25/04/2024

A Função do Caráter Social em Erich Fromm

Por

 

Rafael Adilson Ribeiro
 
Desde os seus primeiros textos Erich Fromm (1900-1980) afirma que o marxismo é um humanismo que tem por objetivo possibilitar o pleno desabrochamento das potencialidades do homem. De modo tal, que o estudo do capital constitui o instrumento crítico que Marx utiliza para a compreensão da situação alienante do homem na sociedade industrial. Essa interpretação de Fromm deve revelar as raízes e o sentido geral que sua obra tomará, ou seja, o aprofundamento das argumentações humanista, que um pouco mais tarde buscará complemento no freudismo, com vistas a compreender a interação entre natureza humana e sociedade. No presente texto procuramos esclarecer a formação e o funcionamento do conceito frommiano de caráter social, o qual constitui um dos principais termos de suas análises.
Com o desenvolvimento do pensamento de Marx, muitos socialistas marxistas, especialmente nos países do leste europeu que tentaram implantar o socialismo, mas também no ocidente, tornaram-se conscientes do fato de que a teoria marxista carece de uma teoria psicológica que satisfaça a necessidade do homem por um sistema de orientação e fundamentação de normas éticas. De outro lado, desenvolvendo o discurso crítico inaugurado por Marx, os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt buscaram completar a crítica de Marx com a psicologia de Freud a fim de elaborar teorias críticas capazes de melhor diagnóstico e análise de situações sociais e culturais presentes. Trata-se do movimento conhecido como freudo-marxismo que tem como pano de fundo, dois fatos históricos: a Revolução Russa de 1917 e a ascensão de Hitler ao poder, em 1933.
Ambos os fatos colocam em evidência a importância do fator subjetivo da história até então negligenciado pelos marxistas ortodoxos, haja vista que estes analisam os acontecimentos em termos políticos e econômicos. Se, no caso da Revolução Russa, o que chama a atenção é a constatação de que a revolução acontece mesmo sem as forças produtivas estarem prontas, no caso da tomada de poder por Hitler, é o apoio que este recebe da classe operária o fator intrigante. A questão gira em torno de saber por que o proletariado apoia Hitler, agindo em desacordo com seus interesses de classe, ou seja, como aceitam o fascismo voluntariamente. Tendo em vista que a análise em termos econômico-políticos não dá conta de esclarecer essa controvérsia, o conhecimento da psicologia será utilizado como um instrumento de crítica da sociedade, na medida em que pode explicar a subjetividade e o comportamento humano.
Para ser fiel ao pensamento de Marx e poder completar sua teoria, a psicologia tem de ver a evolução das forças psíquicas como um processo de interação constante entre as necessidades do homem e a realidade social e histórica da qual ele participa. Tem de ser uma psicologia que surge, desde início, como psicologia social. E a psicologia de Freud, que começa a ser publicada depois da morte de Marx, cumpre essas condições principais.
Contudo, a tradição que buscou unir o marxismo com o freudismo, da qual Fromm pertence, realizou a revisão de alguns dos conceitos e das teorias de Freud. Para Erich Fromm, fenômenos psíquicos como isolamento, medo, inatividade, alienação e ansiedade, que atuam e contribuem para fundamentar a sociedade tecnologicamente organizada, assumiram o papel central que, na visão de Freud, era atribuído ao recalcamento da sexualidade.
 Em Erich Fromm, foi a teoria freudiana da libido que sofreu maiores críticas por estar enraizada num fisiologismo mecanicista de visão fundamentalmente biológica a respeito do homem. Fromm discorda dessa concepção, ele diz:
 
Procurei ater-me às descobertas básicas de Freud, substituindo, porém, sua filosofia mecanicista-materialista por uma humanista. O homem não é uma máquina que é regulada por um mecanismo de “tensão-distensão” deflagrado quimicamente. O homem é uma totalidade e tem a necessidade de relacionar-se com o mundo.[1] (FROMM, 1992:14).
 
Assim, na compreensão do conceito frommiano de homem, há um momento da história humana em que houve uma separação primordial de vivência com a natureza, quando se romperam seus vínculos imediatos com a mesma e o homem deixou de ser um animal puramente instintivo; ele se tornou um animal racional e ambíguo, que ganhou individuação e liberdade, ao mesmo tempo, em que perdeu a segurança e a harmonia do pertencimento unitário à natureza.
Desde então, a história é construída pelos homens, que já sempre se encontram nessa condição de ambiguidade e dicotomia inerentes à sua existência. De um lado, o homem encontra-se livre para agir, do outro, está sempre determinado pelas maneiras que construiu para superar as adversidades. Desse ponto de vista, é a necessidade constante de superar essas dicotomias que influenciam as atividades humanas, levando-os a desenvolver as condições sócio-econômicas e ideológicas que podem tornar isso, de algum modo, possível.
 
A necessidade de encontrar soluções sempre renovadas para as contradições de sua existência, de encontrar formas cada vez mais elevadas de unidade com a natureza, com seus próximos e consigo mesmo, é a fonte de todas as forças psíquicas motivadoras do homem, de todas as suas paixões, seus afetos e suas ansiedades. [2] (FROMM, 1963:38).
 
Portanto, partindo de outra concepção de homem, o revisionismo de Erich Fromm enfatiza a importância dos fatores econômicos, ideológicos e culturais na formação do caráter do homem. Na crítica social de Fromm está sempre presente o fato de que a natureza humana possui, além das necessidades fisiológicas básicas, algumas outras necessidades psíquicas decorrentes da condição humana que precisam, igualmente, serem satisfeitas, caso contrário, na interação entre natureza humana e forças econômicas, deverão surgir elementos que irão agir para a desintegração social.
Enfatizando a influência de fatores econômicos e ideológicos na formação do caráter, o próprio Fromm descreve sua orientação como sendo sociobiológica e centralizada em torno do problema da sobrevivência, concebendo o homem, antes de tudo, como um ser social que necessita relacionar-se com o mundo a fim de sobreviver física e mentalmente. Isso insere o homem em dois processos fundamentais de socialização e assimilação que dizem respeito à necessidade humana de se relacionar com os outros e de adquirir coisas. Segundo Fromm, é a função do caráter orientar e canalizar a energia humana através desses processos que permitem ao homem sobreviver. Assim, O caráter cumpre uma função sócio-biológica que não só determina a formação do caráter individual ao modelar a energia do indivíduo, mas também a do caráter social.
 Na base de sua abordagem, Fromm refere-se às afirmações de Freud em Psicologia Coletiva e Análise do Ego,onde se lê nas primeiras linhas do texto freudiano:
É verdade que a psicologia individual diz respeito ao indivíduo e explora as trilhas pelas quais busca encontrar satisfação para seus impulsos instintivos, mas só raramente e sob certas condições excepcionais a psicologia individual está em posição de negligenciar as relações deste indivíduo com os outros. Na vida mental do indivíduo alguém mais está invariavelmente envolvido, como modelo, como objeto, como auxiliar e como oponente; e por isso, desde o começo a psicologia individual é simultaneamente, no sentido mais amplo da palavra, psicologia social.[3] (FREUD, 1975: 69)
Portanto, corroborando as palavras de Freud citadas acima, Fromm afirma que o indivíduo deve ser entendido, desde sempre, como já socializado e, portanto, tendo o seu caráter desenvolvido e determinado por meio da sua relação com a sociedade. Sendo assim, a diferença entre a psicologia individual e a psicologia social pode ser, por esta razão, apenas quantitativa. Para Fromm, tanto a psicologia social quanto a psicologia individual tenta compreender a estrutura psíquica a partir das experiências de vidas pessoais, Todavia, Fromm as compreende sendo determinadas, fundamentalmente, como resultado das práticas e estilos de vida comum a muitos indivíduos em uma determinada situação sócio-econômica e que são, portanto, de importância decisiva para a orientação do indivíduo específico.
Consequentemente, a psicologia social de Erich Fromm deseja investigar como certos sintomas e neuroses observados nos membros de uma mesma sociedade estão relacionados com as experiências de vida comuns entre os membros dessa sociedade. Nesse sentido, o caráter social compreende a soma dos traços comuns do caráter da maior parte dos indivíduos, formado como resultado das experiências de vida desses indivíduos enquanto inseridos em uma mesma situação social.
No apêndice de seu livro O Medo à Liberdade Fromm diz: “A função subjetiva do caráter é levar a pessoa a agir de acordo com o que é necessário para ela sob um ponto de vista prático e, também, proporcionar-lhe satisfação psicológica através de sua atividade.” [4]É através da atividade, isto é, do trabalho que a pessoa é levada à corrente da sociedade e do processo social, recebendo um lugar onde possa produzir dentro de um determinado sistema econômico. Os membros dessa sociedade, as várias classes ou grupos nela existentes precisam se comportar da maneira que lhes permita funcionar no sentido exigido pelo sistema social. Desse modo, a função do caráter social consiste em modelar as energias dos membros da sociedade de tal forma que sua conduta não seja assunto de decisão consciente quanto a seguir ou não a norma social, mas uma questão de desejarem se comportar como têm de se comportar, encontrando, ao mesmo tempo, prazer em proceder da forma exigida pela cultura. Em outras palavras, a função do caráter social consiste em moldar e canalizar a energia humana em uma determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando continuamente.  (FROMM, 1974: 223).
Um dos principais fatores para a formação e a manutenção do caráter social são as organizações familiares e os sistemas educacionais. Estes podem ser considerados, diz Fromm, como os agentes psíquicos da sociedade. Por meio deles, principalmente da família, uma vez que o caráter da maior parte dos pais é expressão do caráter social, transmitem-se à criança os traços essenciais da estrutura de caráter socialmente desejável. Por isso, o sistema educacional e outros aparelhos culturais têm seu poder de autoridade facilitado e legitimado, apresentando o poder econômico e político como prolongamentos naturais da autoridade paterna, consolidando o caráter social, ao mesmo tempo em que nele se originam.
Igualmente, agindo no sentido de sistematizar e estabilizar o caráter social, está a forma de organização do sistema de produção e distribuição em uma sociedade, que por sua vez, determinam as relações sociais e os modos de vida praticados em tal sociedade.
Sendo assim, é incutido, por exemplo, no caráter dos homens da sociedade industrial moderna, por meio do caráter social, a exigência de que sua energia e disciplina sejam dedicadas ao trabalho. Ele interioriza várias atitudes sobre o valor e dever do trabalho, o que funciona eficientemente para controlar o seu comportamento. A esse respeito, Fromm diz o seguinte: A necessidade de trabalhar, de pontualidade e ordem teve de ser transformada em impulso interior para esses objetivos. Isto quer dizer que a sociedade teve de produzir um caráter social a que tais impulsos fossem inerentes.”[5]Portanto, a função do caráter social é transformar uma necessidade social num impulso interior em cada indivíduo. Esse caráter constitui o intermediário entre a estrutura sócio-econômica e as ideias dominantes numa sociedade, funcionando em ambas as direções, da base econômica para as ideias e das ideias para a base econômica. (FROMM, 1963: 88).
Como se buscou mostrar, uma vez que certas necessidades foram incutidas em uma estrutura de caráter, qualquer comportamento ajustado a elas é, ao mesmo tempo, satisfatório psicologicamente e prático sob o ponto de vista das condições objetivas. Enquanto uma sociedade oferece ao indivíduo essas duas satisfações simultaneamente, há uma situação em que as forças psicológicas preservam a estrutura social.
Nessas circunstâncias, a estrutura libidinal típica, comum a todos os homens de um contexto histórico específico, exerce uma função decisiva para a estabilidade social. É ela que estabelece os vínculos afetivos pelos quais as classes oprimidas se relacionam com as classes dirigentes, levando as primeiras a aceitar passivamente sua opressão.
Contudo, em circunstâncias anormais, quando surgem novas condições econômicas, os traços de caráter tradicionais se tornam inúteis, e podem gerar verdadeiras desvantagens e reações, nos sentidos destrutivos ou criativos, revolucionários ou conservadores.
Essas considerações mostram que a síntese frommiana de marxismo e psicanálise envolve, no quadro do progresso histórico, o domínio social não só da natureza, mas, também do próprio ser natural do homem, no qual as racionalizações se inscrevem como ideologias do comportamento socialmente exigido no âmbito mais vasto das relações entre indivíduos influenciados e determinados pelo esquema sócio-econômico em que encontram ou não a realização das suas necessidades. Por isso, mesmo o modo como as ideologias são produzidas e funcionam pode ser corretamente perspectivado se chegarmos à compreensão mais ampla da estrutura de caráter. Para tanto, Fromm parece ter dado um importante passo com a caracterização do dispositivo instintivo de um grupo, seu comportamento libidinal e predominantemente inconsciente, em função da estrutura econômica, por meio de seu conceito de caráter social. Isso pode fornecer um conhecimento mais objetivo de um fator essencial no processo social, a saber, a natureza do próprio homem como parte funcional da infraestrutura. Se Marx afirma que os homens são os produtos das suas ideologias, o conhecimento da estrutura de caráter pode descrever o processo de produção dessas mesmas ideologias, evidenciando como o mecanismo cultural da sociedade serve também para enfraquecer as forças da libido até que deixem de constituir uma ameaça à estabilidade social.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bibliografia:
FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Ego. –na Standard Edition dos trabalhos psicológicos completos de Freud traduzida por J. Strachey. Amorrortu Editores. Buenos Aires. 1975. Vol. XVIII.
FROMM, E. A descoberta do Inconsciente Social: Contribuição ao redirecionamento da Psicanálise. Tradução: Lúcia H. S. Barbosa. São Paulo. Manole. 1992. (Obras Póstumas; 3)
___________. Psicanálise da sociedade Contemporânea. Tradução: L. A. Bahia e Giasone Rebuá. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1963.
___________. O Medo à Liberdade. Tradução: Octavio A. Velho. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1974.
 


[1] Fromm Erich. A descoberta do Inconsciente Social: Contribuição ao redirecionamento da Psicanálise. 1992. P.14.
[2] Fromm Erich. Psicanálise da sociedade Contemporânea. 1963. P.38.
[3] Freud Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Ego. 1975. Vol. XVIII, p.69.
[4] Erich Fromm. O Medo à Liberdade. Apêndice: O Caráter e o Processo Social. 1974. P.223.
[5]Fromm Erich. Psicanálise da sociedade Contemporânea. 1963. P.88.
 

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