Renato Franco
Prof. Livre-docente UNESP-Araraquara
Cinema e Dialética
Pierre Missac conheceu Benjamin em Paris por intermédio de George Bataille, pouco antes de a França ser invadida pelos nazistas. Posteriormente, contribuiu para a organização e a divulgação da obra do pensador alemão. Publicou inclusive instigante livro sobre sua obra, sintomaticamente intitulado Passagem de Walter Benjamin. Ao contrário da análise efetuada por Rochlitz, por exemplo, Missac prefere praticar uma metodologia que evita abordar seu objeto diretamente, logrando dessa maneira identificar e esclarecer internamente o conjunto de questões desenvolvidas na obra do filósofo, de modo a desvendar até mesmo as nuances sutis de sua expressão ensaística ou a vinculação ao aforismo: escrita que, afinal, aponta como intimamente relacionada, em sua estruturação mais recôndita, às aventuras da linguagem cinematográfica.
No referido livro (mais precisamente no capítulo IV, intitulado O Gesto de Josué), Missac almeja interpretar as implicações teóricas e existenciais da atração de Benjamin pela questão do tempo: o Gesto de Josué – ou seja, a busca da interrupção do tempo ou do processo histórico - é considerado por ele como sintoma evidente da relação do autor com o tempo, que ora se transmuta na atitude paciente – requerida pelo jogador de xadrez -, ora na postura inquieta e impaciente, as quais alimentam a oscilação constante de Benjamin entre a sensação ou a idéia de que ainda é “demasiado cedo“ ou já é “demasiado tarde”. A atração por tal questão, considerada em nuances diversas e carregadas de sutilezas, modela o alicerce capaz de sustentar outros dois temas fundamentais do autor alemão, ainda segundo Missac: o da técnica e o da relação desta com a arte e a cultura, da qual o cinema desponta como a expressão mais significativa na atualidade. Em franca oposição à tese de Rochlitz, sustenta que, para Benjamin, a técnica e o progresso social não estão dissociados no universo da arte. A relação positiva e conseqüente entre eles forneceria o fundamento da análise da transformação da arte na época das técnicas de reprodução:
A fé no progresso técnico era tão forte em Benjamin que ele provavelmente precisou de toda sua lucidez para combater seu otimismo de forma científica e para afirmar que as proezas realizadas na dominação do mundo exterior não tinham valor se não fossem acompanhados de um progresso – melhor consciência e bem estar – no plano social. Ora, há um setor em que os dois desenvolvimentos parecem seguir um caminho mais ou menos conjunto: a arte, ou essencialmente as artes plásticas... (MISSAC, 1998, p. 116).
Muito provavelmente, a valorização da técnica enquanto instrumento de emancipação – do progresso social – forçou Benjamin a questionar ou reconsiderar sua própria relação com a escrita e, mais profundamente, com a literatura ou o romance. Missac encontra um vestígio significativo disso no fato de ele evitar configurar, em seus ensaios, figuras humanas, que cedem lugar às imagens históricas. Além disso, parece ter também levado a sério a tentativa de elaborar uma escrita capaz de se equiparar às conquistas da fotografia, aderindo assim de algum modo à exigência, formulada pelo Surrealismo, de substituir o momento descritivo no romance pelo uso abundante de fotos em sua composição. Esta alteração do foco de interesse não teria resultado meramente de questões ou visões estranhas aos problemas experimentados pela arte ou pela literatura, como querem muitos de seus críticos. O interesse pelo cinema resulta antes da experiência artística típica da geração do autor, que se vê obrigada a se confrontar com a técnica e a máquina. Dessa maneira, surge em seu pensamento, durante os anos 30, uma tensão entre a valorização do cinema e a literatura. Não se pode, contudo, isolar a atração pelo cinema dos motivos fornecidos pela conjuntura histórica ou política do período: em alguma medida, como já foi mencionado acima, ela resulta também de seu engajamento na luta antifascista, que o leva a tentar elaborar as diretrizes da estética materialista. Essa dupla determinação do interesse pelo cinema tem valor de sintoma: revela-nos o quanto a experiência estética e a política foram forçadas a se imbricarem nesses anos.
O interesse pelo cinema, no âmbito da elaboração da estética materialista, adquire maior intensidade não apenas por ele depender de aparelhagem técnica, mas ainda, segundo a análise de Missac, pelo fato de ela poder configurar uma imagem do tempo – ou uma temporalidade – na qual este não desponta como vazio ou homogêneo, conforme ocorre com sua representação na política social-democrata ou nas várias formas de historicismo, que são duramente criticadas por Benjamin nas Teses sobre a filosofia da História. No cinema, o tempo implica permanentes possibilidades de reviravoltas abruptas, interrupções no curso dos acontecimentos, exploração das formas de simultaneidade ou mesmo intensa fragmentação. Missac afirma: “estamos diante de um tempo de que é necessário tratar ativamente e até mesmo com brutalidade” e que “o filme mantém com o tempo uma relação [simultaneamente] particular e próxima dos pontos de vista de Benjamin” (Missac, 1998, p. 124). O filme seria, nesse aspecto, completamente diverso das outras formas de arte:
A especificidade da obra cinematográfica está em se adequar estritamente a sua própria duração. Nessa qualidade, ele se opõe aos outros modos de expressão existentes, não somente os que, como as artes plásticas, se instalam de vez e de modo estático no espaço, mas também aqueles cuja composição depende da durée: de um lado, as obras da palavra ou da escrita; e de outro, a dança e a música. (MISSAC, 1998, p. 125).
Com tal forma de raciocínio, Missac pode afirmar que a relação do cinema com o tempo é “mais rica do que aquela mantida pela música” porque ele pode, graças à aparelhagem técnica, romper a sujeição à irreversibilidade do tempo, coisa a ela vedada.
O filme, com sua particular remodelação do tempo, parece ainda despertar em Benjamin um interesse mais decisivo porque, graças a esse aspecto fundamental, ele pode ser relacionado à dialética e até mesmo “ser considerado como um modelo exemplar do funcionamento dela”. Isso ocorreria porque, em seu corpo fluído, a imagem fotográfica, que, em última instância, o constitui enquanto “menor unidade de sentido’ ou “célula”, não pode ser fixada ou congelada a fim de se oferecer plenamente à visão do espectador. Isso é reservado à fotografia, ao instantâneo fotográfico. Quando, porém, ela tece o fluxo de imagens que compõe o filme, ela é apagada, silenciada, substituída por outra que, por sua vez, bem rapidamente terá o destino de sua antecessora. A seqüência contínua das imagens fílmicas requer a descontinuidade delas
[1]. Arrancadas da seqüência, elas perdem o sopro de vida que as anima. Desse modo, parece que cada imagem nasce da morte da que a antecede, sem nada saber dela, embora conservando algo dela. Esse mecanismo da produção da seqüência fílmica, realçado por Benjamin, permite a Missac
[2] destacar que
Nunca existiu mais do que no cinema e antes dele, e nunca poderá, acreditamos, existir depois dele, um modelo mais perfeito do processo dialético ou um exemplo tão concreto de uma negação que se torna construtiva. Em uma palavra: um exemplo de Aufhebung (MISSAC, 1998, p. 127).
O cinema seria capaz de realizar semelhante façanha por, como nenhuma outra forma de arte até então, depender inteiramente de aparelhagem técnica resultante do desenvolvimento dos equipamentos modernos. Tal aparelhagem seria responsável por dotá-lo da capacidade de reconfigurar o tempo e, dessa maneira, de aproximá-lo da dialética:
Graças ao domínio do tempo que a máquina confere, é possível atingir uma Aufhebung, que torna frágeis e um tanto insignificantes, abstratos e ilusórios, os outros exemplos que nos esforçamos em detectar (MISSAC, 1998, p. 127).
A análise elaborada por Missac, apoiada nos eventos verificados na história do cinema após a morte de Benjamin, consegue comprovar que muitas das teses formuladas no ensaio sobre a reprodução técnica da arte não resultam de uma especulação teórica desenfreada ou de um tipo de posicionamento político arbitrariamente escolhido. Nessa perspectiva, enfatiza as conseqüências positivas do fato de o cinema depender de aparelhos técnicos originais, os quais permitem um tratamento inusitado do tempo, aspecto decisivo na acolhida favorável que as massas conferiram a ele. Entretanto, também propõe questões pertinentes relativas ao posterior tratamento do tempo na história do cinema, como o fato de ele logo experimentar uma uniformidade, uma espécie de padronização no modo de configurar o tempo, que, por breve momento, produz certo esgotamento de sua receptividade. Ele, porém, teria reagido a isso por meio de intensa busca de novos modos de configurá-lo: este seria submetido “a tratamentos mais brutais e mais diversificados, tais como o uso do flashback”. A conseqüência dessa expansão do modo de conceber o tempo é hoje nítida: “os enigmas que resultam daí transformam todo filme num policial e todo espectador num detetive” (Missac, 1998, p. 130)
[3]. Nesse sentido, não se pode falar de um espectador passivo no cinema.
Missac realça ainda a correção do juízo benjaminiano relativo ao fato de, no cinema, o ator representar para uma objetiva, o que constituía forte novidade. Segundo o crítico, “isto seria ainda mais verdadeiro com a prática dos rushes, que lhe permite, com o fim da filmagem, ver-se representando e alterar sua interpretação” (Missac, 1998, p. 130), técnica hoje radicalizada por certo tipo de filme, que apresenta algo semelhante a uma “crase temporal” (a concentração, no instante presente, de comportamentos passados, até então separados). Destaca também o fato, originalmente apontado por Benjamin, de ser no cinema – e não na literatura ou no jornal – que se apagam as diferenças entre autor e público. Além disso, considera a produção do filme como verdadeiramente mais coletiva relacionada a “uma divisão do trabalho que, longe de ter a crueldade desumana do taylorismo, partilha as tarefas mais nobres e as responsabilidades” (p. 131). Essa afirmação, contudo, não é referida a algum tipo específico de filme, o que a torna imprecisa, pois isto de modo algum parece se verificar no cinema produzido no âmbito da indústria cultural, especialmente nos EUA
[4].
No entanto, a questão aparentemente mais provocativa proposta por Missac se refere “à tarefa de dar ao tempo um golpe decisivo ao interromper o curso do filme por um intervalo bastante longo, talvez para sempre” (1998, p. 132). Constata, porém, não ter essa possibilidade sido cogitada por Benjamin; em contrapartida, dois cineastas oriundos da literatura teriam caminhado nessa direção: Guy Debord e Marguerite Duras. No caso do autor ligado à Internacional Situacionista, o filme é bruscamente interrompido, ou seja, a seqüência de imagens é rompida, de modo a gerar não outras imagens, mas a permitir que o espaço todo da tela seja tomado por uma luminosidade opaca ou por completa escuridão “para deixar que se veja apenas uma tela vazia, negra como a noite ou branca como a página de um livro” (p. 132). A ausência de imagens cria assim um espaço indefinido, “um lugar nenhum”, ou um tempo outro, ou um “não-tempo”. No caso de M. Duras, aparece em seu filme “Le camion” uma interrupção das imagens de tal ordem que Missac a toma como “negativo indecifrável, imagem adequada do nada absoluto”.
Embora considere não ter Benjamin pensado explicitamente nessa direção, afirma a possibilidade de ela ter sido percebida pelo autor. Para sustentar essa afirmação, recorre ao exame do costume de Benjamin de folhear livros antigos ou infantis, como “aqueles álbuns ilustrados... que, seguindo a posição da mão que as folheia, mostram ora um vaso de flores, ora folhas brancas ou negras” (Missac, 1998, p. 132). Para ele, “impõe-se uma aproximação entre esse tipo de livro e os filmes” [como os de Debord e de Duras]. Indaga, então, qual teria sido a reação de Benjamin ante eles; responde que, muito provavelmente, o apego do autor pelas imagens não permitiria uma acolhida favorável a esse tipo de obra. Reconhece, porém, ser quase certo que Benjamin apontaria nele uma contradição de alto calibre: esses filmes aceitariam a ordem estabelecida pelo capital no universo cinematográfico e, por isso, buscariam uma contestação abstrata dele, dirigindo-se a um público previamente a ele destinado. Abdicariam, assim, de considerar o cinema como a vanguarda da cultura revolucionária das massas.
“O cinema está morto”: a crítica ao cinema da sociedade do espetáculo
A análise empreendida por Missac não destaca suficientemente o significado do trabalho e das atividades de G.Debord no campo do cinema. Talvez como nenhum outro autor, este pensador e ativista político logrou aplicar alguns dos conceitos fundamentais da teoria crítica da sociedade aos territórios da imagem e de sua produção. De fato, para ele, com o desenvolvimento intensivo das novas tecnologias de comunicação, de produção e de difusão de imagens - as quais servem enormemente para reforçar e ampliar o universo da mercadoria-, a sociedade se transformou, dando origem ao que ele denomina de “sociedade do espetáculo”. Ou seja, em uma sociedade em que todas as relações sociais, todas as atividades sociais, estão mediadas por imagens, imagens-mercadorias.
As imagens-mercadorias, porém, não estão livres do fenômeno da coisificação. Por essa razão, a rigor, elas não comunicam nada: ao contrário, reforçam o recalcamento daquilo que urge para ser comunicado e que poderia se referir a uma experiência e a uma dimensão não-reificada da vida ou da existência social. Como fetiches, as imagens vagam maciçamente nos universos tecnológicos de comunicação e se prestam apenas a reproduzir e a divulgar a face congelada do existente, tornado, ele também, coisa, imune a qualquer possibilidade de reversão crítica. Elas, as imagens, como outrora as palavras no meio que mais as degradava, o jornal, são imagens-coisas, que se referem à vida-coisa, vale dizer, à vida falsa. Na sociedade do espetáculo, elas são o complemento especular da vida sem vida, da existência danificada.
Para Debord, o cinema também havia se tornado um acontecimento ou um empreendimento espetacular, uma instituição destinada a produzir incessantemente imagens, imagens-mercadorias. Pode-se dizer delas o que Adorno dizia a respeito dos produtos da indústria cultural: elas são instrumentos que reforçam o “guia dos perplexos”. Elas tornaram-se elementos fundamentais do atual modo de produção do esquematismo transcendental que, outrora, era obra do sujeito transcendental. Se isso é verdadeiro no caso do cinema-espetáculo, o é ainda mais radicalmente em relação à televisão, que já não produz propriamente imagens, mas um fluxo de imagens ou, quem sabe, uma “imagem-fluxo”. Nesse aspecto, ela é enormemente auxiliada pelas novas tecnologias digitais de comunicação. Adquire grande significação, nesse contexto, a frase de Adorno proferida em um aforismo de Mínima Morália: “De cada ida ao cinema, apesar de todo cuidado e atenção, saio mais estúpido e pior” (p.19)
No cinema-espetáculo, de fato, em seu corpo etéreo de imagens-coisas, a representação, seja de um beijo entre um casal, seja de um encontro ou confraternização, ou ainda de um diálogo, simula muito naturalmente que os homens ainda são passíveis de amor ou capazes de experimentarem relações reais.O cinema, enquanto produtor de imagens reificadas, não pode porém senão se referir à vida falsa e a dissimular, por meio dos mais engenhosos artifícios, o quanto os homens não são mais sujeitos.
A crítica de Debord ao cinema foi especialmente concretizada com a exibição de seu não-filme intitulado Hurlements em faveur de Sade (Uivos para Sade), numa sala de Montparnasse em junho de 1952. Nesse antifilme, Debord tenta criar uma espécie de “cinema terrorista”, que consiste em apresentar uma tela vazia de imagens - frustrando assim a expectativa geral do público, ávido por imagens originais-, a qual é branca enquanto duas vozes são ouvidas, até que, repentinamente, elas são interrompidas. O silêncio que se segue é acompanhado por uma tela negra, e a tela conhece então uma sucessão de branco/negro, claro/escuro, verdadeiro/falso, som/silêncio... até o momento em que surge um grito proferido pelo próprio Debord, que diz:”O cinema está morto!Passemos aos debates!”Mais tarde, em 1973, ela foi complementada com o filme intitulado A sociedade do espetáculo, que filma sua própria teoria, explicitada em 1967 no livro A sociedade do Espetáculo. Debord parece aqui concretizar, com tal filme, um projeto originalmente cultivado por Eisenstein, que também queria filmar a teoria, mais especificamente, o Das Kapital de K.Marx. (Este projeto foi recentemente retomado pelo filósofo e cineasta alemão Alexander Kluge.) Esta crítica pode ser inclusive interpretada como uma crítica às esperanças que Benjamin depositou no cinema. Dito de outro modo: se Benjamin vislumbrou a possibilidade histórica de o cinema, enquanto forma, constituir um novo tipo de arte - uma arte revolucionária das massas-, capaz como nenhum outro de a representar e de possibilitar que elas se autoconhecessem coletivamente, de modo divertido, Debord, não sem pesar, constata o soterramento histórico dessa possibilidade. As forças sociais e econômicas capazes de conter e redirecionar as possibilidades emancipatórias do cinema, tão bem identificadas por Benjamin, acaba por prevalecer. O veredicto de F.Jameson adquire aqui ampla concreção e significado: “Hollywood é a revolução cultural do capitalismo tardio”.
Cabe realçar que Benjamin já havia inclusive observado que os “capitalistas do cinema” tinham efetivamente logrado reforçar consideravelmente o cinema destinado a “desorientar as massas” com a introdução de uma novidade técnica: a utilização do som no cinema. Em uma carta para Adorno (9/02/1938) escreve: “Fica cada vez mais claro que é preciso considerar o lançamento do filme sonoro como uma ação da indústria destinada a destruir o primado revolucionário do filme mudo....” Adorno responde, afirmando concordar, mas que isso ocorreria devido às tendências objetivas desse setor. O fato é que esse tipo de cinema acabou por prevalecer em quase todos os lugares.Ele mobiliza o uso de efeitos especiais, sonoros e/ou visuais, quase sempre com a finalidade de acentuar e de exacerbar a violência, o perigo, a velocidade, reprimindo assim cada vez mais intensamente a possibilidade de o cinema cumprir a tarefa que Benjamin a ele atribuiu.
Acuado por tal tipo de cinema, que bem poderíamos chamar de “cinema da cultura da adrenalina”, o cinema que cultiva as potencialidades emancipatórias do meio se viu forçado, na maior parte das vezes e no melhor dos casos, a refletir sobre sua própria condição ou sobre a natureza de sua linguagem. Isso quase sempre ocorre com as formas de arte que se sentem objetivamente impedidas de concretizar suas potencialidades: quando elas não podem desenvolver o que é requerido por elas, tendem a refletir sobre a natureza de sua linguagem. Essa reflexão não é uma capitulação nem uma recusa em concretizar as possibilidades críticas inerentes a essa forma artística: antes, essa reflexão é um modo de por em questão a instituição social da arte nesse campo específico. É o que ocorre com filmes como Mônica e o desejo, de Ingmar Bergman (1952).
Nesse filme, em certo momento de seu desenvolvimento, a atriz Harriet Anderson olha, de forma completamente inesperada, fixamente para a câmera. Esse olhar incide, com todas as conseqüências, diretamente no olho do espectador, que parece ficar bastante surpreso e confuso. De fato, o ato interrompe a representação, fazendo explodir a ilusão e a segurança do espectador.. Esse olhar instaura uma zona de desconfiança e inquietação, provocando uma sutil desagregação do fluxo do filme, um tipo de vertigem que causa uma dispersão de sua pretensa verdade narrativa. A força do olhar, capaz de tantas conseqüências, decorre do fato de ele suscitar um descongelamento da imagem, de fornecer uma vida efetiva a ela. Ele desperta a imagem, anima-a, inscrevendo-a no fluxo da vida, remetendo-a dessa maneira para fora da linguagem do cinema-instituição. Isso não é certamente pouco. Até hoje nos sentimos incomodados por tal olhar, embora esse recurso tenha sido explorado por vários tipos de filmes, que o banalizaram: é comum encontrá-lo, ainda que de forma desfigurada, na publicidade ou no cinema pornô.
Algo análogo ocorre com o filme de Michelangelo Antonioni, Blow-up, que pode ser considerado como um dos que mais levaram a cabo a tarefa de refletir criticamente sobre a natureza da linguagem cinematográfica. O filme pode ser interpretado como uma reflexão sobre as possibilidades da imagem no âmbito da fotografia, do cinema e até mesmo da pintura. Não é por acaso que o personagem central dele seja um fotógrafo. Não um fotógrafo qualquer: ele parece ser um herdeiro direto de Atget, cujas fotografias lograram dar um golpe mortal na aura, que insistia em sobreviver mesmo no novo meio. Isso fica muito evidente quando, munido de uma máquina fotográfica, se dirige a um parque para fotografá-lo. Como Atget, interessa-o o parque vazio, sem qualquer presença humana. Ele parece querer captá-lo em suas diferentes nuances de luz e sombra, formas e cores. Pode-se, com segurança, dizer que ele pretende produzir imagens não-auráticas. Todavia, depois de fotografá-lo, ao retornar ao laboratório e iniciar a revelação dos negativos, ele se depara com uma enorme surpresa: eis que surge na foto uma pequena discrepância, algo verdadeiramente incomum, um pequeno ponto obscuro indecifrável ao frágil olho humano. Recorre então à ampliação delas, e a imagem que aparece, com a extrema proximidade dos detalhes, é a cena exata de um crime!Volta então ao local imediatamente, mas, lá chegando, constata não haver vestígio algum de tal crime. O que significa isso?Muito provavelmente, que a ampliação, com a radical proximidade dos detalhes e a conseqüente granulação da imagem, geradora de formas incertas, já não se presta a uma leitura orientada, pois ela cria sua própria realidade formal, exatamente como a linguagem da pintura. A linguagem cinematográfica é entendida aqui como criadora de formas, e não como reprodutora da realidade.
Debord, embora reconheça o forte inconformismo desse tipo de filme com a sorte do cinema no capitalismo, conclui que ele não pode assumir outras tarefas e nem mesmo contestar com fôlego longo a produção cinematográfica enquanto instituição. Para ele, que não quer simplesmente contestar ou transformar o cinema, mas sim toda a sociedade, o cinema dominante duplica o existente: suas imagens o propagam e o alardeiam. Como fetiche, a imagem cinematográfica congela a vida social mimetizando-a. Sua pretensão é a de simular que ela transmite a vida correta. Por esse motivo, Debord não pretende simplesmente produzir ou realizar filmes, até porque essa decisão já serviria para abastecer o aparato produtivo do cinema-espetacular. Para contestar a sociedade do espetáculo, ele recorre à criação de uma espécie de filme “terrorista”, inapropriável pelo aparato produtivo espetacular.
O anti-cinema de Debord consiste basicamente de uma frenética atividade dedicada a desviar, seqüestrar, desorganizar as imagens produzidas pelo cinema reificado. Essa prática recebe um nome: ”detournement”(que, em português, foi traduzido como desvio) Segundo um comentarista, “detournement” significa “a linguagem fluída da anti-ideologia”.Esse procedimento implica em destacar o papel da montagem, que deve deixar de ser meramente requerida pelo meio a fim de se tornar um princípio e uma atividade de primeiro plano, ou seja, alçada à condição de operação consciente , dotada de grande significação política,capaz de produzir uma significativa carga explosiva nas imagens desviadas.A montagem, nesse sentido,consistiria, grosso modo,em arrancar uma imagem ou um elemento de seu contexto original para inseri-lo em outro, no qual ela adquiriria significados imprevistos, mostrando sua natureza ou caráter. Essa operação não parece estar muito distante da colagem praticada inicialmente pelos dadaístas e depois, com contundência e radicalidade, pelos surrealistas.
Assim concebida, a montagem implica dois procedimentos: a interrupção e a repetição. Repetir e interromper, como se pode notar, tem afinidades com o pensamento de Benjamin. (Não é demais lembrar a afirmação de Benjamin na Tese 15 das Teses sobre a filosofia da história: “A consciência de explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias.”) A repetição na montagem não aponta para a afirmação do mesmo, mas como algo relacionado, de alguma maneira, com o passado: ela remete para o não-esquecimento, ou seja, para a atividade da memória, que teima em rememorar o passado para descongelá-lo.
Referências bibliográficas
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----------------- Resume Indústria Cultural.IN Cohn, G (org) Adorno. São Paulo, Ática,1986.
----------------Mínima Morália. São Paulo, Ed Ática,1992.
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-------------------- A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. IN:Obras Escolhidas de W Benjamin, Vol. I, São Paulo, 1985.Tradução Sérgio Paulo Rouanet.
--------------------L’ouvre d’art a l’epoque de su reprodution mecanisée. In:Benjamin, Ecrits Français. Paris, Gallimard, 1991
-------------------Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Baudelaire, Charles. Um Lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas, vol. III, São Paulo, Ed Brasiliense,1989.
------------------O autor como produtor. Obras Escolhidas, vol I, São Paulo, Ed Brasiliense,1985.
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ROCHLITZ,R. A filosofia de Walter Benjamin: o desencantamento da arte. Bauru, Edusc,2003.
[1] A imagem do cinema aparece sempre relacionada a um vazio, a uma tela negra. A imagem aparece pós 1/48 avos de segundo, para então desaparecer em uma escuridão que perdura iguais 1/48 avos de segundo. Essa seqüência imagem/tela negra/imagem/tela negra resulta na exposição de 24 fotogramas por segundo. Esse fenômeno é conhecido como “persistência retiniana”.
[2] Missac faz referência a uma formulação que aparece na primeira versão do ensaio de Benjamin: “A fórmula que exprime a estrutura dialética do filme em função de seu aspecto técnico é dada pelas imagens descontinuas que se dissolvem numa seqüência contínua” (MISSAC, 1998, p. 126).
[3] Missac não deixa de sugerir, nessa análise sobre as alterações do modo de configurar o tempo na história do cinema, certa proximidade terminológica entre a concepção do filme e a desenvolvida nas Teses sobre a Filosofia da História.
[4] Na Europa, diferentemente do que ocorre nos EUA, o filme é propriedade do diretor. Assim, o destino dele é sempre administrado pelo diretor. Nos EUA, o filme é propriedade de quem o financiou. Desse modo, ele pode ser reeditado, cortado, reenquadrado à revelia do diretor. Isso explica o fato de não encontrarmos muitos filmes europeus nos programas de televisão, pois a adaptação altera o filme.