29/03/2024

A atualidade do passado clássico na Alemanha: interpretação lukácsiana de Goethe

Sartre disse, certa vez, que podemos ser donos de nossa reputação somente até o momento de nossa morte. Depois disso, ela não mais nos pertence. Tal afirmação, a princípio banal enquanto frase abstrata, reveste-se de grande importância quando estudamos a recepção da obra de Goethe após a sua morte, em 1832. Por ter vivido no epicentro do período mais luminoso da filosofia e da literatura alemã, a imagem de Goethe como ícone maior da cultura literária alemã foi construída não somente pela importância intrínseca de sua obra, marcada quase sempre pelo profundo compromisso com a realidade de seu tempo, mas também pela apropriação que dela fizeram os diferentes períodos históricos que lhe sucederam. Nesta pequena comunicação, falo sobre um momento específico, mas profundamente revolucionário do ponto de vista das melhores tradições histórico-filosóficas materialistas, da recepção da obra de Goethe no próprio interior da cultura alemã. A interpretação lukácsiana madura de Goethe.
O resgate da importância de Goethe e do “Classicismo de Weimar” esteve no centro da crítica literária do velho Lukács. O filósofo húngaro enxergava nelas alguns dos elementos intelectuais capitais, imediatamente precursores e instigadores do pensamento de Marx. Mais do que isso, foi na oposição de Goethe ao enrijecimento iluminista de seu tempo, e, mais tarde, ao idealismo filosófico veiculado pela geração romântica que Lukács reconheceu um momento crítico fundamental, porquanto fornecia elementos para a construção de uma pretendida estética marxista.

Mas, voltemos um pouco no tempo. Nas três obras de juventude (que projetaram Lukács internacionalmente antes mesmo de sua adesão ao marxismo) – História do desenvolvimento do drama moderno, A alma e as formas e A teoria do romance – avulta a figura relativamente isolada de Goethe no conjunto da literatura universal. Particularmente nas duas últimas obras citadas, a visão de mundo de Goethe (que o jovem Lukács via condensada nos Anos de aprendizado de Wilhelm Meister) surge como uma esperança, um projeto literário absolutamente consciente de seus objetivos – ainda que fracassados em seus resultados finais (cf. Teoria do romance) – de reconciliação do ser humano com a vida social, da luta pela formação artística do sujeito em meio à luta contra as soluções puramente estéticas e subjetivas. Fracassado ou não, Goethe representa para o jovem Lukács um contraponto ao projeto ideológico de Novalis, que, pelo seu descolamento da vida empírica concreta, redundara no fim trágico e prematuro do grande poeta romântico (cf. A alma e as formas). O Lukács de então, ao contrário de seu mestre Georg Simmel, não poderia considerar (como Novalis) o mundo da poesia como palco exclusivo das verdadeiras mudanças espirituais da humanidade. Se existem nexos entre literatura e realidade, como pensava Lukács, então o âmbito da estética não se mostraria imune à alienação, à incidência das “vivências inessenciais” da vida empírica. Portanto, a ensaística literária de Lukács era tida por ele próprio como parte integrante de sua crítica filosófica à inessencialidade da vida moderna. Daí que Goethe toma parte no pensamento do jovem Lukács como o primeiro autor burguês que, isoladamente, tenta resolver literariamente o problema da representação da busca “demoníaca” do sujeito “problemático” moderno por uma vida plena, em meio a um mundo e uma arte inteiramente inadequados, porque inessenciais.
No início de sua fase de “maturidade” filosófica, a partir do final dos anos 20, Lukács passou a estudar metodicamente Goethe e o Classicismo de Weimar sob a ótica do desenvolvimento do materialismo dialético. A admiração por Goethe fixou-se evidentemente em função da busca, em meio a um ambiente político marcado na Alemanha pela polarização crescente entre o fascismo e o revolucionarismo comunista, do ponto de interseção entre a “velha cultura burguesa” e a “nova cultura proletária”. No front cultural, o antagonismo de classes expressava-se de forma maniqueísta na luta estabelecida pela oficialidade comunista entre o “realismo socialista” e o “passado cultural burguês” (a Rússia também experimentara algo semelhante, no debate entre Lênin e Trotski, de um lado, e “proletcultistas” de outro). Se, no plano político, restringiam-se os espaços para qualquer aliança dos comunistas com os socialistas e os liberais antifascistas, no plano crítico-literário grassava entre a esquerda revolucionária comunista uma forte hostilidade à “herança burguesa” do passado, especialmente com relação a alguns de seus representantes mais eminentes que não haviam se pronunciado claramente em favor dos movimentos de massas de seu tempo – como foi o caso de Goethe.
A publicação de História e consciência de classe em 1923, livro posteriormente refutado pelo próprio Lukács em função de algumas incorreções filosóficas que o mesmo aponta no conhecido prefácio de 1967, marca o caráter pioneiro dos estudos lukácsianos sobre a alienação no capitalismo. Lembremo-nos que a publicação em Moscou dos famosos Manuscritos Econômico-Filosóficos do jovem Marx de 1844 somente aconteceu quase 90 anos depois de redigidos, em 1932. Lembremo-nos de que somente com a publicação dos manuscritos marxianos as pesquisas consagradas em História e consciência de classe confirmaram-se como fundamentalmente corretas: as pesquisas contidas em O capital têm como origem as investigações de Marx sobre a alienação e o empenho do mesmo em aproveitar e repor a dialética de Hegel sobre uma base materialista.
A partir destas conclusões, Lukács estudou pioneiramente a filosofia clássica alemã, denominada por Lênin como uma das “três partes constitutivas do marxismo”, com especial ênfase sobre Hegel, o seu filósofo mais importante. Lukács percebia em Hegel um equívoco fundamental. Em função de seu idealismo filosófico, Hegel considerava a existência de uma hierarquia das faculdades cognitivas, dividindo-as em superiores e inferiores. A Ciência encontrar-se-ia num patamar superior do conhecimento, enquanto a Arte, a Religião e a Filosofia alocar-se-iam num domínio inferior. Sobre este patamar inferior do conhecimento, a Arte pertenceria à esfera da Intuição, a Religião pertenceria à da Representação e a Filosofia à do Conceito.
Lukács propôs-se a resgatar de forma materialista o caráter cognitivo da arte. O mundo existe de forma objetiva, indepententemente da vontade do artista. Os fenômenos objetivos desenvolvem-se ininterruptamente e interagem entre si. O ser humano está integrado numa vida social que, apropriando-se astutamente das forças da natureza e operando-as em seu favor, num processo que Hegel denomina de “astúcia da razão” produz como resultado final uma Totalidade que não depende das vontades ou dos esforços individuais de cada indivíduo tomado singularmente, por mais poderoso ou influente que seja. Tal produto ou Totalidade disponibiliza-se ao conhecimento humano por meio de uma atividade intelectual produtiva e dinâmica. Nesta, o sujeito parte da realidade empírica mais imediata para, através do estabelecimento de mediações cada vez mais profundas e complexas, realcançar a visão da sociedade como um todo.
A arte auxilia o ser humano no resgate deste Todo. Todavia, tal função da arte não a credencia como uma espécie de forma privilegiada do conhecimento, como supunham – e supõem ainda – os românticos de todos os matizes. Estabelecer uma hierarquia das faculdades cognitivas somente é possível no idealismo filosófico, ou seja, partindo da idéia de que a realidade material é um mero produto do pensamento, ou da atividade do “Espírito Absoluto”, como pensava Hegel. Daí a proliferação dos inúmeros “sistemas” filosóficos em nossa época, fechados em si e auto-suficientes. Caso afastemos a hipótese de que o mundo exterior só existe em função de nossa subjetividade, abolimos por conseqüência toda e qualquer hierarquia no plano do conhecimento. A arte está apta a apreender a realidade exterior em maior ou menor grau, tanto quanto a ciência, dependendo unicamente da atitude do artista e das formas que este utiliza para tanto. Se a arte é representação, uma forma de reflexo desta objetividade, está apta, por conseguinte, a captar em cada momento social a realidade em seus momentos essenciais, sobredeterminantes.
Assim, Lukács chega a Goethe. Este, ao mesmo tempo escritor, político e cientista, vai rejeitar com o seu “materialismo espontâneo” a hierarquia das faculdades cognitivas de seu contemporâneo Hegel. Para Goethe, o homem inteiro se engaja na vida, na ciência e na arte do mesmo modo, com todas as suas capacidades espirituais, e é o sujeito necessário para a recepção da realidade objetiva.
Esta concepção materialista, segundo Lukács, está estreitamente ligada à concepção goetheana da prioridade do conteúdo na arte. Lukács sublinha as três grandes características da práxis literária de Goethe: (1) a reelaboração de grandes motivos ou lendas da Antigüidade legadas pela história; (2) a teoria e a práxis derivadas da sua poesia de ocasião; (3) o esforço constante para “dominar” poeticamente os problemas da revolução francesa.
Em seu livro Sobre a Particularidade como categoria da Estética[1] redigido em 1954/55, Lukács afirma que a literatura européia burguesa havia buscado até Lessing a representação de personagens humanos típicos, ao mesmo tempo indivíduos singulares e capazes de se mostrarem, enquanto burgueses, como representantes do gênero humano, ou seja, portadores de problemáticas humanas gerais.
A emergência histórica do capitalismo e da burguesia tornou problemática a representação de um homem “universal” num mundo onde a divisão social do trabalho acirrava cada vez mais a divisão das esferas pública e da privada. Daí que o teatro burguês recaiu constantemente na dicotomia básica: ou figurava homens meramente singulares, que não se mostravam em condições de representarem a espécie, ou retratava indivíduos demasiadamente vagos, representantes genéricos da humanidade que guardavam muito pouca coisa em comum com cada indivíduo em particular. O teatro do século 18 não conseguia sair deste impasse.
Para Lukács, Goethe também aqui nos deu uma contribuição decisiva. Em função da maneira materialista espontânea como encarava a relação entre a literatura e a realidade, Goethe tentou abordar de maneira “científica” a relação da arte com o mundo real. Tentou, inspirado pela sua investigação do “fenômeno originário” na botânica (o Urphänomen), traçar um paralelo entre as ciências naturais e a literatura, supondo que também no plano literário o elemento singular deveria se manifestar sob uma forma intermediária particular. O personagem singular não deveria ser necessariamente uma manifestação do irrepetível, do absolutamente individual, mas também não seria a dissolução genérica desta individualidade numa forma universal sem rosto.
Se a antropologização equivocada de Goethe da natureza fez a sua ciência recusar determinadas leis objetivas da natureza (teoria das cores de Newton etc.), subjetivando-as, ao aplicá-la à práxis estética Goethe formulou com muita propriedade a categoria da Particularidade. Por não reconhecer os limites objetivos entre o domínio da estética e o das ciências da natureza, Goethe elabora, num “feliz equívoco”, a sua noção do Particular como categoria estrutural da estética, um tertium entre o Singular e o Universal.
Goethe expressou em diversos momentos na maturidade as suas idéias sobre a escolha da forma artística com base na correta equação entre o Particular e o Universal. Assim, por exemplo, num determinado instante de sua polêmica com Schiller, Goethe sentencia, criticando certa idealização literária (“romântica”) encravada no projeto estético schilleriano:
 
Existe uma grande diferença no fato do poeta buscar o Particular para o Universal ou ver no Particular o Universal. No primeiro caso nasce a alegoria, onde o Particular só tem valor enquanto exemplo do Universal; no segundo, esta propriamente a natureza da poesia, isto é, no expressar um Particular sem pensar no Universal ou sem se referir a ele. Quem concebe este Particular de um modo vivo expressa ao mesmo tempo, ou logo em seguida, mesmo sem o perceber, também o Universal (apud Lukács, 1978: 150).
 
Certamente inspirado não somente em Espinoza, mas na filosofia corrente de sua época, Goethe concebe o Particular ao mesmo tempo idêntico e diferente do Universal, na medida em que o ser vivo assume uma das infinitas formas possíveis de manifestação.
 
Surgir e morrer, criar e anular, nascimento e morte, alegria e dor, tudo se mistura no mesmo sentido e na mesma medida; por isso, mesmo o acontecimento mais particular se apresenta sempre como uma imagem e um símbolo do mais universal (ibidem).
 
Assim, o Particular submete-se sempre ao Universal, e o Universal adapta-se eternamente ao Particular. Por outro lado, a forma literária, em decorrência de sua missão reveladora das leis recônditas do mundo social, encontra-se submetida à prioridade do conteúdo que revela. Para Goethe a operação “suprema” tanto da natureza quanto da arte é a de conferir forma, e, quanto a esta última, por sua vez, sua missão maior é a especificação, através da qual tudo se torna algo particular, significativo.
Em resumo, vemos aqui neste aspecto que a comunhão de Goethe com as idéias estéticas lukácsianas é total. A literatura é a revelação de realidades profundas, ocultas sob o manto da “empiria” da vida, que ganham forma graças à intervenção intelectual do escritor, que a tudo observa sem deixar se desviar pelas formas “autônomas”, aparentemente descoladas da “totalidade extensiva da vida”. O singular nunca é puramente singular, porque indivíduos são também espécies. Na natureza, como na arte, não pode haver um singular único. A natureza é una, ainda que o singular apresente-se freqüentemente em quantidade inumerável.
Para concluir brevemente: nos estudos lukácsianos sobre Goethe estão condensadas algumas das reflexões literárias mais relevantes do filósofo, particularmente quando escreve sobre o período mais decisivo da transição entre as velhas e as novas formas do “realismo burguês”. Nesta transição, Lukács aponta algumas das origens dos caminhos e descaminhos através dos quais chegamos aos dilemas literários do século 20. Não é por acaso – para usar a expressão favorita de Lukács – que, mesmo décadas após o contexto histórico que as gerou, tais reflexões continuam a exercer ainda hoje, pelo seu vigor, profundidade e clareza, enorme fascinação sobre a intelectualidade comprometida com a transformação social e a ultrapassagem do capitalismo.
 
Bibliografía
Arato, A. Y Breines, P. El joven Lukács y los orígenes del marxismo occidental. México: Fondo de Cultura Económica, 1986.
Keller, E. Der junge Lukács. Antibürger und wesentliches Leben. Literatur und Literaturkritik 1902-1915. Frankfurt am Main: Sendler, 1984.
Klein, A. Georg Lukács in Berlin: Literaturtheorie und Literaturpolitik der Jahre 1930/32. Berlin: Aufbau, 1990.
Lukács. “Es geht um den Realismus”. In: RADDATZ, F. (Hrsg.). Marxismus und Literatur: Eine Dokumentation in drei Bänden. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1969, v.2, pp. 60-86.
—, Gelebtes Denken: Eine Autobiographie im Dialog. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.
—, Geschichte und Klassenbewubtsein: Studien über marxistische Dialektik. Neuwied: Luchterhand, 1970.
—, Goethe und seine Zeit. Berlin: Aufbau, 1953.
—, Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
—, “O humanismo clássico alemão”. En: —, Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1968, pp. 175-190.
Mészáros, I. El pensamiento y la obra de G. Lukács. Barcelona: Editorial Fontamara, 1981.
Sochor, L. “Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20”. En: Hobsbawm, E. (org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, v.9, pp. 13-75.


[1] Título da edição brasileira: Introdução a uma estética marxista, 1978.

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