24/04/2024

A atualidade da crítica lukacsiana ao Direito

Por

 
Vitor Sartori*
 
Introdução
Não se pode negar que a defesa de direitos conforma parte importante da luta travada na vida cotidiana daqueles que se opõem à sociedade atual, marcada por desigualdades e disparidades sociais. Deixar de lado tal fato seria eclipsar as mediações que se interpõem entre a atividade efetivamente revolucionária (que busca suprimir o capital) e atividade diuturna dos homens (ligada, em essência, embora de modo sempre contraditório, às determinações da sociedade civil-burguesa). É bom deixar claro, assim, que não há, em verdade, uma muralha entre a cotidianidade e a transformação consciente das relações sociais; ao mesmo tempo, porém, é preciso levar em conta desde já que a atividade transformadora real e efetiva tem lugar somente passando por rupturas e saltos qualitativos quanto à cotidianidade alienada do capital. Neste pequeno texto, procuraremos tratar do papel dúbio que desempenha o Direito nas lutas contra o domínio abrangente do capital e da reprodução diuturna da sociedade capitalista.
 
Direito e capital em Marx e Lukács
Marx havia dito que “o Direito nada mais é que o reconhecimento oficial do fato”. (MARX, 2004, p. 84) Porém, aparentemente, tratar do fenômeno jurídico nesses termos poderia ser essencialmente problemático: não haveria como a esfera jurídica ter qualquer influência na realidade social; ela somente traria, post festum, uma legitimidade oficializada pelo Estado. Portanto, em um tratamento cuidadoso, é preciso abordar a questão mostrando de modo consistente o significado da afirmação marxiana. De início pode ser elucidativo ver o que diz Lukács sobre a temática:
 
A formulação “fato” e seu “reconhecimento” exprime com exatidão a prioridade ontológica do econômico: o Direito é uma forma específica de reflexo e reprodução na consciência daquilo que acontece de fato na vida econômica. O termo reconhecimento especifica, posteriormente, a peculiaridade desta reprodução colocando em primeiro plano o caráter não puramente teórico, contemplativo, mas antes de tudo prático. (LUKÁCS, 1981, p. XCIX)
 
            Lukács demonstra em sua ontologia que o Direito é uma espécie de pôr teleológico o qual traz consigo mediações e complexos sociais que somente desenvolvem-se no transcorrer da história. Trata-se de uma “forma específica de reflexo” na medida em que aqueles que operam por meio do complexo parcial que conforma o Direito apreendem (de modo tendencialmente “técnico-jurídico”) os nexos objetivos presentes na realidade social e buscam atuar por meio desses. Ou seja, ao mesmo tempo em que há prioridade ontológica do econômico, a esfera jurídica conforma-se como essencial a uma determinada formação social. Ela não é, nem pode ser, o momento preponderante na reprodução do ser social. Mas, sem ela, essa mesma reprodução mostra-se impossível depois de determinado ponto do desenvolvimento social.[1] Assim, certamente, com o Direito como fenômeno de destaque, tem-se uma sociedade amparada na divisão do trabalho que só se torna efetivamente divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho material.” (MARX; ENGELS, 2002, p. 26) No entanto, é sempre preciso ter em mente que trabalho material e o trabalho intelectual (como aquele do jurista) nunca podem ser dissociados, até mesmo porque a conformação objetiva da própria realidade efetiva passa obrigatoriamente pela produção social, que é “o ponto de partida efetivo, [...] o ato em que todo o processo transcorre novamente.” (MARX, 2011, p. 49)
Daí, o Direito ser o “reconhecimento” de nexos objetivos presentes no próprio real, daí ele sempre trazer consigo, não um dever-ser incondicionado, mas um imperativo que não prescinde da objetividade da atividade econômico-social. A esfera jurídica certamente tem uma autonomia relativa; porém, nunca pode ser dissociada dos nexos objetivos presentes no próprio ser social. Tratar do Direito enquanto um reflexo, pois, implica considerar sua função no ser-propriamente-assim de determinada sociedade. E isso é essencial na medida em que – efetivamente - a atividade jurídica considerada em sua peculiaridade e especificidade (Cf. SARTORI, 2010) está ligada a sociedades em que a universalidade amparada na especificidade do gênero humano em-si já está conformada: trata-se de um complexo social que pressupõe os homens relacionados objetivamente enquanto gênero. [2] Ou seja, a universalidade da forma jurídica é, em verdade, um reflexo da universalização do próprio capital, sendo preciso enxergar a potencial abrangência de direitos como algo inseparável da expansão da circulação de mercadorias amparada na relação-capital. No que, sobre esse aspecto, há uma passagem de O capital, que precisa ser levada em conta ao tratar do tema:
 
As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar a vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. As mercadorias são coisas e, consequentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar a violência, em outras palavras, tomá-las. Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto, apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. (MARX, 1988, p. 79)
 
Da passagem resta uma inseparável ligação entre a atividade econômica diuturna calcada na relação-capital, a violência (não há, pois, uma antinomia entre o mercado e o uso da força), a conformação daquilo que os juristas chamam de “sujeito de direitos” e a vontade reconhecida oficialmente. Tem-se algo mais, porém: na mais prosaica das práticas da sociedade capitalista (a troca de mercadorias) opera-se efetivamente por meio de categorias jurídicas – como a propriedade privada e o contrato - e as categorias que compõem as determinações do ser da esfera jurídica não são meros construtos mais ou menos arbitrários, “as categorias são formas de ser, determinações de existência.” (MARX, 1993, p. 106) Portanto, se os homens não percebem necessariamente que “o conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma”, isso não se deve a um mero engodo; antes, isso se dá na medida em que em sua cotidianidade mesma ele aparece como um mero guardião de mercadorias, ele aparece dominado por uma potência estranha cuja base, em verdade, está na reposição constante da relação-capital, reposição essa reconhecida juridicamente.
E mais: na medida mesma em que se tem o uso da violência, mediante o Direito, ela é eclipsada e aparece como mero resguardo de uma ordem social, em essência, inquestionável. Tem-se, pois, a prioridade ontológica do econômico também na medida em que o terreno típico das categorias jurídicas é aquele da circulação de mercadorias, terreno esse em que a totalização do domínio do capital se impõe sobre a personalidade dos homens, essa última aparecendo nessa esfera como efetivamente aviltada. [3] O guardião de mercadorias, o sujeito de direitos e a personalidade aviltada do homem do capitalismo são fruto de um mesmo processo, sendo, por isso, inaceitável “relegar o fato apenas ao jurídico ‘terreno do direito’” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 20) Em verdade, pois, uma crítica ao capital também é uma crítica ao Direito: o “fato” tem uma existência que não se resume à dimensão jurídica, remetendo à materialidade da sociedade capitalista e às relações sociais desenvolvidas nessa última.
Em verdade, o próprio cotidiano é “um produto da divisão capitalista do trabalho” (LUKÁCS, 1966, p. 45) [4] de tal feita que um cotidiano alienado é fruto de uma sociabilidade amparada em imperativos estranhos ao controle consciente do homem; é fruto de relações e mediações sociais que se voltam contra a efetivação das potencialidades humanas. Na passagem de Marx, assim, resta que a mediação jurídica, inclusive, relaciona-se com a configuração objetiva dos homens enquanto meros guardiões de mercadorias, enquanto proprietários e personificações de relações sociais estranhas. O modo mesmo pelo qual a esfera jurídica é efetiva com o capitalismo já consolidado passa pelo estranhamento e pelo aviltamento da personalidade dos homens.
É verdade que, outrora, o Direito já cumpriu um papel progressista, sobretudo, quando se olha a questão tendo em vista a supressão dos privilégios medievais e o papel do Direito natural nas revoluções políticas burguesas. No entanto, é sempre preciso ressaltar que esse papel foi desempenhado em correlação necessária com a emergência e consolidação da sociedade calcada na relação-capital.[5] Enquanto o capital foi uma força progressista, a esfera jurídica trouxe consigo a expressão das ilusões heroicas da burguesia. No entanto, o fato de o Direito passar a se ligar muito mais à normalização de relações já postas que à efetivação de relações sociais presentes em-si no ser do capital faz com que haja um salto qualitativo. E isso é bem apontado por Lukács:
 
Quanto mais o Direito se torna regulador normal e prosaico da vida cotidiana, tanto mais vai, em geral, desaparecendo o páthos que o havia envolto no período de sua formação, e tanto mais força adquirem nele os elementos manipulatórios do positivismo. (LUKÁCS, 1981, p. XCVII)
 
Principalmente na figura do jusnaturalismo, o Direito pôde ter uma função concreta na realidade social na medida em que se colocava contra os privilégios feudais e trazia consigo a universalidade da especificidade do gênero humano em-si, resultado da emergência do mercado mundial, e ligada à generalidade da noção de igualdade que permeia o campo jurídico. Relacionada aos rumos do capital, pois, a esfera jurídica não foi essencialmente conservadora, sendo o phátos de seu período de formação, em verdade, revolucionário. A igualdade, por exemplo, um brado de guerra da burguesia contra a antiga ordem, aparece claramente relacionada com o Direito; isso se dá também com a liberdade contratual, indissociável da proclamação de direitos do homem. No entanto, o outro lado da liberdade e da igualdade albergadas pela esfera é justamente a circulação de mercadorias subsumida aos imperativos do capital. E mais, em verdade, a base real dessa igualdade e dessa liberdade são uma sociedade em que se tem “trabalhadores livres no duplo sentido, porque não pertencem imediatamente aos meios de produção [...], nem o meio de produção lhes pertence” (MARX, 1988 b, p. 252). Assim, invocar a igualdade e a liberdade por meio da esfera jurídica é trazer à tona a conformação objetiva da própria relação-capital, e isso não pode ser esquecido.
Se em um primeiro momento isso se deu com a busca de legislações justas que procurassem a igualdade real entre os homens, com o desenvolvimento da sociedade civil-burguesa, as coisas mudam substancialmente.[6] Primeiramente, em meio à emergência da burguesia enquanto classe hegemônica, a universalidade do cidadão parecia poder se contrapor ao particularismo da sociedade nascente e aos antagonismos classistas inerentes a essa sociedade; no entanto, o phátos revolucionário que envolve o Direito liga-se somente ao seu período de formação (que se confunde com o próprio período de consolidação do capital como mediação social preponderante na sociedade).[7] O ideário cidadão, que traz consigo a universalidade da peculiaridade do gênero humano em-si, é inseparável do capital e das determinações trazidas com esse, de tal feita que a universalidade da lei e da cidadania passa a conviver com a aceitação do particularismo daquela sociedade que Hegel viu como “o espetáculo de devassidão bem como o da corrupção e da miséria” (HEGEL, 2003, p. 169), a sociedade civil-burguesa.
Assim, ao mesmo tempo em que há efetivamente uma universalidade a ser amparada pelo Direito, ela expressa a si mesma na medida em que pressupõem o particularismo do capital. Daí, em um primeiro momento, ter-se como proeminente a figura do legislador revolucionário, que, em confluência com a politicidade, busca reconciliar as contradições sociais; daí também, com a consolidação do domínio abrangente do capital, preponderar uma abordagem positivista em que a manipulação é essencial para que a generalidade da lei (e do domínio no qual ela se baseia) seja preservada. Nesse segundo momento, a figura central ao discurso jurídico passa a ser o próprio jurista (e não o legislador, que teria consigo a soberania popular, em teoria) o qual, de modo técnico-jurídico, procura, não a transformação consciente da realidade social, mas o reconhecimento oficial das contradições sociais. Não se tem a busca da supressão das contradições classistas, nem mesmo procura-se reconciliá-las politicamente; depois de determinado momento, o Direito somente reconhece oficialmente os fatos objetivamente conformados na realidade efetiva, mesmo que isso não se dê de modo simplesmente passivo e mesmo que embates específicos no campo do Direito possam ser importantes nas lutas cotidianas, lutas essas que podem expressar demandas políticas das classes subalternas em determinados momentos específicos.
 
Direito e socialismo?
A abordagem positivista prepondera no Direito depois de certo ponto. Isso, claro, não significa que só haja filósofos do Direito positivistas; também não significa que o modo como opera o ser dessa esfera prescinda de elementos antes relacionados ao jusnaturalismo. Em verdade, há certa tensão entre a postulação de um dever-ser pela esfera jurídica e o ser-propriamente-assim da sociedade existente. Essa tensão, no entanto, decorre de fatores essencialmente sociais, das contradições mesmas que perpassam o grau de desenvolvimento das relações de produção e das forças produtivas, e não do modo como se estruturam as abordagens técnico-jurídicas. [8] Pode-se considerar importante tratar das abordagens dos juristas, abordagens essas que podem ser mais ou menos progressistas; porém, colocar esperanças nessas abordagens significa simultaneamente colocar como uma virtude aquilo que verdadeiramente é um vício: a centralidade do judiciário e da prática jurídica é expressão de um processo em que, em primeiro lugar, a democracia burguesa perde sua força – quando se trata do Direito, o justo não tem em vista de modo primordial as instâncias teoricamente representativas da soberania popular, por exemplo; a questão, porém, é mais delicada na medida em que ao se dar enfoque no papel exercido pelos juristas tem-se um elogio à divisão do trabalho hierarquizada que é efetiva sob o domínio do capital. Os imperativos da lei, pois, passam pela interpretação dos juristas de modo que não é a mobilização popular que leva diretamente à modificação do Direito, mas os critérios técnico-jurídicos, que revestem um conteúdo político-social de modo a torna-lo manipulável juridicamente. Apostar em um jurista crítico, quando se trata da transformação social, significa apostar na centralidade da forma jurídica, e não do conteúdo político-social, o qual só pode se afirmar na superação da divisão do trabalho hierárquica colocada pelo capital.
Não se pode negligenciar o papel que a mobilização popular exerce ao pressionar o poder judiciário (e o poder legislativo) no sentido do reconhecimento de demandas relacionadas aos trabalhadores, por exemplo. Porém, é preciso ficar atento ao fato de que, se há conquistas de direitos, elas podem ser importantes, mas não se devem ao funcionamento do Direito positivo; em verdade, elas são conquistas que se dão apesar desse funcionamento. Ao mesmo tempo em que não se pode negar o papel que o reconhecimento e a luta pelos direitos têm na ordem do capital, é preciso sempre, e de modo resoluto – segundo Lukács - “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica.” (LUKÁCS, 2007, p. 57) Não é, pois, buscando uma esfera jurídica composta por juristas, no limite, socialistas que teríamos um verdadeiro avanço na luta anticapitalista. [9] É pela crítica ao próprio Direito (inseparável da crítica àquilo que lhe dá base) que isso pode ocorrer, inclusive, dando ensejo para que a arma da crítica se volte à práxis revolucionária. Não se pode, em hipótese alguma, permanecer no “terreno do Direito”. Como bem disse Lukács:
 
O funcionamento do Direito positivo se apoia, portanto, sobre o seguinte método: manipular um turbilhão de contradições de modo tal que dele surja um sistema, não só unitário, mas também capaz de regular praticamente, tendendo ao ótimo, o contraditório acontecer social, de sempre se mover com elasticidade entre polos antinômicos (por exemplo, violência pura e vontade persuadida que se aproxima da moral), a fim de sempre produzir — no curso de contínuas alterações do equilíbrio no interior de um domínio de classe em lenta ou rápida transformação — as decisões e os estímulos às praticas sociais mais favoráveis àquela sociedade. (LUKÁCS, 1981, p. CX)
 
A manipulação positivista não é algo acidental ao ser do Direito, ela é constitutiva da esfera depois de determinado momento (em verdade, aquele da decadência ideológica da burguesia, sendo essa manipulação potencializada com o desenvolvimento posterior da sociedade civil-burguesa). Em uma sociedade em que a demanda por direitos é levada ao judiciário e em que é central a prática técnico-jurídica, pode-se mesmo apelar à moral e àquilo que fora importante no período de formação do Direito; no entanto, com isso, as contradições sociais da sociedade capitalistas figuram como pano de fundo de tal maneira que o conteúdo político-social antagônico é somente reconhecido (e não reconciliado ou suprimido) de modo homogeinizador e idealista, como um mero dever-ser. [10] Tal homogeinização toma forma na medida em que, no plano do Direito positivo, aparentemente, não se tem efetivamente classes sociais com interesses antagônicos, mas sujeitos de direitos, indivíduos atomizados e relacionados igual e livremente na forma jurídica. A luta por direitos (um momento da luta de classes sob o capitalismo) é importante, não se pode negar. Mas expressa uma situação em que sequer o ideal (primeiramente burguês e depois socialdemocrata) de reconciliação das contradições sociais é realizável. Trata-se do reconhecimento de algo já realizado à revelia dos imperativos do capital e da forma jurídica que os acompanha.
O Direito, assim, é o reconhecimento, oficial, técnico-jurídico, de fatos constitutivos do ser-propriamente-assim de determinada sociedade. Ele não é um catalizador da mudança social: se a luta por direitos pode ter importância na preparação da supressão do capital, isso não se deve à esfera jurídica, à hierarquia e à divisão do trabalho que acompanham essa – as conquistas ocorrem apesar do Direito e de sua conformação específica, mesmo que passem por ela. Por isso, não se pode deixar iludir por um pretenso caráter revolucionário ou contestador do Direito positivo.
No que Lukács traz algo de grande importância na Estética:
 
Nenhuma lei, artigo de lei, etc., é possível sem uma particularização que o determine, pelo mero fato de que o ponto final de toda a jurisdição é a aplicação ao caso singular. Mas isso não contradiz a supremacia categorial da generalidade neste terreno. Pois os princípios que o determinam têm que expressar-se em uma forma geral para manifestar a essência do Direito; a particularidade e a singularidade são em parte objetos em parte meios de execução desse domínio da generalidade. (LUKÁCS, 1966 b, p. 222)
 
A lei não é efetiva sem a sua aplicação, quanto a isso não há dúvidas. Isso expressa o fato de o posicionamento técnico-jurídico ser inseparável do ser do Direito. Novamente, porém, há de se destacar que, mesmo passando pelo momento decisório necessariamente, o ser da esfera jurídica não o tem por base. Antes, a base real do complexo jurídico está na generalidade (expressa na lei) conformada de acordo com a especificidade do gênero humano em-si, com a pré-história do gênero humano, com a história da luta de classes desenvolvida com a abrangência do mercado mundial subsumido ao capital. A base real sobre a qual opera o Direito positivo é a objetividade de uma sociedade calcada no conflito classista, a sociedade civil-burguesa.
O Direito, pois, é um fenômeno histórico-social também ao passo que não é pensável para além das sociedades relacionadas à história da luta de classes. Por mais que possa haver eventualmente juristas críticos e, no limite, socialistas ou comunistas, o ser da esfera jurídica tem uma existência objetiva e pressupõe as determinações do capital. Para que se coloque nos termos de István Mészáros, o Direito é impensável “para além do capital” (Cf. MÉSZÁROS, 2002), sendo preciso “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica” para que as práticas e as lutas cotidianas possam remeter à supressão da relação-capital. Como mencionado, não há uma muralha entre a cotidianidade e a radicalidade, porém, é preciso uma ruptura e um salto qualitativo, que se conformam ultrapassando o “terreno do Direito”. Se a particularização que determina a lei pode, em certas circunstâncias, fazer parte do percurso das lutas pela emancipação humana, ela é algo a ser superado, é parte daquilo que, enquanto socialistas, nos opomos.
 
A atualidade da crítica lukacsiana ao Direito
No contexto atual, em que uma via institucionalizada para a crítica ao neoliberalismo está em pauta em alguns setores da esquerda (principalmente tendo em vista o assim chamado projeto bolivariano), e em que o stalinismo não oferece qualquer alternativa, a afirmação do socialismo passa necessariamente pela crítica ao próprio capital, e, com ele, ao Direito. A institucionalização das lutas sociais e a busca por direitos pode ser importante em alguns momentos, no entanto, nem de perto é suficiente no enfrentamento dos desafios colocados no século XXI. Essa institucionalização vem, ao final, a reconhecer os conflitos sociais somente. Nesse sentido, não dá um passo decisivo na medida em que não pode buscar efetivamente superar as contradições que marcam a sociedade civil-burguesa. Antes, com a mediação jurídica, está-se amparado nessas mesmas, e na divisão do trabalho hierarquizada por meio do qual os juristas (mesmo os juristas críticos) operam. Nunca se pode, pois, perder de vista “a grande perspectiva da revolução socialista: a supressão da divisão do trabalho e a formação do homem universal”. (LUKÁCS, 2010 b, p. 42) A crítica ao capital é a crítica à separação entre o trabalhador e o meio de produção, entre o planejamento e a execução da atividade social, e entre o cidadão e o burguês. Por isso, questões que alguns na esquerda julgam superadas ainda são de grande importância; são realmente decisivas.
 
Eu diria que a autoatividade, a autogestão operária é uma das questões mais importantes para o socialismo. Para mim, é incorreto quando muita gente opõe-se ao stalinismo com uma democracia em abstrato, mais precisamente, com uma democracia burguesa. Marx descreveu a estrutura geral da democracia burguesa já nos anos de 1840; ela é construída na antítese entre o idealismo do cidadão e o materialismo do burguês, e o inevitável resultado do crescimento e desenvolvimento do capitalismo é que o burguês fica no topo e o idealismo do cidadão torna-se seu servo. Em contraste, a essência do desenvolvimento socialista - que começou com a Comuna de Paris e continuou com duas Revoluções Russas – é conhecido por um nome: conselhos de trabalhadores. Para expressar isso no plano teórico nós podemos dizer se tratar da democracia da vida cotidiana. (LUKÁCS, 1970 b, p. 41)
 
Ao se ter em mente a questão do socialismo, pois, é ainda de grande importância partir da estrutura produtiva da sociedade. Sendo a produção “o ponto de partida efetivo, [...] o ato em que todo o processo transcorre novamente”, isso é essencial. Não se pode simplesmente estipular um socialismo de novo tipo (se comparado àquilo que foi chamado de socialismo no século XX) sem que se reafirme a necessidade da superação da sociedade em que os trabalhadores aparecem “livres no duplo sentido, porque não pertencem imediatamente aos meios de produção [...], nem o meio de produção lhes pertence” – uma democracia socialista (uma questão ainda a ser tratada com cuidado pela esquerda) [11] não pode ser simplesmente o aperfeiçoamento da democracia burguesa. Trata-se do desenvolvimento de uma nova forma de sociabilidade, em que, com produtores livremente associados, as decisões relevantes ao acontecer social partem de baixo, não sendo as normas de convívio social albergadas por especialistas alheios aos auspícios populares (como ocorre com o Direito); não se tem, pois, uma vida cotidiana estranhada em que os imperativos sociais aparecem como forças estranhas, seja via mercado, seja via a imposição dos ditames da lei por meio da decisão de um corpo de juristas que acredita estar acima dos conflitos sociais.
É verdade que há normas de convívio a serem desenvolvidas, certamente. No entanto, isso não significa que elas sejam regras jurídicas, regras inseparáveis da imposição e da manutenção da especificidade do gênero humano em-si, da imposição de um télos estranho ao controle consciente e coletivo dos homens. Mesmo no que diz respeito à busca de uma sociedade emancipada, tem-se que o Direito e a democracia burguesa podem somente, e até certo ponto, ser importantes taticamente; aquilo que passa por elas, e as conquistas que advém da práxis que passa por essas esferas, podem significar progressos. No entanto, isso se dá apesar da democracia burguesa e do Direito, e não devido a eles. A prática contestadora, porém, não é simplesmente uma questão de consciência e de moral individuais; trata-se, em verdade, da questão do “que fazer?”, da questão que passa pela elaboração coletiva de uma contestação efetiva aos imperativos do capital. Lukács só deu os primeiros passos nesse sentido, dizendo que “pode-se afirmar que a ética constitui no sistema das práticas humanas um centro mediador entre o Direito puramente objetivo e a moralidade puramente subjetiva.” (LUKÁCS, 1966 b, p. 220) Em sua Ontologia do ser social, o marxista húngaro buscou elaborar as bases para uma ética, as bases de um sistema de práticas que fosse distinto da esfera jurídica e que pudesse realmente voltar-se contra as determinações que acompanham essa. A ética também não equivaleria simplesmente ao desenvolvimento de convicções pessoais e subjetivas – tratar-se-ia de algo distinto. Em verdade, estar-se-ia no campo das difíceis escolhas que se interpõem aos homens quando esses decidem tomar as rédeas da história em suas próprias mãos.
Quando isso se dá, é preciso que fique claro, não há qualquer legitimidade por parte de juristas (mesmo os progressistas, os críticos) para que se decida os rumos da sociedade. É preciso sempre “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica”; é necessário, pois, voltar-se à transformação objetiva das relações de produção, à supressão dos imperativos estranhos inerentes ao ser do capital. O Direito não é, pois, uma solução para as vicissitudes da sociedade civil-burguesa; antes, ele é parte do problema a ser resolvido. Sua conformação objetiva é inseparável da própria estrutura hierárquica do capital, sendo preciso, não um Direito crítico, mas uma crítica ao Direito (caso se queira questionar de modo racional e fundamentado o capitalismo). Contra os imperativos estranhos e contra o domínio de especialistas, não nos voltamos a um Direito alternativo, antes, trata-se da transformação consciente e coletiva da sociedade, de um “sistema de práticas humanas” que se desenvolve na revolução das relações sociais de produção.
 
Bibliografia
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________. Lukács e a crítica ontológica ao Direito. São Paulo: Cortez, 2010.


* USP
[1] “O ordenamento jurídico em sentido próprio nasce somente quando os interesses divergentes, que em si poderiam conduzir em cada caso singular para uma solução violenta, são reduzidos ao mesmo denominador jurídico, são homogeneizados no Direito. Este complexo, portanto, nasce quando se torna socialmente importante, assim como a sua superfluidade social é o veículo de sua extinção.” (LUKÁCS, 1981, p. CVII)
[2] “A humanidade existia originariamente em pequenas unidades e, a uma distância de 50 ou 100 quilômetros, uma unidade não sabia nada da outra. Apenas o capitalismo, com o mercado mundial, criou a base daquilo que hoje podemos denominar de humanidade. Hoje ela aparece de uma maneira puramente negativa.” (LUKÁCS, 2008, p. 345)
[3] “A tensão entre a posição teleológica do indivíduo e o Direito que influi sobre ela também provoca muitos efeitos nesse último. [...] Nos estágios muito primitivos, tal conflito tem importância mínima, em parte porque os preceitos sociais estão ainda em um grau de abstração muito baixo, em parte porque nas pequenas comunidades primitivas as pessoas se conhecem e, portanto, todas compreendem os motivos de cada um. Somente emergem estes problemas quando surgem sociedades maiores, cada vez mais socializadas, e a jurisdição e a jurisprudência se tornam tarefas sociais cada vez mais especializadas de um grupo particular de pessoas, coisas todas essas estreitamente associadas ao desenvolvimento de circulação de mercadorias.” (LUKÁCS, 1981, p. XCV)
[4] “Seria totalmente falso supor que os objetos da atividade cotidiana são, objetivamente, em si, de caráter imediato. Ao contrário. Não existe senão como consequência, que se complica e ramifica cada vez mais no curso da evolução social. Mas, na medida em que se trata de objetos da vida cotidiana, aparecem sempre dispostos, e o sistema de mediações que os produz parece completamente apagado e borrado em seu imediato e nu, ser-em-si.” (LUKÁCS, 1966, p. 45)
[5] ”As revoluções de 1648 e de 1789 não foram as revoluções inglesa ou francesa, foram revoluções de tipo europeu. Não foram o triunfo de uma determinada classe da sociedade sobre a velha ordem política; foram a proclamação da ordem política para uma nova sociedade europeia. Nelas triunfou a burguesia; mas o triunfo da burguesia foi o triunfo de uma nova ordem social, o triunfo da propriedade burguesa sobre a propriedade feudal, da nacionalidade sobre o provincialismo, da concorrência sobre o corporativismo, da partilha do morgado, do domínio do proprietário de terra sobre a dominação do proprietário a partir da terra, do esclarecimento sobre a superstição, da família sobre o nome da família, da indústria sobre a preguiça heroica, do direito burguês sobre os privilégios medievais.” (MARX, 2010, p. 322)
 
[6] “Os legisladores revolucionários da grande virada no fim do século XVIII agiram, pois, contradizendo seus ideais teóricos gerais, mas em consonância com o ser social do capitalismo, de modo ontologicamente coerente, quando em suas constituições subordinaram o representante idealista da generidade, o citoyen, ao bourgeois, que representava o materialismo dessa sociedade. Essa avaliação da importância do ser também dominou mais tarde todo o desenvolvimento capitalista. Quanto mais energicamente se desenvolvia a produção, tanto mais o citoyen e seu idealismo se tornavam componentes dirigidos pelo domínio material-universal do capital.” (LUKÁCS, 2010, p. 283)
[7] “O ideal do citoyen das grandes revoluções, especialmente a francesa, que no plano social se libertaram de elementos religiosos e ‘naturais’, num sentido ontológico real se fundamentou mais na transição revolucionária, nos esforços destrutivos revolucionários em relação ao feudalismo, e menos no que diz respeito ao ser social da sociedade capitalista.” (LUKÁCS, 2010, p. 282)
 
[8] “O significado social deste dever-ser varia muito nos diversos períodos: pode ter uma grande influência conservadora (o Direito natural católico no medievo), pode se tornar uma força revolucionária explosiva (Revolução Francesa), mas com frequência esta tensão naufraga na retórica mais desideradas dos professores que lamentam do Direito vigente.” (LUKÁCS, 1981 b, p. XCII)
[9] “Toda a ‘democracia’ consiste em proclamar e realizar ‘direitos’, cuja realização no capitalismo é muito escassa e muito convencional. Porém, sem esta proclamação, sem a luta pela concessão imediata dos direitos, sem a educação das massas no espírito de tal luta, o socialismo é impossível.” (LENIN, 1980, pp. 43-44)
[10] “Considerado em si, este seria um reflexo inadequado do processo social.” (LUKÁCS, 1981, p. C)
[11] “Toda tentativa de recriar essa forma passada de democracia sob o socialismo é uma regressão e um anacronismo. Mas isso não significa que as aspirações de uma democracia socialista possam ser trazidas por métodos administrativos. A questão da democracia socialista é uma questão muito verdadeira, e a ainda não foi resolvida.” (LUKÁCS, 1971, p. 50)

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