25/04/2024

O imaginário da libertinagem em Sade

Por

 

Taitson Alberto Leal dos Santos[1]
 
 
A relevância do livro Dialética do Esclarecimento vem de uma crítica no que tange à era totalitária. Trata-se de uma crítica ao Esclarecimento da Razão como princípio norteador proposto pelo Iluminismo. Adorno e Horkheimer (1985) propõem “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (p. 11). Os autores analisam a autodestruição do esclarecimento, causada pelo medo paralisante da verdade, medo este que “traiu” os homens pelo fato de o esclarecimento não tomar consciência de si.
A partir de tais premissas, tomamos por base o Excurso IIJuliette ou Esclarecimento Moral – na tentativa de compararmos a moralidade transcendental kantiana com a imoralidade absoluta na literatura do filósofo setecentista Marquês de Sade. Tal texto, nas palavras dos autores:
 
(...) mostra como a submissão de tudo aquilo que é natural ao sujeito autocrático culmina exatamente no domínio de uma natureza e uma objetividade cegas. Essa tendência aplaina todas as antinomias do pensamento burguês, em especial a antinomia do rigor moral e da absoluta amoralidade (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: p. 16).
 
Toda a crítica feita pela filosofia, de Kant a Nietzsche, somente proclamara o esclarecimento; todavia, somente Sade o desenvolveu em todos os seus pormenores, quando “‘mostra o entendimento sem a direção de outrem’, isto é, o sujeito burguês liberto de toda tutela” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: p. 85).
A máxima e fundamento do esclarecimento ilustrados pela razão pura kantiana tem como enunciado: “Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal” (KANT, sd.: p. 40) . Sade, opostamente, clama, bem à sua peculiar maneira: tenho o direito de gozar de teu corpo, e hei de exercê-lo sem que qualquer limite detenham meus caprichos. Conforme Adorno e Horkheimer:
 
A obra de Sade, como a de Nietzsche, forma (...) a crítica intransigente da razão prática, comparada à qual a obra do “triturador universal” aparece como uma revogação de seu próprio pensamento. Ela eleva o princípio cientificista a um grau aniquilador. Kant, todavia, já expurgara a lei moral em mim de toda fé heteronômica, e isso há tanto tempo que o respeito por suas asseverações se tornaram um mero fato natural psicológico, como é um fato natural físico o céu estrelado sobre mim. (...) Mas os fatos não valem nada quando não estão dados. Sade nega sua ocorrência (1985: p. 92).
 
Sade, para melhor tecer suas críticas à sociedade setecentista, vale-se de duas personagens extremamente contraditórias em suas crenças e em suas personalidades. Justine ilustra a virtuosa, a mártir da lei moral; todas as suas ações são realizadas segundo os princípios religiosos donde o amor ao próximo deve prevalecer. Juliette, entretanto, representa os ideais da libertinagem, com todo seu excesso, volúpia, crime e deboche. Ela “tira as consequências que a burguesia queria evitar: ela amaldiçoa o catolicismo, no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a civilização em geral” (Ibid.). Ao passo que Justine direciona todos os seus atos e pensamentos para o sacramento, Juliette, sua irmã, lança-se ao sacrilégio. Contudo, advertem os autores, tais princípios libidinosos em nada se assemelham ao fanatismo dos católicos em face dos incas. “Ela apenas se dedica esclarecidamente, diligentemente, à faina do sacrilégio, que os católicos também tem no sangue desde tempos arcaicos” (Ibid.).
Assim o Marquês define as duas irmãs:
 
(...) Justine, (...) que acabava de completar doze anos, possuía um caráter triste e melancólico, era dotada de ternura e sensibilidade surpreendentes e, em vez da sagacidade e da finura da irmã, tinha apenas uma ingenuidade, uma candura e uma boa fé que a fariam cair em muitas ciladas, essa sentiu todo o horror da sua situação. A fisionomia de Justine também era muito diferente da de Juliette. Enquanto nas feições de uma se notava artifício, astúcia e garradice, nas da outra admiravam-se pudor, delicadeza e timidez. Um ar de virgem, grandes olhos azuis cheios de interesse, uma pele maravilhosa, figura esbelta e leve, voz melodiosa, dentes de marfim e belos cabelos louros (...) (SADE, 1998: p. 10).
 
Tal é o retrato da virginal Justine pintado por Sade. Juliette, por sua vez, dedica toda sua vida aos crimes, que, segundo ela, trazem a liberdade e a riqueza. Individualista ao grau máximo ela não vê limites para seus atos, eliminando um número surpreendente de pessoas simplesmente para saciar sua insaciável sede de prazer[2]. Seu comportamento ilustra os comportamentos declarados tabus pela civilização, mas que, ainda assim, continuaram a ser praticados por toda a história de forma “subterrânea”. Simpatizante do Antigo Regime, ela “diviniza o pecado. Sua libertinagem está sob a ascendência do catolicismo, assim como o êxtase da freira sob o signo do paganismo” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: p. 101). O comportamento de Juliette não se constitui como sendo natural, mas proibidos por um tabu, sempre em oposição à moral:
 
Juliette, e nisso ela não é diferente do Merteuil de Liaisons Dangereuses, não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não-sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela repressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência, e maneja excelentemente o órgão do pensamento racional (ADORNO e HORKHEIMER: p. 92-3).
 
Sade põe na boca de Juliette toda sua filosofia materialista e libertina. Ele a cria completamente avessa aos ditames religiosos. Ateia ao extremo, crê fielmente na ciência e na razão. E é com tais instrumentos que se arma para afirmar o absurdo de se crer num Deus e em seu filho morto, no Decálogo, no pecado e em toda e qualquer virtude metafísica.
 
A crítica de Juliette é dividida como o próprio esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos. (...) A negação de Deus contém em si a contradição insolúvel, ela nega o próprio saber. Sade não aprofundou a ideia do esclarecimento até esse ponto de inversão. A reflexão da ciência sobre si mesma, a consciência moral do esclarecimento, estava reservada (...) aos alemães (ADORNO e HORKHEIMER: pp. 104, 109).
 
Para o Marquês, o esclarecimento é menos um fenômeno espiritual que social. Ele aprofunda-se na crítica à sociedade, à solidariedade, às relações interpessoais e à religião. Em relação a esta última chega mesmo, segundo Adorno e Horkheimer, a comprovar toda nulidade do Decálogo – e, noutro sentido, a propriedade e a autoridade paterna – perante a razão formal, chegando mesmo a afirmar ser extremamente mais simples racionalizar os atos não-cristãos do que fazer o mesmo que outrora se fez ao se tentar racionalizar “pela luz natural, os princípios cristãos segundo os quais esses atos provêm do diabo” (Ibid.).
Juliette e todas as demais personagens libertinas sadianas seguem uma visão materialista acerca da Natureza. Entretanto, tais libertinos não a dominam, mas entregam-se às suas próprias necessidades desideratas que, segundo Sade, nada são além de princípios naturais de todo ser humano que se dispõe a ouvi-la. Conforme os autores da Dialética do Esclarecimento:
 
Como ela [a razão] desmascara nos objetivos materialmente determinados o poderio da natureza sobre o espírito, como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra, formal como é, à disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e simples órgão e se vê rebaixado à natureza (ADORNO e HORKHEIMER: p. 86).
 
Numa concepção materialista, quem legisla o que será o bem e o mal é tão somente o homem. À natureza pouco importam tais conceitos ou valores, pois ela não tem finalidade e não serve a uma razão superior; entretanto, conforme Holbach, a natureza é inteligível e racional, pois pode ser compreendida e explicada pelo homem (Cf. REALE e ANTISIERI, 1990). Sabe-se que Sade se interessa muito pelos philosophes do séc. XVII – La Metrie, Holbach, dentre outros. Todavia, leu-os bem ao seu modo, tomando-lhes o que lhe interessava. Percebemos, claramente, na obra sadiana um télos na natureza:
 
_ Está bem. Quer dizer, através de certos gostos que me foram dados pela Natureza terei servido os desígnios dela, a qual, lançando as sua criações através de destruições, só me inspira a ideia de destruição quando tem necessidade de criações. (...) E quando preferindo a sua felicidade à dos outros destrói tudo o que encontra ou o aflige, terá feito outra coisa além de servir a Natureza, cujas mais seguras inspirações lhe impõem ser feliz, não importando seja à custa de quem for? A ideia de amor ao próximo é uma quimera que devemos ao cristianismo, não à Natureza.(...)
 _ Mas esse homem a que se refere é um monstro.
_ O homem de quem falo é o homem da Natureza (SADE, 1971: p. 147-48).
 
A natureza, em Sade, tem metas traçadas para suas criaturas: é um agente onisciente distinto de Deus. A natureza sadiana não pode ser tomada como um deus (ou Deus), mas antes, como um agente universal, como trata com frequência. Cito:
 
Mas, dir-se-á a este propósito, Deus e a natureza são a mesma coisa. Não é um absurdo? A coisa criada ser igual ao criador? Pode um relógio ser igual ao relojoeiro? A natureza não é nada, prossegue-se, é Deus que é tudo. Outra bobagem! Há necessariamente duas coisas no universo: o agente criador e o indivíduo criado. Ora, qual é este agente criador? Eis a única dificuldade que é preciso resolver, a única pergunta que é preciso responder (SADE, 1999: p. 39).
 
Sade desenvolve a ideia, respondendo à sua própria questão, de que o movimento é inerente à matéria e que as combinações desse movimento nos são desconhecidas. Conclui, então, bem a seu modo, que a matéria, devido à sua energia, cria, conserva e mantém tudo: as planícies, as esferas celestes... Tudo isso, ao ser contemplado, nos enche de emoção e respeito. Qual a necessidade, então, de se buscar um agente estranho a tudo isso, uma vez que tudo isso que admiramos não passa de matéria em ação? “Levando-se em conta a importância do movimento em Sade, (...) deve-se observar que, por trás de todo movimento, de toda ação boa ou má, estão as intenções da natureza que as determinam” (BORGES, 1999: p. 221). Assim entendido:
 
A natureza não é outra coisa que união, dispersão e reunião de elementos, perpétua combinação e separação de substâncias. Não há vida ou morte. Muito menos repouso. Sade imagina a matéria como um movimento contraditório, em expansão e contração incessantes. A natureza destrói a si mesma; ao se destruir, se cria. As consequências filosóficas e morais dessa ideia são muito claras: (...) desaparece a distinção entre criação e destruição. (PAZ, 1999: p. 6).
           
Conforme Octavio Paz, instalar a natureza no lugar antes ocupado pelo Deus Cristão não é uma ideia original de Sade, mas de seu século. Cito:
 
“Porém sua concepção não é a vigente em sua época. Seu libertino não é o bom selvagem e sim uma fera pensante. Nada mais longe do filósofo natural que o ogro filósofo de Sade. Para Rousseau, o homem natural vive em paz com a natureza também pacífica; se abandona na sua solidão, é para restaurar entre os homens a inocência original. O solitário de Sade se chama Minski[3], um ermitão que se alimenta de carne humana. Sua ferocidade é da natureza, em perpétua guerra com suas criaturas e consigo mesma. Quando um desses anacoretas deixa seu retiro e redige constituições para os homens, o resultado não é Do contrato social, mas os estatutos da Sociedade dos Amigos do Crime. Diante da impostura da moral natural, Sade não edifica a quimera de uma natureza moral (PAZ, 1999: p. 59)”.
 
Segundo o Marquês, as virtudes, calcadas na moral religiosa, são contra a Natureza Humana, impedindo-a de ser feliz. Sade constrói uma filosofia em que o incesto, o assassinato, o roubo e os excessos libertinos são fundamentados na natureza, “um princípio criador onisciente, que tem metas traçadas para as suas criações. Ocupa, portanto, o lugar de Deus" (BORGES, 1999: p. 220-21).
Ora, sendo natural, por que assim não o somos? A resposta de Sade é que nunca deixamos de seguir nossos impulsos naturais. Entretanto, somos como que forçados a todo instante a controlá-los e impedi-los. Isso se deve ao fato de o homem ter optado por seguir um Ser onipotente e onisciente e Seus mandamentos. Das leis metafísicas universais surgem as virtudes, que tendem a impedir os excessos naturais ao homem, afastando-o da Natureza. Diz o Marquês: "Haverá algum sacrifício feito a essas falsas divindades que valha um só minuto dos prazeres que sentimos ultrajando-as? Ora, a virtude não passa de uma quimera cujo culto consiste em imolações perpétuas, em inúmeras revoltas contra as inspirações do temperamento. Serão naturais tais movimentos? Aconselhará a natureza o que a ultraja?" (SADE, 1999: p. 37).
Outro dado importante quanto à não entrega de si às leis naturais é o que diz respeito à voz da natureza: “a natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos” (SADE, 1999: p. 80), afirma. Entretanto, nem todos podem ouvi-la; somente o fazem os indivíduos que se encontram preparados: tarefa esta para a educação. A educação libertina visa à supressão das virtudes e o incentivo ao assassinato, ao roubo, ao gozo... Ações encontradas na natureza, pois são necessárias a ela:
 
Nossas ações não pesam, não tem substância moral alguma. São ecos, reflexos, efeitos dos processos naturais. Nem sequer são crimes: ‘O crime não tem realidade alguma; melhor dizendo, não existe a possibilidade do crime porque não há maneira de ultrajar a natureza’[4]. Profaná-la é uma forma de honrá-la; com nossos crimes, a natureza elogia a si própria. (...) E nada podemos contra ela. Nossos atos e nossas abstenções, o que chamamos virtude e crime, são imperceptíveis movimentos da matéria (PAZ, 1999: p. 61).
 
Conforme Augusto Contador Borges, os libertinos – os que ouvem a natureza - são os indivíduos capazes de reproduzir no ambiente humano, materialmente, as condições naturais. A diferença existente entre o libertino e o filósofo é tênue: quiçá, os filósofos estejam mesmo aquém dos libertinos, uma vez que estes além de serem intérpretes racionalistas da natureza, também desempenham, em meio às suas criaturas, sua vontade. E, aos que se opõem a estas premissas, responde-lhes o Marquês: “... não há nada de horrível na libertinagem porque o que ela inspira também se encontra na natureza” (SADE, 1999: p. 102).
Maria Rita Kehl (1996) afirma que poderíamos ler a filosofia libertina, nos dias atuais, como produto de uma razão delirante. Razão esta herdada da filosofia das Luzes, da burguesia que a consolidou. Entretanto, como reação a autoridade do clero e da decadente nobreza, “o próprio espírito das Luzes substituiu a onipotência divina pela onipresença da razão, que é uma forma de onipotência do eu” (p. 329).
Ainda segundo a autora, ao se resgatar Freud – que não seria o primeiro a aproximar a razão da loucura – percebemos certo risco “do pensamento abstrato distanciar-se demais da base imaginária... A base imaginária, empírica, de nosso pensamento é que coloca limites aos voos abstratos da razão” (Ibid.). Isto posto, percebe-se que o pensamento abstrato e a loucura aproximam-se e assemelham-se na possibilidade de realizar tudo o que se queira, sem limites. Ora, e onde reside o “risco” em tal distanciamento, como dito anteriormente? O pensamento delira, ensandece, quando não um limite claro em sua capacidade de invenção do real, uma vez que o “pensamento abstrato prescinde de qualquer lei que não sejam as leis da lógica, nas quais a base ‘empírica’ da verdade, que depende do imaginário e passa necessariamente pelos afetos, se perde” (KEHL, 1996: 329).
Assim entendido, torna-se necessário que se hajam algumas “ilusões” para que a civilização se sustenha e não se decline na barbárie. Ilusões estas compartilhadas pela sociedade, tais como os tabus. E, na obra sadiana, encontramos muitos deles sendo despidos e anunciados como práticas naturais por seus libertinos, tais como o incesto, o roubo, o assassinato, a poligamia, etc. Em A filosofia na alcova (SADE, 1999: p. 56), Saint-Ange afirma: “Nos doze anos em que estou casada, já fui provavelmente fodida por mais de dez ou doze mil indivíduos...E ainda me julgam sensata na sociedade!”. Ou ainda, Dolmancé, o devasso preceptor da obra em questão, ao defender o assassinato: “Se todos os indivíduos fossem eternos, não se tornaria impossível à natureza criar novos seres? Se a eternidade dos seres é impossível à natureza, sua destruição torna-se portanto uma de suas leis” (SADE, 1999: p. 161). E sobre o roubo, conclama que ser deve punir “o homem negligente o bastante para se deixar roubar, mas não pronunciai nenhum tipo de pena contra aquele que rouba” (SADE, 1999: p. 144). Quanto ao incesto, Sade defende-o assumindo sua necessidade em um Estado Republicano no intuito de se estender “os laços de família e, em consequência, torna mais ativo o amor dos cidadãos pela pátria” (SADE, 1999: p. 155).
Analisando tais aspectos da razão libertina, a Dialética do Esclarecimento (1985), “nos faz lembrar a impossibilidade de racionalizar o tabu do incesto” (KEHL, 1996: p. 330). Segundo os autores, a crítica libertina é repartida, assim como o esclarecimento.
 
Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: p. 104).
 
Sade toma para si a tarefa de fazer “de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento” (ADORNO, 1985: p. 111), não recorrendo a nenhuma doutrina harmonizadora e, tomando a “natureza” como referência, instaurada pelo Iluminismo, conclui que não há razão alguma para que o homem não se entregue ao crime.
 
Assim, delírios da razão são totalitários, justamente ao tentar encontrar, e transformar em máxima moral, a verdadeira natureza humana. Mas também são totalitários ao tentar impor à sociedade uma ordem hiperbólica...No Iluminismo, o horror ao mistério, ao inexplicável, ao oculto, engendrou o horror ao inconsciente (ainda não dito como tal) na compulsão de tudo dizer, tudo mostrar, tudo iluminar – e, por que não?, tudo fazer. Tudo saber sobre o desejo, tudo dizer sobre o sexo e, principalmente, tudo fazer – este o imperativo da filosofia libertina, nascida da onipotência da razão (KEHL, 1996: p. 330).
 
Sem tais anseios e hipérboles, não teríamos herdado da filosofia libertina nossa condição de “modernos”, seja pelo ateísmo radical ou por sua contribuição quanto à concepção do indivíduo moderno e sua estreita relação do mal com a sexualidade, ou, de forma mais específica em Sade, da violência aliada à prática sexual. Mas essa vontade de tudo saber, tudo descortinar e expor e viver a verdade (a verdade do gozo e do crime, diga-se) proclamada pela filosofia libertina, vai de encontro aos ideais do espírito revolucionário republicano:
 
O prazer do libertino se dá na reprodução dos ritos do Antigo Regime, e mesmo o discurso que ele reproduz – uma espécie de etiqueta radical e totalitária, ainda que ao avesso – combina mais com a vida na corte do que com a vida republicana. O libertino representa a si mesmo como pertencendo a uma classe de homens superiores, com direitos ilimitados de gozar do outro. Sade odeia a ideia de igualdade (KEHL, 1996: p. 331).
 
Sobre a igualdade, cabe ressaltar que, embora apregoe e exalte o que se toma por tabu, conforme dito anteriormente, Sade distingue claramente os libertinos dos não-libertinos. Em dado momento do “terceiro diálogo” de A Filosofia na Alcova o preceptor Dolmancé, num longo discurso a Eugénie, sua pupila, assim justifica a supressão de certas “criaturas”:
 
Ouço clamores de todas as partes para que se encontrem meios de suprimir a mendicância, mas enquanto isso fazem de tudo para que ela se multiplique. Quereis ficar livre de moscas em vosso quarto? Não derrubeis açúcar para atraí-las. Não quereis que a França tenha pobres? Não distribuí nenhuma esmola, e suprimi, sobretudo, vossas casas de caridade. O indivíduo que nasce no infortúnio, vendo-se privado desses perigosos recursos, empregará toda sua coragem, todos os meios que recebeu da natureza para sair do estado em que nasceu. Ele não vos importunará mais. Destruí, derrubai sem a menor piedade essas casas abomináveis que ainda por cima encobrem descaradamente os frutos da libertinagem do pobre, essas cloacas medonhas que todos os dias vomitam na sociedade um repugnante enxame de novas criaturas cuja última esperança é vossa bolsa. De que adianta, pergunto, conservar com tanto zelo tais indivíduos? Teme-se que a França seja despovoada? Ah, jamais devemos ter esse medo! (SADE, 1999: p. 44)
 
O Marquês fala aos seus pares em suas obras, os libertinos, os demais, as vítimas, somente são preservadas para prorrogar o gozo deles.
Ao final do quinto diálogo de A filosofia na alcova, o libertino Dolmancé apresenta uma brochura, comprada naquela manhã no Palácio da Igualdade, intitulada “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”. Neste panfleto, o Marquês irá ilustrar tudo o que até o momento foi discursado, detendo-se especialmente na religião e nos costumes. Este texto aponta para a “necessidade de uma moral que ‘dirija os costumes’ e ‘que seja como que o seu desenvolvimento, sua consequência necessária’” (BORGES, 1999: p. 234). Também Fernando Peixoto vai desenvolver a ideia de que, ao se apresentar o panfleto Franceses..., “toda a proposição filosófica do livro ganha uma amplificação necessária: não se trata mais da defesa individual do prazer, feita por um personagem, mas de uma reivindicação de caráter sócio-política feita em nome de toda a coletividade” (PEIXOTO, 1979: p. 198).
“A revolução de Sade começa na palavra”, afirma Contador Borges (1999: p. 216). Sade somente entende o Estado revolucionário a partir de uma profunda e radical transformação, onde a libertinagem teria papel fundamental. Cito:
 
Para Sade, nada é tão oposto ao sistema da liberdade republicano quanto os dogmas do cristianismo. (...) São dois tipos diferentes de organização social. O cristianismo combina mesmo é com o Antigo Regime. Desde a Idade Média, esta aliança era mantida com base no arbítrio da eleição divina de seus representantes. (...) Os revolucionários franceses substituíram a graça pela justiça e o direito divino pela liberdade. Cabe a Sade realizar a última volta da espiral, que, aliás, representa um “retorno à natureza”: substituir a justiça e a liberdade pelo despotismo da libertinagem (BORGES, 1999: p. 234).
 
Estando, pois, o cidadão republicano livre de todos a ideologia religiosa, o dever maior do Estado é o de garantir todos os meios pelos quais tais cidadãos satisfaçam-se da maneira que melhor lhes convier, propiciando sua felicidade. Em sua História de Juliette, Sade ilustra como uma sociedade fundada em tais princípios viria a funcionar:
 
Para que alguém seja admitido na Sociedade dos Amigos do Crime, é preciso que aceite determinadas regras segundo as quais, para satisfazer seus desejos, ele deverá saciar os desejos de outrem. (...) A República precisa de uma constituição que abrigue o desejo como lei suprema e garanta sua realização. (...) A lei, por sua vez, serve para racionalizar o desejo determinando as relações de poder. Todos, sem exceção, terão seus desejos satisfeitos à medida que se sujeitarem aos desejos dos outros. Num pacto dessa natureza, o desejo de cada também se instaura como desejo da Revolução, e, sendo um de seus princípios, torna-se lei universal (BORGES: p. 241).
 
Conforme Adorno e Horkheimer, toda esta organização inflexível sadiana erigiu um primeiro monumento ao sentido do esclarecimento, ilustrando a perfeita relação entre o conhecimento e o plano, antecipando, empiricamente, toda a cooperação que podemos ver hoje nos esportes modernos. Sade – e os demais escritores sombrios da burguesia – nunca tentaram distorcer as possíveis consequências do esclarecimento recorrendo a quaisquer doutrinas harmonizadoras. Sade levou a razão ao seu ponto mais além, expondo ao esclarecimento uma verdade aterradora, sem véus e sem mistérios. Concluindo com as palavras do Moribundo de Sade: “Meu amigo, conforma-te com a evidência de que cego é quem se veda com uma fita, não quem a arranca dos olhos. Tu edificas, inventas, multiplicas, eu destruo, simplifico. Tu acumulas erros sobre erros; eu combato todos. Qual de nós é o cego?” (SADE, 2001: p. 21). Este o papel que o Marquês de Sade se propõe com sua obra: extrair a fita que impede seu leitor de ver a verdade, sua verdade.
             
 
 
 
Referências Bibliográficas
ADORNO, T e HORKHEIMER, M. “Juliette ou Esclarecimento e Moral” en ADORNO, T e HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
BORGES, A. C., “A Revolução da Palavra Libertina”, en SADE, M. de., A Filosofia na Alcova, São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.
KANT, I., Crítica da Razão Prática, Trad. Afonso Bertagnoli, 4ª. Ed, Rio de Janeiro: Ediouro, sd.
KEHL, Ma. R., “Cinco propostas sobre a filosofia libertina e uma sobre assédio sexual” en NOVAES, A. (org.). Libertinos libertários, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
PAZ, O., Um mais além erótico:Sade, trad. Wladir Dupont, São Paulo: Mandarim, 1999.
PEIXOTO, F., Sade: Vida e Obra, Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra S.A., 1979.
REALE, G. & ANTISIERI, D., História da Filosofia:do Humanismo a Kant, São Paulo: Paulus, 1990.
SADE, M. de., A Filosofia na Alcova: ou, Os Preceptores Imorais, Tradução, posfácio e notas de Augusto Contador Borges, São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.
SADE, M. de., Diálogo entre um Padre e um Moribundo: e outras diatribes e     blasfêmias, Trad. Alain François e Contador Borges, São Paulo: Ed. Iluminuras, 2001.
SADE, M. de., EscritosFilosóficos e Políticos, Venda Nova: M. Rodrigues, 1971.
SADE, M. de., Justine: ou os Infortúnios da Virtude, Trad. Adelino Rodrigues, PORTUGAL: Publicações Europa-américa, 1998.
 
 


[1] Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Especialista em Educação, Filosofia e História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Licenciado em Filosofia (UNIMEP). Docente do Instituto Educacional Piracicabano e pesquisador do Grupo de Pesquisa: Walter Benjamin, Filosofia, Educação (PPGE-UNIMEP). E-mail: [email protected].
[2] Em A Nova Justine, ou As desgraças da Virtude. Seguida da História de Juliette, sua irmã (ou as Prosperidades do Vício) serão assassinadas cerca de 50 mil pessoas em todo o romance.
[3] Minski de Gernande, personagem de “La Nouvelle Justine”.
[4] “História de Juliette”, nota de Octavio Paz.

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