilados de guerra foi infindavelmente maior na Segunda Guerra Mundial do que em todas as guerras precedentes. Por outro lado, quando o desenvolvimento tecnológico é avaliado quanto à capacidade de domínio da natureza cujos resultados podem beneficiar o desenvolvimento dos seres humanos, a tendência parece ser contrária e emerge uma consideração mais otimista das possibilidades técnicas.
Que reflexões esse desenvolvimento poderia suscitar? Quaisquer que sejam, pode-se dividi-las entre avaliações de cunho tecnofóbico, fatalista ou de exaltação da tecnologia. Essas posições revelam o caráter paradoxal a partir do qual a técnica e a tecnologia foram pensadas. Esse caráter aparentemente paradoxal também aparece nas considerações de Marcuse sobre a técnica e a tecnologia. A abordagem ora apresenta-se como crítica da técnica e da tecnologia, ora enfatiza seus aspectos emancipatórios. A análise de alguns desses escritos nos dará a ideia do caráter paradoxal.
Inicialmente nessa exposição não se fará qualquer diferenciação entre técnica e tecnologia, pois Marcuse não estabeleceu distinção entre esses termos. Outra característica dos escritos do autor sobre o tema é que eles são feitos com base em sua relação com a sociedade. Assim, desde o primeiro, de 1941, intitulado “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna” a tecnologia não é tratada em si mesma, porém de modo relacional. Nesse ensaio, o conceito de tecnologia aparece associado ao de razão. Mais especificamente, Marcuse pretende mostrar como a racionalidade burguesa foi se transformando até assumir a forma de racionalidade tecnológica. De uma disposição inerente ao sujeito que age e é capaz de responder por suas ações, a razão foi se exteriorizando, até se converter em algo com existência própria, capaz de definir os modos sobre os quais se realiza a sociabilidade. É como se ela ganhasse vida própria e passasse a ser percebida como algo diferente e independente da razão humana.
Marcuse fala de uma racionalidade tecnológica que foi tomando forma devido aos processos de mecanização surgidos durante e após a Revolução Industrial. A mecanização dela decorrente cria o princípio de eficiência. Com efeito, a máquina pode realizar mais e em menos tempo que o trabalho manual. É esse princípio de eficiência o responsável pela transição de um tipo de racionalidade a outro. Se o desenvolvimento da razão permitiu por um lado pressupor a ideia de indivíduos autônomos e colocar as bases para o desenvolvimento técnico e científico, por outro, pôde, ao longo do tempo, impor diferentes padrões opostos àqueles em que esse tipo de racionalidade surgiu. Por isso ele conclui que “a racionalidade individualista se viu transformada em racionalidade tecnológica” (MARCUSE, 1999: 77).
O ensaio “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna” associa a racionalidade tecnológica ao que se convencionou chamar “maquinismo”. Expressões como “era da máquina”, “o homem na era da máquina”, “processo da máquina” são mencionadas no texto para ilustrar a maneira pela qual essa racionalidade tecnológica se realiza. Nos casos em que essa associação ocorre, Marcuse tem como interlocutor Lewis Mumford, em especial sua obra de 1934, intitulada Técnica e civilização. Nela, Mumford pretendeu “analisar a tecnologia como fenômeno global de um ponto de vista histórico” (ARDILLO, 2010: 1). Não obstante o livro apresentar “um enfoque otimista que pretendia integrar os avanços da ciência e da tecnologia em um novo habitat humano mais equilibrado e harmonioso” (ARDILLO, 2010: 2), a forma como as ideias foram apropriadas por Marcuse sugere que a associação entre tecnologia e maquinismo é um fator de declínio do indivíduo e de sua autonomia. Tem-se, aqui, uma valoração fatalista da tecnologia. O filósofo afirma:
 
Lewis Munford caracterizou o homem na era da máquina como uma “personalidade objetiva”, alguém que aprendeu a transferir toda espontaneidade subjetiva à maquinaria a que serve, a subordinar sua vida à “factualidade” (matter-of-factness) de um mundo em que a máquina é o fator e ele o instrumento. (MARCUSE, 1999: 77-78)
 
Outro interlocutor de peso no ensaio de Marcuse é Max Weber. Aqui não prevalece a associação entre racionalidade tecnológica e maquinismo. Marcuse explora, nessa interlocução, o conceito weberiano de racionalidade com respeito a fins (Zweckrationalität), conferindo-lhe o sentido de razão instrumental, conceito amplamente difundido entre os expoentes da teoria crítica. Os processos históricos de racionalização indicam a prevalência da razão instrumental cujas consequências podem ser medidas pelo crescente nível de especialização e pelo fortalecimento dos diversos tipos de burocratização. A burocracia, a padronização de funções e de produtos e a especialização seriam assim as responsáveis pela emergência de novos padrões de sociabilidade. Quando Marcuse reorienta sua discussão para essa linha, ele se aproxima mais da abordagem desenvolvida por Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento. Para estes o maquinismo exerceu menor influxo do que a crítica aos padrões de racionalidade prevalecentes no mundo administrado. [1] O prefácio à primeira edição da Dialética do esclarecimento torna clara a preocupação de seus autores não com os rumos da atividade científica, mas com o seu sentido que teria se tornado problemático. Ou seja, o que os preocupou não foi se o desenvolvimento científico teria produzido uma quantidade infindável de máquinas ou se a ciência estaria orientada ou não para mitigar as carências humanas. Interessou aos autores a busca pelo princípio constitutivo da racionalidade. Por isso eles redirecionam a investigação para os fundamentos racionais que subjazem aos hodiernos padrões de sociabilidade. A tecnologia é vista aqui como o alicerce tanto para a dominação sobre a natureza quanto do homem sobre o próprio homem. Sob esse aspecto, a racionalidade torna-se sinônimo de dominação.
Ao longo do ensaio, a tônica que prevalece é uma avaliação negativa da tecnologia. Esse escrito está em conexão com as intenções da pesquisa sobre a razão do Instituto de Pesquisa Social, então radicado nos Estados Unidos. Horkheimer pretendia escrever um livro sobre a razão e direcionou as pesquisas para esse conceito. O livro foi a Dialektik der Aufklärung e o peso de Weber é sentido ao longo do texto. A mesma avaliação negativa perpassa a Dialética, que foi redigida em um momento em que não se tinha claro ainda quem venceria a guerra e em que também não haviam sido detonadas as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki. O livro já estava redigido em 1944. Se o ensaio fosse posterior à explosão dessas bombas de alto poder destrutivo, talvez a avaliação sobre a tecnologia pudesse ser ou diferente ou pior da que ficou registrada na versão final do escrito. Seria difícil medir o teor do conteúdo desconectado do fato histórico.
O paradoxo de “Algumas implicações...” estaria assentado, portanto, na junção de dois pensadores aparentemente diferentes: Mumford e Weber. Do primeiro Marcuse absorve o conceito de maquinismo e o toma como realização da tecnologia; do segundo retira o conceito de racionalidade com respeito a fins e o coloca como fundamento para a tecnologia enquanto dominação não apenas do homem sobre a natureza, mas também do homem sobre o homem. E nesse sentido tecnologia não significa necessariamente maquinismo, visto que outras formas de dominação são resultantes do desenvolvimento tecnológico, e não podem ser confundidas com a proliferação de máquinas cada vez mais sofisticadas e eficientes. Esse caso seria apenas uma consequência do desenvolvimento da razão. Na interlocução com Max Weber, o autor tem em mente os efeitos do processo de racionalização, que acaba submetendo os indivíduos à sua lógica. O ordenamento de suas vidas passa a ser ditado em função do funcionamento da “maquinaria social”.
Todavia, o aspecto que mais chama a atenção é o fato de Marcuse já nesse ensaio apresentar o que se conhece como a dupla face da tecnologia. Ele afirma:
 
A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo...
Além disso, a mecanização e a padronização podem um dia ajudar a mudar o centro de gravidade das necessidades da produção material para a arena da livre realização humana. (MARCUSE, 1999: 74 e 101)
 
Se nesse escrito de 1941 sobressaem os aspectos negativos da tecnologia, a outra dimensão será explorada nos escritos da década de 1950. Para fundamentar sua teoria crítico-emancipatória da sociedade, Marcuse, valendo-se da psicanálise freudiana, conta com uma interpretação otimista da tecnologia. Ela daria suporte a essa perspectiva emancipatória que emana de sua teoria.
O projeto teórico de Marcuse redefine a perspectiva emancipatória da Teoria Crítica, proposta inicialmente por Horkheimer no início da década de 1930. Trata-se agora da abolição das estruturas repressivas que impedem a realização pulsional dos indivíduos. Os conceitos metafísicos de Freud são reconfigurados tendo em vista a intenção do filósofo. A primeira diferenciação diz respeito ao caráter pretensamente universal dos conceitos freudianos. Marcuse pretende enfatizar a dimensão histórica contida em tais conceitos e para isso ele os modifica. Assim, o conceito freudiano universal de princípio de realidade é transformado em um conceito histórico e desdobrado em dois conceitos: o princípio de desempenho ou rendimento, que é a forma histórica do princípio de realidade, e a mais-repressão, que significa toda carga adicional que é imposta aos indivíduos além daquela repressão básica necessária para a manutenção dos níveis mínimos de sociabilidade.
Marcuse aceita de Freud a teoria das pulsões e reconhece os mesmos dois princípios básicos – Eros ou pulsão de vida e Tanatus ou pulsão de morte. Eros é entendido metafisicamente como movimento para geração de vida e Tanatus o movimento contrário de interrupção da vida, se ela é caracterizada como dor e sofrimento. Sob esse aspecto, no princípio de prazer, Eros e Tanatus buscam o prazer imediato ou o fim da dor. No princípio de desempenho Eros e Tanatus estão contidos, mediatizados e transformados repressivamente em forças que se tornam socialmente úteis ao processo civilizatório: Eros enquanto geração de sociabilidade e Tanatus como moral social. Da mesma forma, Marcuse também aceita a divisão da estrutura psíquica entre Id, Ego e Superego.
No entanto, se Freud é pessimista quanto à possibilidade da felicidade humana, devido à necessária repressão pulsional para a vida em sociedade, Marcuse quer fundamentar as formas pelas quais a satisfação pode ocorrer na vida em sociedade. Se da mesma forma Freud sustenta que a liberdade é impossível porque o processo civilizatório impõe a frustração e não a gratificação, Marcuse também quer mostrar o contrário. Para isso ele precisa contar com a reinterpretação em termos históricos desses conceitos universais propostos por Freud. Sob esse aspecto, a liberdade passa a ser definida em termos objetivos como a satisfação da necessidade com o mínimo de desprazer e frustração. E a satisfação da necessidade se dá mediante o trabalho. Isso significa que, quanto menos frustração ocorrer para a satisfação da necessidade, mais liberdade haverá.
No atual princípio de desempenho que é o capitalismo avançado, Marcuse afirma que o trabalho é alienado. Ao considerar o trabalho alienado, ele tem como referência tanto Freud como Marx. É alienado no sentido marxiano porque o produto do trabalho não pertence a quem o produziu, mas ao capitalista que detém os meios de produção e o capital. E é alienado no sentido freudiano porque, de maneira geral, é uma ocupação que não causa prazer. Os indivíduos são obrigados a trabalhar e muitas vezes exercem atividades que não escolheram livremente e, que por isso não correspondem às suas necessidades individuais, mas que lhe foram impostas como socialmente necessárias para fazer girar a roda do mundo administrado. Sua realização implica quase sempre fardo e frustração e isso requer o desvio da energia de Eros, que deixa de ser movimento para a criação de sociabilidade e se transforma em força compensatória que ajuda a suportar essa frustração. O trabalho torna-se, assim, a grande estrutura repressiva à qual os indivíduos permanecem atados durante a maior parte de suas vidas.
Os conceitos que Marcuse utiliza para a construção de sua teoria dão forma ao que ele imagina ser uma possibilidade histórica de um novo princípio de realidade cujo pressuposto pode ser enunciado da seguinte maneira:
 
A sociedade poderia permitir-se um alto grau de libertação pulsional sem perder as suas conquistas ou entravar o progresso. A direção básica de tal libertação, que está indicada na teoria freudiana, seria a recuperação de grande parte da energia pulsional desviada para o trabalho alienado e a sua libertação no sentido de satisfazer as necessidades dos indivíduos cujo desenvolvimento seria autônomo e não mais manipulado. (MARCUSE, 1969: 109-110)
 
Aqui entra a tecnologia cuja abordagem está voltada para a perspectiva emancipatória. Marcuse sustenta que a riqueza produzida nas sociedades industrialmente desenvolvidas em muito é capaz de satisfazer as necessidades humanas. A grande quantidade de matéria-prima existente, a mão-obra melhor capacitada e o desenvolvimento tecnológico multiplicaram a riqueza. Esses motivos bastariam para fazer supor que a quantidade de horas de trabalho despendidas já não seria necessária. Por causa do desenvolvimento técnico e científico produz-se mais riqueza em menos tempo. O filósofo aponta os elementos que permitiriam pensar a possibilidade de pelo menos reduzir a jornada de trabalho ou, na melhor das hipóteses, aboli-lo totalmente. Ele tem em mente que o avanço tecnológico poderia levar ao desenvolvimento de máquinas que substituiriam o desgaste físico pelo esforço mental. Novamente Marcuse deixa bem claro que técnica e tecnologia estão em estrita conexão com as máquinas. Isso fica evidente quando ele alude aos processos de automação.
 
A crescente mecanização do trabalho permitirá a uma parte cada vez maior daquela energia pulsional, que precisava ser desviada para o trabalho alienado, readquirir sua forma original; em outras palavras, ela pode voltar a ser energia das pulsões de vida... Que acontecerá se uma automação mais ou menos total determinar a organização da sociedade e se apoderar de todas as esferas da vida? Para descrever essas consequências, recorro aos próprios conceitos freudianos fundamentais. A primeira consequência seria que a força da energia pulsional, liberada pela mecanização do trabalho, não precisaria mais ser gasta em atividades desprazerosas e poderia voltar a ser energia erótica. (MARCUSE, 2001: 131-132)
 
A completa automação das atividades implicaria a diminuição do desgaste físico e da jornada de trabalho. Com menos horas trabalhadas sobraria mais tempo livre, que poderia ser destinado para o pleno fomento das potencialidades humanas. O ser humano é lúdico e vários pensadores da tradição aludem a isso: jogar, brincar, criar, desenvolver habilidades faz parte da realização de qualquer indivíduo. É justamente isso que o filósofo tem em mente quando fala da possibilidade de realização do tempo livre.
Como se pôde perceber, a visão que Marcuse tem sobre a tecnologia está associada ao desenvolvimento de máquinas e da automação, que remete, por sua vez, para a abolição do trabalho alienado e das formas de dominação assentadas nele. A tecnologia é, portanto, uma chave para a emancipação. A eficiência, criticada no ensaio de 1941 por representar um passo para o declínio do indivíduo autônomo, é lembrada aqui como fator que libertaria o indivíduo das frentes de trabalho alienado e seria responsável por restituir ao trabalhador outrora alienado a sua dignidade e a sua capacidade criativa, fazendo com que o trabalho se torne gratificante e libinal.
Na década de 1960, Marcuse se volta novamente para o tema da tecnologia. Em alguns de seus escritos dessa década as menções ao tema reaparecem sob diferentes perspectivas. Mencionarei duas delas e não na ordem em que apareceram publicadas. Em 1969, na obra Um ensaio sobre a libertação, aparece a menção à tecnologia sob a mesma ótica já tratada quando da análise de alguns escritos da década anterior. Marcuse afirma: “será necessário repetir que a ciência e a tecnologia são os principais agentes da libertação e que apenas sua utilização restritiva na sociedade repressiva faz delas agentes de dominação?” (MARCUSE, 1969: 23) Aqui se tem o entendimento de que a tecnologia serve tanto para a dominação quanto para a libertação, posição que já aparecera no ensaio “Algumas implicações...”. Ao redigir Um ensaio sobre a libertação, Marcuse o faz no contexto da explosão dos movimentos de protesto ocorridos na segunda metade da década de 1960 e, atento a eles e a outros ligados à luta pela igualdade racial, à recusa de intervenções militares e de apoio às lutas de libertação nacional, apresenta uma visão que coloca a tecnologia no centro de uma sociedade emancipada. Aqui o desenvolvimento tecnológico não é a causa da opressão, mas ela está dentro da sociedade emancipada como um de seus pilares.
Um ensaio sobre a libertação foi escrito após outra obra do autor que causou grande impacto na literatura filosófica de esquerda. Trata-se de O homem unidimensional, publicada em 1964. O contexto é o da Guerra do Vietnam. Nesse livro Marcuse faz uma crítica ao Estado beligerante – postura adotada pela política intervencionista dos Estados Unidos em diversos países estrangeiros – que é mantido pela ideologia do Estado de Bem-Estar Social. Sob o pretexto de deter o avanço do comunismo e levar a liberdade a todos os povos, a política bélica tornou-se a maneira de os Estados Unidos manterem sua hegemonia política. O assentimento das massas era garantido pelas políticas do Estado de Bem-Estar Social e pelo crescente padrão de vida oferecido aos cidadãos. Aqui entra a tecnologia.
 
Nossa sociedade se distingue pela conquista das forças sociais centrífugas mais precisamente pela Tecnologia do que pelo Terror, sobre a dupla base de uma eficiência esmagadora e de um crescente padrão de vida. (MARCUSE, 1991: xlii)
 
Mais à frente, deparamo-nos com outra passagem:
 
Diante das características totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de “neutralidade” da tecnologia não pode mais ser sustentada. A tecnologia enquanto tal não pode ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na construção das técnicas.
Enquanto universo tecnológico, a sociedade industrial avançada é um universo político, a mais recente etapa na realização de um projeto histórico específico – a saber, a experiência, a transformação e organização da natureza como mero material de dominação. (MARCUSE, 1991: xlviii)
 
Diferentemente dos escritos da década de 1950, O homem unidimensional é uma crítica contundente à política internacional norte-americana e às formas de dominação daí decorrentes. Mas é também, como indica o subtítulo do livro, uma crítica à ideologia da sociedade industrial avançada, cuja maior referência são os Estados Unidos. Nessa obra, Marcuse desnuda o que ele chama de “forças de contenção”, isto é, as políticas externas e internas, as ideologias e as formas de organização social, destinadas a impedir a libertação. Por um lado, ele continua fundamentando sua crítica no mesmo pressuposto de que se servira para a construção de seu projeto teórico na década anterior, a saber: a libertação já é possível por causa do desenvolvimento das forças produtivas, em especial a ciência e a técnica, e pela imensa produção de riqueza que seria suficiente para mitigar as necessidades humanas. Por outro lado, como essa libertação não foi alcançada, essa obra de 1964 investiga as forças que a impedem.
Quando se trata de fazer a crítica das sociedades existentes, Marcuse revela-se cético em relação ao potencial tecnológico, mostrando o quanto a tecnologia está comprometida com a dominação não apenas da natureza, mas do próprio homem. É o que se vê na maior parte de O homem unidimensional. Entretanto, nessa obra, a técnica e tecnologia não estão tão fortemente associadas ao maquinismo. Emerge aqui um novo sentido, em que elas estão relacionadas à ideologia. A tecnologia se tornou uma forma de ideologia e, enquanto tal, está destinada a ofuscar a consciência de uma libertação que, no universo dos países altamente desenvolvidos, já se descortina. Não por acaso, a expressão “véu tecnológico” é bastante apropriada para descrever a situação que Marcuse pretende criticar.
 
O véu tecnológico encobre a reprodução da desigualdade e da escravidão. Com o progresso técnico como seu instrumento, a não liberdade – no sentido da sujeição humana a seu aparato produtivo – é perpetuada e intensificada na forma de várias liberdades e confortos. (MARCUSE, 1991: 32) [2]
 
A tecnologia foi transformada em seu contrário: de força produtiva de libertação em força de contenção. Enquanto possibilita o conforto, ela anestesia a consciência de uma mudança social possível. Assim, ela perpetua a servidão nas sociedades industriais avançadas. Sob esse aspecto, a tecnologia se tornou forte aliada do poder político, tanto no mundo capitalista quanto no bloco comunista. Este atua na afirmação e manutenção do status quo. A corrida armamentista e a conquista do espaço foram dois exemplos de como a tecnologia foi usada para o fortalecimento dos respectivos sistemas econômico-políticos. Em ambos os blocos, a política se exerceu contra a libertação. Os interesses políticos, voltados para a dominação, encontraram na tecnologia uma base muito forte.
O percurso por alguns escritos de Marcuse pretendeu mostrar as perspectivas a partir das quais o autor trata o tema da tecnologia. Comentadores veem, nesses diferentes modos de tratamento, dificuldades teóricas de interpretação do autor. Uma interpretação que tem se tornado clássica tenta mostrar que esses diferentes escritos se assentariam sobre duas fontes distintas: de um lado, uma influência do jovem Marx, quando Marcuse aborda a perspectiva emancipatória da técnica, que estaria, entretanto, aprisionada pela propriedade privada dos meios de produção;[3] de outro, uma proximidade com Heidegger, para quem a técnica é essencialmente dominação (LOUREIRO, 2003: 10)[4]. Não pretendi mostrar aqui se é correta essa hipótese interpretativa. Preferi optar por outra estratégia de abordagem e mostrar que, quando se trata de fundamentar sua teoria da sociedade, Marcuse avalia positivamente o potencial da tecnologia. Ela seria imprescindível para a emancipação. Por outro lado, quando se trata de fazer a crítica da sociedade existente, a tecnologia apresenta-se como a base para a dominação política sobre os homens e como instância de perpetuação das condições vigentes ou, nas palavras de Marcuse, para a manutenção do Establishment.
 
 
 
 
 
 
 
Bibliografía
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ARDILLO, J., Lewis Mumford y el mito de la Máquina, en Artefacto: pensamientos sobre la técnica. Marzo 2010, p.1-5. <http://www.revista-artefacto.com.ar/pdf_textos/38.pdf[Consulta: 07 de setembro de 2013] >
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* Professor da Universidade Federal de Uberlândia (Minas Gerais), Brasil. Correo electrónico: [email protected]
[1] Não obstante essa afirmação é interessante notar como Horkheimer se refere ao mundo administrado, comparando-o a uma máquina. Ao descrever o processo de ascensão e declínio do indivíduo, ele escreveu em Crítica da razão instrumental: “a máquina arremessou o maquinista para fora dela e se precipita às cegas através do espaço” (HORKHEIMER, 1973a: 138). A sociedade é comparada a uma máquina que se movimenta sozinha e não precisa mais de quem a opere. Trata-se de uma metáfora que indica claramente a avaliação de Horkheimer sobre o mundo administrado como um lugar no qual o indivíduo, tomado em sentido kantiano como indivíduo autônomo, não apenas é prescindível como também desapareceu, visto ser impossível dar uma direção aos rumos dessa maquinaria social. Apesar da referência à máquina, a ideia é a de crítica à racionalidade que produziu o mundo administrado.
[2] A expressão “véu tecnológico” se tornou consagrada entre os teóricos críticos. Horkheimer a menciona em “Razão e autoconservação” quando afirma que no lugar da ideologia da troca justa do período capitalista liberal apareceu a tecnologia como ideologia. “Em lugar do esburacado véu do dinheiro, aparece outro ainda mais impermeável, o véu tecnológico” (HORKHEIMER, 1973b: 170). Adorno também consagra a ela uma passagem, ao dizer: “na relação atual com a técnica existe algo exagerado, irracional, patogênico, Isto se vincula ao ‘véu tecnológico’. Os homens se inclinam a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens”. (ADORNO, 1995: 132)
[3] Em pelo menos duas ocasiões Marcuse cita uma passagem dos Grundrisse de Marx em que emerge o argumento de que o desenvolvimento das forças produtivas e das máquinas poderia levar a uma nova fase de relação dos homens com as máquinas e de produção de riqueza, que dispensaria as longas e penosas jornadas de trabalho. A mesma passagem aparece em One-dimensional Man (p.35-6) e no artigo “The Obsolescente of Marxism” (p.412). A passagem foi retirada de K MARX. Grudrisse der Kritik der politischen Oekonomie. Berlin: Dietz Verlag, 1953, p.592 et. seq.
[4] A autora remete a discussão a Andrew Feenberg, em seu artigo “The bias of technology”.

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