27/07/2024

CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL E O IRRACIONALISMO PÓS-MODERNO

Por

 

Rodrigo Bischoff Belli[1]
 
Resumo
 
Este artigo apresenta uma série de considerações sobre as possíveis relações existentes entre a crise estrutural do capital e o debate ideológico existente na tentativa de sua compreensão. Especificamente, enfocam-se os desdobramentos da opção pela linha de menor resistência do capital como resposta à sua crise estrutural e o desdobramento dessa opção ao nível ideológico. Esta condição produz uma alternativa que busca compreender a realidade e, consequentemente, formular uma alternativa prática para sua transformação distinta de tudo o que já existiu. Porém, diante das determinações desse processo, o que se tem é uma alternativa que resgata, mesmo que sob uma nova forma, propostas completamente destoantes do ideário humanista ligado à tradição da esquerda, da qual essa nova resposta pretende se aproximar. Essa nova resposta, vinculada ao ideário pós-moderno, resgata o irracionalismo que nutriu o reacionarismo das classes e grupos sociais ligados aos interesses do capital, incompatível com o posicionamento de esquerda.
Palavras-chave
Irracionalismo; crise estrutural do capital; pós-moderno
 
Introdução
Em geral, os estudos sobre as diversas formas de expressão ideológica, embora possam alcançar aspectos importantes da realidade, tendem a produzir um entendimento de que qualquer expressão ideológica estaria dissociada da história, como se possuísse uma autonomia grande o suficiente para que pudesse ser entendida de maneira atomizada diante da totalidade da vida social. Assim, a contextualização histórica que costuma ser relatada inicialmente acaba apenas por apontar o plano de fundo no qual o objeto ideológico em questão executaria seus movimentos. A ideologia, enquanto expressão humana, não pode se constituir desse modo. Como lembra Lukács, o ser humano é um ser que dá respostas[2], e estas são, como verdadeiros atos históricos carregados de materialidade, produtos sintetizados de uma série sem igual de determinações – e a ideologia não escapa a isso. É por esse motivo que o tratamento dado aos estudos sobre ideologia precisa constantemente relacionar determinadas escolhas, e as consequências destas escolhas a partir do momento em que são executadas[3], às necessidades e possibilidades do momento, indelevelmente marcados pelos determinantes da luta de classes[4].
Com esta compreensão, apresenta-se aqui parte dos resultados de uma pesquisa[5] que apontam para a observação de um fenômeno ideológico, o do pós-modernismo, próprio ao momento de crise estrutural do capital.
 
1. A crise estrutural do capital e a opção pela linha de menor resistência
Ao final da década de 1960, o capitalismo se encontrava em sua “era de ouro”. Depois de anos de parco desenvolvimento, principalmente na Europa, devido à destruição causada pelos conflitos ocorridos entre 1914 e 1945, a segunda metade do período Guerra Fria reservou grandes expectativas. Até então, nunca os países ligados às economias liberais gozaram tanto de uma capacidade de produção e consumo de mercadorias, bem como os trabalhadores, que, muito embora não vivessem numa sociedade de produtores livres associados, usufruíram de uma quantidade de benefícios que nenhum de seus antepassados teve chance de aproveitar (HOBSBAWM, 2004: 253).
Este é o período de consolidação do regime de produção fordista, marcado pelo compromisso da vanguarda burguesa no investimento tecnológico no campo da produção e na consolidação de um padrão mercadológico dos negócios. É, também, o período de surgimento de uma série de novas obrigações estatais, exigidas para garantir às economias de mercado um controle supostamente harmonioso dos ciclos econômicos. O Estado de bem-estar social (welfare state), mais do que uma alternativa à “ditadura do proletariado” e à anarquia do mercado, foi um instrumento econômico de manutenção das relações de classe, viabilizando o consumo através de suas políticas públicas, contendo temporariamente as crises de superprodução. Mas o grande desenvolvimento tecnológico não foi capaz de conter as contradições que levam às crises do capital, e tampouco o Estado foi capaz de se livrar da condição de refém da economia para sustentar as benesses de toda a década de 1960 (HARVEY, 1994: 135).
O desenvolvimento econômico propiciado pelo fordismo, embora não tenha conseguido frear ou inutilizar os mecanismos de disparo da crise, precisou sofrer alterações para se manter. O fordismo em crise tornou-se a base de um novo regime produtivo, denominado comumente de acumulação flexível. O Estado também tem sua função alterada nesse novo quadro regimental, sendo liberado do fardo fiscal das políticas de bem-estar, diminuindo, supostamente, seu nível de intervenção na economia (HARVEY, 1994: 157-162).
O capitalismo, apesar das mudanças com relação ao seu período anterior, não teria suas características principais modificadas. O diferencial desse período não corresponderia necessariamente ao acúmulo de poder nas agências financeiras, mas sim aos instrumentos e aos mercados de finanças que surgiram com a crescente e cada vez mais elaborada rede de coordenação financeira global constituída através do avanço de empresas sobre territórios diferentes de sua origem e do desenvolvimento da capacidade de transmissão de informação (HARVEY, 1994: 174-175). Essa predominância do sistema financeiro resultou numa perda de autonomia do Estado em geral como regulador econômico, muito embora ainda tivesse o poder, por diversas vezes demonstrado, de regular a disciplina da força de trabalho e de socorrer os mercados financeiros em tempos de crise. No entanto, por se manter refém da manutenção do sistema financeiro, o Estado era, e ainda continua por ser, a instituição que mais sofre com as crises fiscais. A acumulação flexível se apresentaria, considerados todos esses pontos, como uma resposta às crises do capitalismo na perspectiva da preponderância do sistema financeiro na regulação do ritmo de reprodução do capital.
Essa transformação no regime produtivo e na função do Estado corresponde a um momento específico da ação humana orientada pela disputa de classes em favor dos grupos dominantes, dentro dos marcos da sociedade regida pelo capital. Trata-se daquilo que Mèszàros (2010) denominou como a linha de menor resistência do capital[6]. Uma alternativa lampedusiana[7] que garante à burguesia a manutenção de sua hegemonia de classe sobre os trabalhadores.
É importante relembrar que apesar de ser uma escolha, essa opção não pode ser entendida como um ato individual liberto de determinações exteriores. Ao contrário, toda escolha humana é limitada pelas condições do momento vivenciado, que são legadas por seus antepassados. A possibilidade de escolha e de efetivação da linha de menor resistência só pode ocorrer devido a certas condições. A manutenção do Estado, apesar das restrições que lhe foram impostas, e o desencadeamento tecnológico capaz de extrair mais-valia do mínimo de trabalho empregado possível, foram os fatores empíricos capazes de propiciar essa mudança. Outro fator, este de matriz ideológica, mas não menos material, foi o da retomada de uma corrente filosófica considerada superada e que, contra todos os prognósticos, conseguiu avançar e influenciar visões de mundo completamente distintas de sua origem.
 
2. O retorno do irracionalismo
A virada dos anos 1960 a 1970 é, sem dúvida, um momento decisivo na constituição do fenômeno de ressurgimento do irracionalismo. É nesse período que uma série de fatores, relacionados tanto à atividade diretamente econômica quanto a aspectos ideológicos, se entrelaçam de uma maneira tal que a compreensão do movimento da realidade torna-se bastante prejudicada.
O irracionalismo surge ao final do século XIX, consolidando-se no início do século XX como uma corrente de pensamento formulada enquanto resposta contra duas correntes ideológicas: o ideário liberal-burguês, incapaz de sustentar ideologicamente as relações capitalistas, seja pelo avanço da luta dos trabalhadores, seja pela incapacidade de contenção e solução das crises econômicas, e o ideário socialista que se antagonizava a ele de maneira cada vez mais intensa.
O irracionalismo exerce uma influência negativa por escamotear as conquistas obtidas ao que se refere à compreensão do movimento do real. Há um empobrecimento das discussões intelectuais e da maneira como se deve intervir no mundo, num movimento claro de decadência ideológica[8].
No irracionalismo, os sinais de decadência ideológica são observados na equiparação e identificação de dois momentos distintos do processo do conhecimento, a saber, o entendimento e a compreensão. Enquanto que a filosofia burguesa anterior ao período do capitalismo imperialista sustentava uma postura idealista objetiva, mantendo a ideia de que o processo de constituição do conhecimento se realizaria primeiramente através de uma apreensão ordinária, imediata, do objeto em questão, para depois avançar em um exercício de abstração que permitiria a comparação deste objeto com outras expressões do real, a filosofia do irracionalismo propunha o contrário. Entendimento e compreensão, apreensão e análise seriam igualadas a um só movimento, cujo conteúdo poderia ser expresso na prática contida apenas no primeiro termo, o do entendimento. O conhecimento sobre a realidade seria caracterizado como o simples ato de apreensão das características imediatas do objeto empírico; qualquer outra tentativa de superação dessa apreensão através da abstração poderia ser considerada um exercício especulativo que tentaria agregar ao objeto características que não lhe seriam imanentes (LUKÁCS, 1972: 3-7).
O irracionalismo se constitui, assim, numa ideologia negadora das categorias mais avançadas de compreensão da realidade, como resposta reacionária ao momento vivido na luta de classes. Esta conduta extrapolou os limites da fraseologia, constituindo-se na visão de mundo fascista[9].
A derrota do fascismo significou também a derrota do irracionalismo, mas não por muito tempo. Se compararmos a descrição sobre o irracionalismo feita a pouco com as formulações ditas pós-modernas, é possível encontrarmos muitos pontos em comum. Está presente na teoria pós-moderna, de maneira generalizada, uma crítica à racionalidade moderna muito parecida com aquela encontrada no irracionalismo da primeira metade do século passado, marcada pela negação da objetividade e por uma supervalorização da subjetividade, como se ocorresse uma espécie de identificação entre sujeito e objeto do saber. Com isso, a noção de verdade, vinculada sempre a algo exterior ao indivíduo e como resultado de um processo causal determinado, passa a ser compreendida pluralmente, comportando as mais variadas interpretações sobre um determinado fenômeno. E, assim, para alguns de seus teóricos, deixaria de fazer sentido o suposto monopólio da ciência na determinação do conhecimento. Se existisse alguma forma de saber que conseguisse expressar tamanha pluralidade de interpretações a ponto de ser referência geral do saber, este seria o senso comum. E o seria devido a sua forma de proceder, baseado sempre na imediaticidade, na localidade imanente do saber, algo supostamente distinto dos complexos exercícios abstratos e totalizantes do saber científico moderno.[10]
Há, portanto, traços de irracionalismo no pensamento pós-moderno, evidenciando uma conexão mínima entre os fenômenos. E mais uma vez, a chave para a compreensão das conexões entre os desdobramentos históricos e as formulações pós-modernas encontra-se na própria observação do devir histórico. Especificamente, na observação do desenrolar da opção pela linha de menor resistência do capital ao nível ideológico e suas consequências no próprio campo da esquerda, em grande medida no marxismo, pois que, nesse campo, começavam a surgir, já na época anterior à crise estrutural e à opção escapista, questionamentos gerais de sua ideologia e da efetivação concreta de seu projeto.
 
3. A cristalização do pós-moderno e o novo irracionalismo
Nos anos de 1960, devido à intensificação do consumo e da retomada industrial europeia na reconstrução do pós-guerra, críticas constantes ao pensamento de esquerda, especialmente o marxista, foram feitas. Nestas, vigorou o argumento de que a falha na efetivação do projeto socialista se dera por uma incapacidade que lhe era inerente, em grande medida relacionada à incapacidade da teoria marxista em compreender as relações existentes entre sujeito e história (ANDERSON, 1987: 32-33).
Este movimento de busca pela compreensão do lugar do sujeito na história aflorou com intensidade no período, ocorrendo também no campo da chamada filosofia burguesa. A ascensão do capital não impediu a continuidade de suas críticas, entretanto, a matriz filosófica que embasava essa postura sofreu modificações. Configura-se uma tendência de valorização da função do sujeito perante a coletividade. No entanto, os dois vieses, o burguês e o marxista, desdobraram-se distintamente[11].
O importante a ser destacado é que os anos de 1960 tornaram-se um marco na batalha das ideias. O pensamento desse período representa mais uma tentativa de superação dos conflitos de classe. De um lado, uma tentativa de reanimar o pensamento vinculado à “destruição da razão”, de outro, uma tentativa de manter o pensamento revolucionário, mas alterando aquilo que lhe era essencial: a concepção da processualidade histórica orientada pela atividade humana. Trata-se, como Coutinho (2010) nominou, de uma expressão da “miséria da razão”. O pensamento de esquerda deixa sua matriz original de lado e passa a fundamentar-se ideologicamente em formas de entendimento idealistas.
O pensamento dos anos de 1960 não se limita à sua década. Dada à crise do capitalismo já na década seguinte, o debate sobre a relação entre sujeito e história em um período de grandes enfrentamentos políticos não poderia deixar de existir. O grande destaque ideológico desse período, dos anos de 1970 até o início dos anos de 1990, é o debate sobre a derrocada do socialismo e a transformação do capitalismo. Pautado pelos novos pressupostos teóricos surgidos na década de 1960, vários pesquisadores passam a observar e analisar as transformações em curso no capitalismo, questionando o ideário marxista como um todo, inclusive o projeto socialista. Estes estavam ligados ao debate sobre o fim da centralidade do trabalho[12].
Esse debate compartilha todas as formulações do novo pensamento de esquerda que surgia vinculado ao uso da linguagem, da atenuação da noção de verdade (supostamente libertada de seus condicionantes objetivos), e também da compreensão de uma história sem processualidade, marcada por momentos estanques, sem condicionantes causais ligados a ela. Considerando ainda o fato de que a crise do marxismo foi desencadeada em um período histórico em que se buscava constituir um pensamento de terceira via, é possível afirmar que todo esse movimento ideológico representa uma expressão da opção, no embate entre as classes sociais antagônicas do capitalismo nos anos de 1960 a 1980, pela linha de menor resistência do capital. Ele expressa uma ação interessante à classe dominante em garantir a manutenção de sua condição de dominação sobre as outras classes, mas com uma característica especial: ela modifica aspectos da realidade que não resultam numa transformação essencial desta. Muda-se o regime de produção para manter a condição de extração de mais-valia própria ao processo produtivo capitalista, acrescentando ainda um fator ideológico de desvinculação. E esse fator ideológico também é formulado nos moldes da linha de menor resistência, ao basear suas formulações sobre o real através da crítica contra as antigas formulações, conservadoras e combativas, e da adoção de uma argumentação que esconde a raiz do problema. Neste sentido, atribuindo a crise ao conjunto da modernidade, como fazem os teóricos do fim da centralidade do trabalho, acena-se ao caminho que levou o debate acerca da centralidade do trabalho ao questionamento do projeto moderno.
Esta negação dos valores da centralidade do trabalho abre outro ponto de convergência com a teoria pós-moderna, que é o da negação do marxismo enquanto teoria revolucionária. Seja enquanto materialização por excelência dos procedimentos clássicos da sociologia e do pensamento político clássico adotado pelos trabalhadores nas formas menos atuais do capitalismo, tal como sugerem os teóricos que acreditam na descentralização da categoria trabalho, seja como manifestação limítrofe do pensamento moderno que, mesmo possuindo ímpeto revolucionário, não poderia cumprir seu projeto por estar fundamentado em uma lógica que lhe mantém preso às análises exclusivamente econômicas – como a discussão sobre o pós-moderno lhe apresenta – o marxismo não passaria de um antiquado relicário teórico. Como exemplo dessa postura, cita-se o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2010), que assume posturas desse tipo em diversos debates, classificando o marxismo como uma corrente teórica que expressaria o máximo do pensamento moderno, mas que ao mesmo tempo não deixaria de ser expressão deste, contendo em si todos os supostos equívocos de um pensamento ignorante à subjetividade, tornando-se, de certa forma, totalitário, indiferente a outras formas de saber. Tratar-se-ia de uma forma de saber indolente, comprometida com a manutenção do estado de coisas de seu tempo, mesmo que intencionalmente almeje o contrário.
Nesse momento é possível traçar a hipótese de retomada do pensamento irracionalista como base característica da opção pela linha de menor resistência do capital no campo ideológico. O irracionalismo ressurgiria, pois que suas características permitem que ele se enquadre perfeitamente na necessidade de constituição de um pensamento que mude para manter tudo como esta. Ele é imediatista, subjetivista, unilateralista, retoricamente eclético e anistoricista. Portanto, não é capaz de forjar formulações ideais que correspondam à processualidade histórica, captando de maneira bastante deturpada alguns fragmentos dessa realidade, mas é capaz de apresentá-los de maneira bastante convincente, pois apela para a valorização individual de entendimento do mundo e de um modo egoísta de intervenção neste, por mais que se organize coletivamente. O irracionalismo exerce uma função específica em todo o processo, o de enfraquecer ideologicamente o pensamento de esquerda e facilitar o estabelecimento das mudanças que mantêm o capitalismo como modo de produção hegemônico.
É importante ressaltar que o irracionalismo só poderia ressurgir, para além da necessidade imposta pelo momento para a manutenção do capitalismo, por ele ter se mantido latente durante o período do final da Segunda Grande Guerra Mundial até a década de 1960. E isso ocorre porque o pensamento de esquerda não é capaz de tornar-se dominante. É justamente no questionamento do pensamento de esquerda, da percepção da não consolidação do projeto socialista, que o novo irracionalismo irrompe – inclusive dentro da própria esquerda.
A expansão e a consolidação do irracionalismo como resposta ideológica aos problemas do capital e da luta de classes, não se restringe à esfera da filosofia. Se se trata de um fenômeno ideológico, com a função de modificar as relações entre os seres humanos, sua tendência é cristalizar-se, desdobrando-se numa forma de comportamento corrente na vida cotidiana, gerando ações que confirmem os pressupostos que lhes deram origem. Em outras palavras, a tendência dos desdobramentos do irracionalismo em sua nova etapa é sua cristalização em uma visão de mundo bem definida. Essa tendência se confirmaria com o surgimento da visão social de mundo pós-moderna.
 
Considerações finais
O pensamento pós-moderno, mais do que reafirmar os pressupostos originados no período de retorno do irracionalismo, também assume uma agenda política determinada. Essa agenda se faz pela definição de uma nova cultura: a do senso-comum. Este seria a fonte primordial de conhecimento, adotado como método de compreensão da realidade, e da valorização de toda a perspectiva possível através do diálogo entre elas como ação política central. Deste modo, o pós-moderno, como o próprio sufixo aponta, se coloca como alternativa negativa do pensamento moderno, o que significa dizer que ele nega tanto a visão de mundo liberal-conservadora quanto a socialista-revolucionária, aparentemente portadoras de características essenciais semelhantes.
Esse fenômeno de instituição de uma nova visão de mundo completa a cristalização do irracionalismo como a alternativa da linha de menor resistência do capital. A crise do capitalismo, o movimento dessa crise, cuja essência parece se confirmar como um fenômeno estrutural, e a agudização das lutas de classes decorrentes dessa crise são deslocadas dessas discussões teóricas e de suas consequentes derivações políticas. As variações secundárias, as falsas questões e a elaboração de condutas políticas não radicais surgem dos estreitos limites de compreensão de mundo oferecidos pelo pensamento irracionalista, ao mesmo tempo em que compõem a função de manter as condições de reprodução da vida favoráveis à classe dominante, favoráveis à burguesia.
As manifestações mais recentes da teoria pós-moderna se apresentam como frutos maduros dessa crise. Elas representam a aproximação do pensamento de esquerda com ideais conservadores, forjando um conjunto teórico completamente reconfigurado, que acaba por se contrapor a sua intenção original. Geralmente fundamentadas na centralidade da linguagem, essas teorias se afastam da avaliação dos aspectos econômicos da realidade em favorecimento da unilateralização dos aspectos culturais. Um tipo de pensamento que pretende combater a indolência da razão moderna – expressa, segundo estas mesmas teorias, no etnocentrismo – não pode cometer o mesmo equívoco, desprezando de antemão um tipo de conhecimento que, por mais que se considere obsoleto em suas respostas e dogmático em sua defesa, não deixa de ser expressão humana consciente numa tentativa de intervenção na realidade. Aceitar os procedimentos pós-modernos significa negar outro conjunto de teorias, caracterizando um conflito de ideias. Um pensamento heterogêneo, plural, pode ser tão dogmático quanto um pensamento considerado homogêneo, unitário. E o é, neste caso em específico, porque não é capaz de reconhecer que boa parte, senão todos, os seus pressupostos estão fundamentados numa forma de saber acrítica, incapaz, portanto, de reconhecer os fundamentos das relações sociais, incluindo aqueles que lhe deram substância. Os pensadores pós-modernos que se colocam no campo da transformação social, mais do que estimuladores de uma forma de saber que não é capaz de reconhecer os próprios fundamentos históricos, são vítimas dessa mesma lógica. Eis a condição interessante vivida por todos eles: por mais bem-intencionados que sejam, isso não lhes garante a elaboração de uma solução eficaz ao problema. Como já afirmado certa vez, são os homens que fazem a história, mas não da maneira como bem-entendem.
 
Bibliografia
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[1] Professor na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e doutorando no Programa em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Contato: [email protected].
[2] “Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que dá respostas” (LUKÁCS, 1978: 5). Aqui, Lukács ressalta que a condição humana possível uma característica ontologicamente social, distinta das outras formas de existência (inorgânica e orgânica), dada a particularidade da categoria trabalho. Esta seria compreendida como a ação de transformação da natureza para a satisfação das necessidades do ser, sempre mediada pela consciência.
[3] A compreensão da ação humana como intervenção na realidade, dada a sua condição ontológica social, identifica dois momentos distintos, mas inseparáveis: o da objetivação, quando uma ideia pré-idealizada é, de acordo com uma gama de saberes adquiridos pela consciência, posta em prática na realidade, concretizando-se; e o da exteriorização, quando se relaciona os elementos apreensíveis da realidade, incluindo os próprios atos do ser, na consciência. Agir e pensar sobre o agir são dois atos inseparáveis e próprios da condição humana, mesmo que ocorram com intensidades distintas de indivíduo para indivíduo.
[4] Como lembra Lukács (1978: 9): “Tais posições são extremamente importantes para que a atividade produtiva possa se manter e reproduzir. Isto porque as formações sociais se desenvolvem a tal ponto que o modo de manifestar da necessidade cada vez mais se caracteriza por orientar, de qualquer modo, os indivíduos a tomarem ou não determinadas posições teleológicas. As posições teleológicas secundárias tornam-se cada vez mais decisivas no desenvolvimento social que, “com a diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica se torna a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama ideologia”.
[5] A pesquisa em questão foi realizada entre os anos de 2009 e 2012, como forma de obtenção do título de mestre junto ao Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Unesp de Marília. Com o título “Os descaminhos da bem-aventurança: um estudo sobre a origem e os desdobramentos da concepção de crise paradigmática de Boaventura de Sousa Santos”, orientado pela Profª. Drª. Fátima Aparecida Cabral, e com o auxílio financeiro da Capes, a pesquisa traçou como objetivo central a avaliação da concepção do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos sobre a crise paradigmática sociológica enquanto ideologia, isto é, enquanto ação orientada para a resolução de conflitos sociais. Isto exigiu uma análise que, além do aspecto gnosiológico, tratasse de maneira articulada os parâmetros socioeconômicos e dos principais movimentos políticos e científicos envolvidos no momento histórico de sua produção e reprodução, apurando, assim, o seu grau de compreensão da realidade.
[6] A ideia de uma linha de menor resistência é utilizada na argumentação de Mèszàros para destacar aspectos importantes da chamada “ordem sociometabólica do capital”. O reconhecimento de que existem forças alheias à vontade humana, possuidoras de uma legalidade própria, não pode significar a negação da afirmativa de que ainda são os seres humanos que fazem a sua história. A humanidade não realiza seu caminho, seja no sentido de tornar-se cada vez mais complexo enquanto gênero, seja para sua própria destruição, sem a constante resolução de problemas de toda a ordem através de intervenções diretas em sua relação com a natureza e consigo mesma. E essas ações só podem ocorrer com um mínimo de consciência sobre a conjuntura. Seja o conhecimento desta consciência limitado ou de tendências universalizantes, o importante é que toda a ação é o desdobramento de uma ideia que se possui de uma situação. Ideias são elementos importantes nas relações sociais, e não podem deixar de ser objeto de conflito. Quem é capaz de transformar ideais a seu favor tem maiores chances de levar adiante os planos para a satisfação de suas necessidades. A resposta do tipo da linha de menor resistência se caracterizaria pela adoção de uma ideologia e de uma prática por mudanças na ordem atual incapazes de serem radicais, embora aparentemente demonstrem o contrário.
[7] Aqui cabe a referência a Giuseppe Tomasi di Lampedusa, escritor italiano da virada do século XIX ao XX, que descreve justamente o período do Risorgimento, da unificação nacional italiana que definitivamente insere a economia capitalista de maneira predominante naquele país. Em sua obra mais famosa, O leopardo, Lampedusa descreve esse processo, focando especificamente na alteração na configuração do conflito de classes, onde a aristocracia decadente precisa ceder espaço à burguesia para manter minimamente seu status e seu controle social. É famosa a expressão da obra: “Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.” (LAMPEDUSA, 2003: 42).
[8] O conceito de decadência ideológica, elaborado por Lukács designa a crise da produção intelectual da burguesia após 1848. Para Lukács (2010: 53), com a evolução do pensamento social burguês, há a liquidação das tentativas anteriormente realizadas por seus ideólogos de maior notabilidade em compreender as verdadeiras forças motrizes da sociedade, sem que houvesse medo das consequências do esclarecimento das contradições que sustentassem seu modo de vida. No momento de decadência, aconteceria justamente o contrário: uma fuga da exposição das contradições através de uma perspectiva pseudo-histórica construída e interpretada superficialmente.
[9] Esta tese será defendida por Lukács (1972).
[10] Sobre a postura pós-moderna que valoriza o senso-comum em detrimento da ciência, podemos citar Lyotard (2009), Giddens (1991) e Santos (1995). Mas é importante salientar que, embora compartilhem desse ponto, existem diferenças significativas entre esses autores, com relação a certas tomadas de posição e na maneira como se aborda a questão da chamada “crise da modernidade”, mote de qualquer discussão dentro dos marcos do pós-modernismo.
[11] Sobre essa distinção, cabe conferir o interessante ensaio escrito por Ferry & Renaut (1988).
[12] São algumas referências ao debate as obras de Offe (1994); Habermas (1968), Gorz (1982) e Kurz (1993).

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