26/04/2024

Variações sobre um filme-sinfonia na crítica de Siegfried Kracauer

Por

 

Danielle Corpas
Univ. Federal do Rio de Janeiro.
 
Os dois extremos cronológicos do pensamento de Siegfried Kracauer sobre o cinema – suas críticas jornalísticas dos anos 1920 e seu tratado teórico publicado em 1960 – são com frequência considerados radicalmente distintos. Mas podem ser aproximados. Para dar uma amostra dessa possibilidade, tomaremos aqui como eixo suas observações sobre Berlim, sinfonia da metrópole (1927), filme de Walter Ruttmann que documenta com acentos vanguardistas um dia na cidade alemã. A trajetória completa das variações na crítica de Kracauer a Berlim inclui ainda De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão (1947), mas deixaremos de lado esse momento intermediário para ressaltar os nexos entre os outros dois.
O primeiro momento a ser levado em conta corresponde à fase do brilhante ensaísmo de Kracauer, produzido entre meados da década de 1920 e o início dos anos 30, quando ele era colaborador e depois editor do suplemento cultural do jornal Frankfurter Zeitung. Publicou aí centenas de artigos curtos sobre filmes e diversos outros assuntos, inaugurando uma crítica pioneira da cultura de massa. É também dessa época, precisamente de 1930, seu originalíssimo estudo sobre o universo dos trabalhadores de escritórios e grandes lojas berlinenses, Die Angestellten [Os empregados]. No prefácio, Kracauer justifica a escolha de Berlim para a heterodoxa pesquisa de campo da qual se valeu: “Berlín, a diferencia de todas las demás ciudades y regiones alemanas, es el lugar en que la situación de los empregados se muestra de modo más extremo. Sólo es posible acceder a la realidad a partir de sus extremos” (KRACAUER, 2008a: 105). Berlim figurava então para o ensaísta como pedra de toque para a reflexão sobre a vida moderna. Desde 1925 Kracauer já publicava pequenos artigos que flagravam detalhes do cotidiano em cidades como a atual capital alemã e Paris, posteriormente reunidos no volume Strassen in Berlin und anderswo [Ruas em Berlim e noutras partes] (1964). São textos que funcionam como “miniaturas urbanas”, compostos com verve literária, concentrados na superfície visível de fenômenos, objetos e figuras humanas muitas vezes banalíssimos. Neles, o autor esquadrinhava tendências e tensões da modernização acelerada em curso nas metrópoles europeias.
É, portanto, atento àquilo que, em “O ornamento da massa” (1927) chama de “manifestações de superfície” (KRACAUER, 2009a: 91) – e atento especialmente às que ocorrem em grandes cidades –, que o crítico encara Berlim, sinfonia da metrópole como uma tremenda decepção. Registrou seu descontentamento em artigos no Frankfurter Zeitung dos dias 17 de novembro de 1927 (“Wir schaffens”), 12 de outubro de 1928 (“Tonbildfilm. Zur Vorführung im Frankfurter Gloria-Palast”), 1º de dezembro de 1928 (“Der heutige Film und sein Publikum”, republicado sob o título “Cinema, 1928” em O ornamento da massa) e 19 de maio de 1929 (“Der Mann mit den Kinoapparat. Ein neuer russischer Film”).  
Em linhas gerais, nesses quatro artigos o juízo sobre Berlim mantém-se invariável. Kracauer reconhece que são notáveis as hábeis fusões, a perspectiva transversal, a técnica irrepreensível de fotografia, a imaginação plástica que orquestra detalhes inauditos da configuração urbana. Mas contesta: o que resulta de todo esse apuro técnico não é uma representação à altura da complexidade daquela metrópole.
O problema posto em relevo já em 1927 é que a equipe criadora parece menos interessada em “mostrar uma metrópole como ela realmente é” do que em realizar um filme-sinfonia. Por isso falha na apresentação do objeto-título, dando a ver apenas uma concepção de Berlim previamente estabelecida pelas “ideias literárias” que comandam a composição. Assim, o que se apresenta no filme é “a cidade em que a velocidade em si e o trabalho celebram suas orgias”. Para o crítico, a montagem de cenas em frenesi associativo ou por contraposição resulta eminentemente em “soma de imagens confusas”, “proximidade sem sentido do esplendor e da miséria, da direita e da esquerda, [...] contrastes não resolvidos”. Não se alcança, com isso, dar conta de uma Berlim que, para Kracauer, “vista de dentro, possui certa estrutura que lhe confere solidez” (KRACAUER, 2008b: 87-88).
Um ano depois dessa crítica de primeira hora, um parágrafo de “Cinema, 1928” reitera numa síntese as mesmas objeções ao “interessante filme-sinfonia” que “permite que a metrópole surja como resultado duma sequência de caminhos microscópicos individuais”:
 
Em vez de penetrar neste imenso objeto para obter uma compreensão autêntica de sua estrutura social, econômica e política, em vez de observá-lo de modo humanamente interessado ou mesmo de atracá-lo de um ponto de vista privilegiado para participar dele com decisão, Ruttmann libera milhões de detalhes desconectados que coexistem um ao lado do outro, inserindo no máximo transições engenhosas que são vazias de conteúdo. Em todo caso, o filme tem por base a ideia de que Berlim seja a cidade da velocidade e do trabalho – uma ideia formal, que, antes de tudo, não leva a nenhum conteúdo e talvez por isto intoxica o pequeno-burguês alemão tanto na sociedade como na literatura. Não há nada para ser visto nesta sinfonia, porque não mostra nem uma única conexão dotada de sentido (KRACAUER, 2009b: 340)[1].
 
O comentário termina com a citação de um trecho de Pudovkin que repreende a “falta de ordenação interna” em filmes que assumem a montagem como “único centro organizador” – o que Kracauer identifica como “clara estocada contra Ruttmann”. Até nisso a passagem de 1928 reitera a crítica do ano anterior, que também toma o partido dos “grandes filmes russos”, elogiando a “significação humana” de que se revestem objetos e lugares tal como exibidos neles, à diferença da falta de sentido com que se alinham como “farrapos” em Berlim. E em 1929, na crítica dedicada a Um homem com uma câmera há uma nova comparação com a vanguarda soviética, pela qual Kracauer nutria grande apreço: enquanto no filme de Ruttmann as associações parecem-lhe “puramente formais”, sobre o de Vertov afirma que, pela correlação entre “fragmentos de realidade”, a montagem lhes confere sentido; enquanto Ruttmann justapõe fragmentos sem os esclarecer, Vertov os interpreta ao apresentá-los (KRACAUER, 2008c: 96-97).
Nessas primeiras considerações de Kracauer sobre Berlim, sinfonia da metrópole conjugam-se alguns aspectos importantes de seu pensamento no final dos anos 1920.
Primeiro, a visada micrológica, o interesse, tributário da sociologia de Georg Simmel, por fenômenos aparentemente sem importância, miudezas da vida cotidiana. Daí que considere ao menos “interessante”, em 1928, que no filme-sinfonia “a metrópole surja como resultado duma sequência de caminhos microscópicos individuais”.
Osegundo aspecto digno de nota é a rejeição da prevalência de qualquer “ideia formal” que de antemão imponha sentido à matéria em jogo (no caso do filme de Ruttmann, a ideia de que Berlim seja a cidade da velocidade e do trabalho, que segundo o crítico comanda a montagem). Vale para essa objeção um comentário de Carlos Eduardo Jordão Machado a propósito do juízo de Kracauer sobre o romance-reportagem, em voga na Alemanha também na virada para a década de 1930: trata-se de uma posição sutil, nem de defesa da “abstratividade de conceitos que não dão conta da realidade, tampouco do registro do imediato da mera empiria, do factual” (MACHADO, 2013: 88). O que o crítico põe em xeque é o resultado da reunião de elementos de caráter documental na composição estética. No caso de Um homem com uma câmera, a intervenção do cinegrafista-personagem é decisiva, é graças a sua mediação que se penetra na “superfície das coisas” e afloram “os confins obscuros da jornada organizada” (KRACAUER, 2008c: 98). No caso de Berlim, em que o somatório de tomadas mantém as partes do objeto desconectadas (a não ser por meras contiguidades), não se estrutura nenhum dispositivo que permita “penetrar neste imenso objeto para obter uma compreensão autêntica de sua estrutura social, econômica e política” (KRACAUER, 2009b: 340).
Parece que o que Kracauer reclama ao filme de Walter Ruttmann seria um equivalente estético da síntese crítica que ele mesmo efetuava ao abordar “manifestações de superfície” também enfocadas no filme-sinfonia. Há muitos pontos temáticos em comum especialmente entre o Ato V, que se concentra nas opções de lazer na noite berlinense, e ensaios de Kracauer como Die Angestellten, “O ornamento da massa”, “A viagem e a dança” (1925) e “Culto da distração” (1926). Refletindo sobre as mesmas modalidades de entretenimento acompanhadas pela câmera de Berlim (competições esportivas, dança de salão sincopada, atrações exibidas nos grandes cineteatros), Kracauer identifica, naquelas “manifestações de superfície”, a figuração de um princípio estruturante da vida social. Constata, por exemplo, a propósito dos espetáculos de dança sincronizada, que o “ornamento da massa é o reflexo estético da racionalidade aspirada pelo sistema econômico dominante” (KRACAUER, 2009a: 95).
Fica bastante compreensível, a partir de passagens como essa, o desagrado do Kracauer de fins da década de 1920 com o filme no qual, se há um princípio geral a reger a “cidade da velocidade e do trabalho”, tal princípio parece reafirmado em uma continuidade irreversível – uma continuidade afinal celebrada, nos últimos quadros de Berlim, sinfonia da metrópole, com os fogos de artifício e o sinal de progresso tecnológico transmitido na luz da torre de metal que atravessa a noite em direção ao espectador. Em outras palavras: aquilo que para Kracauer constitui questão candente aparece naturalizado no filme pela lógica de relação formal, pela ordenação sinfônica entre os fragmentos de experiência coletiva documentados.    
Isso nos conduz a outro aspecto relevante no modo como Kracauer aborda o cinema na virada para a década de 1930: a dimensão política de sua crítica, sinalizada já no título do artigo de 1927 sobre Berlim. O irônico título “Wir schaffens” (algo como “Vamos conseguir fazer”, “Vamos realizar”) reproduz uma máxima de Erich Ludendorff que, segundo Kracauer, serviria de “divisa” ao filme. Tem significado muito preciso em 1927 essa sugestão de alinhamento entre o projeto estético levado a cabo em Berlim e a visão do progresso nacional propagada no slogan de Ludendorff, general alemão potentado no final da Primeira Guerra, um dos militares que apoiou Hitler no Putsch de Munique em 1923, eleito para o parlamento no ano seguinte por uma coligação do Partido Nazista, derrotado nas eleições presidenciais de 1925. E essa alusão a Ludendorff torna-se ainda mais significativa a posteriori, ganha quase ares de prognóstico, se lembrarmos que Walter Ruttmann assina com Leni Riefenstahl e Eberhard Taubert o roteiro de Triunfo da vontade (1935), o filme emblemático da propaganda nazista.
Passando agora ao outro extremo da obra de Kracauer, vejamos os breves comentários sobre o filme de Ruttmann em passagens de Theory of film: the redemption of physical reality, o tratado sobre cinema publicado em 1960. Trata-se de um projeto concebido ainda na virada para a década de 1940, quando o autor vivia exilado na França, para onde partiu em 1933. Ele retoma o projeto nos EUA, a partir de 1948, e o resultado final, consideravelmente distinto dos primeiros esboços, foi alvo de duras críticas, acusado de ser normativo em sua sistematicidade, restritivo em sua defesa do realismo e idealista em sua concepção do meio cinematográfico como via de “redenção”.
Em três das cinco vezes nas quais Berlim é mencionado em Theory of film, a alusão é muito rápida, em meio a outros títulos elencados como exemplos de produções que ilustram peculiaridades do meio cinematográfico ou de gêneros específicos. Apenas em duas ocasiões aparecem resumidas, e em tom abrandado, aquelas objeções ao filme de Ruttmann desenvolvidas em textos anteriores.
O comentário mais extenso ocupa apenas dois parágrafos do capítulo 11. Mais uma vez, Kracauer reconhece a qualidade fotográfica do filme-sinfonia para em seguida contestar o resultado das justaposições, contrastes e analogias ordenadas pelo ritmo, que a seu ver desviam a atenção do público da substância das imagens para fazê-lo absorver significações intencionalmente arquitetadas na dinâmica da montagem. Antes, no capítulo 4, já havia insistido no caráter decorativo e um tanto óbvio dos contrastes e analogias que apresentam ocorrências cotidianas na metrópole como fenômenos simultâneos. Segundo Kracauer, uma das cinco afinidades inerentes ao cinema é com a infinidade (“como se o meio fosse animado pelo desejo quimérico de estabelecer o continuum da existência física”). A simultaneidade, a impressão de que os fenômenos exibidos se oferecem à vista ao mesmo tempo, gera no espectador sensação de onipresença e constitui uma das alternativas para “cobrir vastas extensões da realidade física”. Porém, segundo o teórico, tal compreensão abrangente do mundo visível franqueada ao cinema, que parece pretendida por Ruttmann com o corte transversal, resulta em Berlim apenas em padrões distinguíveis de movimentos e formas (KRACAUER, 1997: 63-65)[2].
Em ambas as passagens, as observações sobre Berlim reverberam critérios anteriores de avaliação da produção cinematográfica, remodelados na cifra teórica que argumenta em prol da prevalência da inclinação realista sobre a formalista no tratamento do material captado pela câmera. Mas isso não significa que Kracauer, em Theory of film, seja orientado pela defesa de realismo estrito na representação cinematográfica, de realismo ingênuo ou especular, como acusaram alguns de seus críticos. Um sinal disso é o fato de que, no comentário mais detido sobre Berlim, a indiferença do filme de Ruttmann em relação ao mundo visível é demonstrada por meio de comparação com Entr’acte (1924), o curta dirigido por René Clair para ser exibido no intervalo entre os dois atos do balé vanguardista Relâche, concebido por Francis Picabia e Erik Satie.
O curta de René Clair é valorizado por sua disposição jocosa que, segundo Kracauer, “confirma, em vez de obstruir, o espírito do meio” cinematográfico. As associações tão livres, ao modo de sonho, pautadas por analogias, por contrastes, pela mera relação plástica ou mesmo por nenhum princípio reconhecível, essas relações diversas e imprevisíveis entre as coisas distinguem-se dos encadeamentos operados no filme de Ruttmann. Ao documentário-sinfonia, Kracauer prefere a fantasia dadá-surrealista que, brincando, às vezes aleatoriamente, com objetos dissimilares, mantém preservada na tela sua “integridade”, o potencial de significação de cada objeto e de cada sucessão de tomadas. Isso porque, no filme de René Clair, não se sobrepõe à matéria visual “uma rede de relações ornamentais que tendem a substituir as coisas das quais derivam”, uma lógica generalizada. Kracauer prefere a montagem na qual a câmera sobe, como se fosse num só corpo, das pernas de bailarina com tutu ao close no rosto de um homem barbado – o que quebra qualquer expectativa alimentada com a recorrência das sequências de pernas de bailarina dançando ­em Entr’acte – ao tipo de montagem na qual se sucedem patas bovinas e pernas humanas em Berlim (para sugerir, obviamente, equivalência entre massa humana e rebanho). Em Berlim, a ênfase sistemática em similaridades ou em contrastes naturaliza, conforme segue o filme, determinados sentidos para as imagens que compõem o conjunto, acomodando o espectador a contemplá-las como evidências de uma lógica geral que traduziria a metrópole. Em Entr’acte, o descabimento e a imprevisibilidade das relações entre cenas, aliados à qualidade da filmagem e à composição dos quadros, concentram a atenção na peculiaridade de cada elemento. E nada acomoda, nem mesmo o ritmo cadenciado que impera na segunda parte do curta – o burlesco funeral que termina em mágica à la Méliès (KRACAUER, 1997: 82-83; 207).
Como se pode notar pela comparação entre Berlim e o nada naturalista Entr’acte, a posição de Kracauer em Theory of film não se reduz de modo algum a defesa de realismo simplista. Pleiteia, sim, que a qualidade estética de um filme é diretamente proporcional a sua fidelidade às possibilidades de mimesis peculiares ao meio cinematográfico, e que tal fidelidade tende a se realizar de maneira eficaz quando o engenho inventivo na composição se coloca a serviço da disposição de proporcionar ao espectador a possibilidade de ver melhor o mundo. Nos termos do “Epílogo” de Theory of film:
 
O filme torna visível aquilo que não víamos – ou que talvez não pudéssemos mesmo ver – antes de seu advento. Efetivamente nos ajuda a descobrir o mundo material com suas correspondências psicofísicas. Literalmente, redimimos esse mundo de seu estado de inércia, de seu estado de virtual não existência, quando logramos experimentá-lo através da câmera. [...]. O cinema pode ser definido como um meio particularmente equipado para promover a redenção da realidade física. Suas imagens nos permitem, pela primeira vez, nos apropriarmos dos objetos e ocorrências que constituem o fluxo da vida material. (KRACAUER, 1997: 300)
 
Os juízos sobre filmes em Theory of film radicam-se nessa concepção de experiência do cinema na qual fruição e cognição convergem para “redenção da realidade física”. Se o cinema se oferece como dreamland (expressão decisiva no nexo que se estabelece entre o Epílogo e o capítulo 9, central, dedicado aos efeitos e gratificações que o filme proporciona ao espectador), na medida mesmo em que absorve o observador no fluxo das imagens em movimento, o meio cinematográfico guarda o potencial – e é nesse potencial que investe a reflexão de Kracauer – de abrir margem para uma percepção desperta. Para uma atenção à materialidade de cada objeto e de cada ocorrência que escapa à determinação de abstrações conceituais, voltando-se para a particularidade dos fenômenos, a serem decodificados um a um. A noção de “redenção” vincula-se, portanto, ao potencial de conhecimento do mundo objetivo que não se põe imediatamente ao alcance da compreensão, que tocamos “só com a ponta dos dedos” (KRACAUER, 1997: 294-297). Dagmar Barnouw tem razão quando explica que o termo redemption, no livro de 1960, traduz-se melhor pelo alemão einlösen (remir, resgatar, recuperar objetos empenhados ou erroneamente julgados inúteis) do que por erlösen (salvar, libertar, redimir), palavra de conotação religiosa importante no pensamento de Walter Benjamin (BARNOUW, 1994: 54).
A primeira menção a Berlim, sinfonia da metrópole em Theory of film ocorre a propósito de uma constante da cinematografia dos anos 1920-30 em que se explicita esse sentido de resgate das coisas postas de lado pela percepção imediata do mundo objetivo. É na sessão que trata daquilo que normalmente não vemos e que o filme tem possibilidade de abarcar – o muito pequeno, o muito grande, o que é transitório e aquilo que fica encapsulado em “pontos cegos da mente”, sob o véu dos hábitos mentais. Esse é o caso do refugo, que Kracauer assinala como objeto atraente para a câmera, lembrando as grades de esgoto, sarjetas e detritos focados em várias tomadas de Berlim. Nessa passagem do livro de 1960, um termo empregado à primeira vista aleatoriamente pode ser lido como uma ponte entre extremos da obra de Kracauer separados por cerca de quatro décadas, vinculando o tratado, de um lado, a Die Angestellten e ao ensaio “A fotografia” (1924)e, de outro lado, a History: the last things before the last, livro em que o autor trabalhava quando morreu, publicado em 1969, decorrente das reflexões sobre cinema às quais Kracauer se dedicou por tantos anos. O trecho a respeito de Berlim que permite observar nexos entre esses momentos diversos é aquele em que se afirma que, com sua “curiosidade inata” pelo que há de rebotalho desconsiderado no cotidiano, a câmera cinematográfica desempenha função de catador de lixo, trapeiro [rag-picker] (KRACAUER, 1997: 54). A imagem do trapeiro, que parece não ser imprescindível à argumentação em Theory of film, que parece meramente ilustrativa de uma característica do meio cinematográfico, vincula-se meandros importantes do pensamento de Kracauer, que se prolongam da década de 20 à de 60.
No caso do ensaio “A fotografia” (republicado em O ornamento da massa) não se delineia a figura do trapeiro, mas a relação que interessa indicar se estabelece de modo indireto por conta da imagem do resíduo, que atravessa toda a segunda metade do texto, a partir da afirmação de que “a fotografia retém o resíduo do qual a história se despediu”. Os elementos depositados na imagem fotográfica são descritos como sedimentos de uma unidade desintegrada (a cena fotografada): “A repetição de velhas modinhas ou a leitura de cartas que foram escritas no passado evocam, como a imagem fotográfica, uma unidade que se desintegrou”. Na fotografia, se refletem resíduos da realidade objetiva ou, como nomeia Kracauer, da natureza, pois a “medida humana” se desvanece conforme passa o tempo, conforme a poeira do tempo vai soterrando a história das vidas do passado, restando apenas a materialidade objetal das coisas visíveis na imagem, inclusive as pessoas. Resultaria em digressão muito longa pormenorizar aqui as formulações decorrentes desta proposição, mas é importante deixar assinalada essa imagem, dos resíduos da história (Cf. KRACAUER, 2009c: 63-80).
Na outra ponta da obra de Kracauer, no livro póstumo sobre historiografia, um dos motes principais é a “tradição das causas perdidas”, o empenho em resgatar do esquecimento mesmo o que parece mais banal e fugaz. Em função disso, num passo a propósito da história técnica, da dedicação ao registro pormenorizado de fatos, Kracauer evoca a figura do colecionador. Miguel Vedda, associando essa passagem de History a Theory of film, esclarece que a comparação do historiador ao colecionador a rigor ecoa uma outra figura, a do trapeiro, aquela com que Benjamin se refere ao autor de Die Angestellten. O interesse de Kracauer por miudezas desconsideradas e sua esperança depositada na redenção da realidade física se relacionam com o desejo de uma “reintegração utópica do disperso”, similar ao de Walter Benjamin. Vedda nota que ambos agem como trapeiros que “percorrem uma realidade degradada, recolhendo os resíduos da história, com vistas a acender nela uma fagulha de esperança” (VEDDA, 2011: 151).
É verdade que o singular engajamento estético-político que emanava dos escritos de Kracauer entre a década de 1920 e o início da de 30, aquilo que Benjamin elogiou como empenho de “politização da própria classe”, “influência indireta” que seria “a única que hoje pode propor-se um autor revolucionário procedente da classe burguesa” (BENJAMIN, 2008: 100), isso parece eclipsado no tratado sobre cinema. Mas tal disposição ainda tem alguma ressonância nas últimas obras de Kracauer, em posições como a discreta valorização do resíduo e da figura do trapeiro, que funcionam como imagens de resistência inscritas na concepção final de cinema e na visão da história que deriva dela. Uma resistência contemplativa, melancólica, simbólica, mas que ainda assim confere tom de densidade propositiva ao tratado de 1960, aparentemente preocupado apenas em sistematizar o modus operandi do meio cinematográfico.
 
 
 
Bibliografia
BARNOUW, D., Critical Realism: History, Photography and the Work of Siegfried Kracauer, Baltimore; Londres: The Johns Hopkins University Press, 1994.
BENJAMIN, W., “Prólogo: Sobre la politización de los intelectuales”, in KRACAUER, S. Los empleados.Un aspecto de la Alemania más reciente, Trad. M. Vedda, Barcelona: Gedisa, 2008, pp. 93-101.
KRACAUER, S., Theory of Film: The Redemption of Physical Reality. Princeton: Princeton University Press, 1997.
–, Los empleados. Un aspecto de la Alemania más reciente, Trad. M. Vedda, Barcelona: Gedisa, 2008a.
–, “On y va arriver”, in KRACAUER, S., Le voyage et la danse. Figures de ville et vues de films. Textes choisis et présentés par Ph. Despoix, Trad. S. Cornille, Paris: Éditions de la maison des sciences de l’homme; Les Presses de l’Université Laval, 2008b, pp. 87-88.
–, “L’homme à la caméra”, in KRACAUER, S., Le voyage et la danse. Figures de ville et vues de films. Textes choisis et présentés par Ph. Despoix, Trad. S. Cornille, Paris: Éditions de la maison des sciences de l’homme; Les Presses de l’Université Laval, 2008c, pp. 95-98.
–, “Film sonore”, in KRACAUER, S., Le voyage et la danse. Figures de ville et vues de films. Textes choisis et présentés par Ph. Despoix, Trad. S. Cornille, Paris: Éditions de la maison des sciences de l’homme; Les Presses de l’Université Laval, 2008d, pp. 104-106.
–, “O ornamento da massa”, in O ornamento da massa: ensaios, Trad. C. E. J. Machado e M. Holzhausen, São Paulo: Cosac Naify, 2009a, pp. 91-103.
–, “Cinema, 1928”, in O ornamento da massa: ensaios, Trad. C. E. J. Machado e M. Holzhausen, São Paulo: Cosac Naify, 2009b, pp. 327-342.
–, “A fotografia”, in O ornamento da massa: ensaios, Trad. C. E. J. Machado e M. Holzhausen, São Paulo: Cosac Naify, 2009c, pp. 63-80.
–, Historia: las últimas cosas antes de las últimas, Trad. G. Marando e A. D’Ambrosio, Buenos Aires: Las Cuarenta, 2010.
–, “Wir schaffens”, in filmportal.de, filmportal.de/?id=51535/material/764620>. [Consulta: 23 de julho de 2013].
MACHADO, C.. “A crítica de Siegfried Kracauer ao romance-reportagem – ou o ‘caso Brecht’”, in Impulso, Piracicaba, Volume 23, Número 57, maio-set. 2013, pp. 87-101.
VEDDA, M., “‘El completo ensamblaje de los más pequenos hechos’. Acerca de las reflexiones de Siegfried Kracauer y Walter Benjamin en torno a la fotografía”, in La irrealidad de la desesperación. Estudios sobre Siegfried Kracauer y Walter Benjamin. Buenos Aires: Gorla, 2011, pp. 143-189.


[1] Menos de dois meses antes, no artigo “Tonbildfilm. Zur Vorführung im Frankfurter Gloria-Palast”, em que comenta Deutscher Rundfunk (1928), outra “experiência interessante” de Walter Ruttmann, Kracauer já havia insistido na investida contra a subordinação das tomadas em Berlim à “ideia literária estrangeira à imagem” (KRACAUER, 2008d: 103-104).
[2] As “afinidades inerentes” ao meio cinematográfico que são tema do quarto capítulo de Theory of film definem perspectivas para o conhecimento que Kracauer valoriza no cinema e associa à noção de “redenção da realidade física”. Quatro dessas afinidades são compartilhadas com a fotografia e abordadas já no primeiro capítulo do livro (além da infinidade, o fortuito, o indeterminado e o não encenado [unstaged]). A quinta, peculiar ao cinema, é definida, de modo um tanto vago, como the flow of life ou “continuum da vida”, “o curso de situações materiais e acontecimentos, com tudo o que implicam em termos de emoções, valores e pensamentos” (p. 71). Berlim também é mencionado entre os filmes que, flagrando o cotidiano em grandes cidades, propõem-se a lidar com o “fluxo da vida” (ver p. 273).

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