19/04/2024

São Paulo Sociedade Anônima e Bebel, garota-propaganda: alienação e reificação no cinema paulista dos anos 1960

Por

 

Caroline Gomes Leme[1]
 
Trataremos aqui de dois filmes brasileiros, mais especificamente de dois filmes paulistanos, realizados por cineastas estabelecidos em São Paulo e que colocam em foco essa cidade e suas contradições. Ambos foram realizados nos anos 1960 e seus enredos transcorrem também nesse período; são, portanto, filmes que tratam de questões muito próximas ao momento presente dos realizadores.
Nos anos 1960, após intenso crescimento industrial alavancado pelo governo Juscelino Kubitschek, a cidade de São Paulo se apresentava como o ícone brasileiro da modernidade urbana capitalista. Era a metrópole cosmopolita, locus do progresso, “locomotiva do Brasil”. Por trás da ideologia glamourosa, estava a realidade de alienação e reificação inerentes ao capitalismo moderno. São Paulo Sociedade Anônima, realizado por Luiz Sérgio Person em 1965 e Bebel, garota-propaganda, realizado por Maurice Capovilla em 1967 são filmes que colocam em tela, cada um a seu modo, essa problemática.
Em São Paulo Sociedade Anônima, Carlos, protagonista interpretado pelo ator Walmor Chagas, é funcionário especializado da multinacional Volkswagen, onde, trabalhando no setor de controle de qualidade, favorece o empresário ítalo-brasileiro Arturo (Otello Zelloni) convencendo o setor de compras da indústria a adquirir as auto-peças de baixa qualidade fornecidas por aquele. O esquema é descoberto, Carlos perde o emprego na Volks e passa a trabalhar como gerente na fábrica de Arturo, que está em franca expansão. Paralelamente, o filme trata do relacionamento do protagonista com três mulheres: Ana (Darlene Glória), moça de origem pobre que utiliza a beleza como valor de troca e torna-se garota-propaganda da fábrica de Arturo e amante deste; Hilda (Ana Esmeralda), mulher independente e intelectualizada, em busca de sentido para a própria existência e que, sentindo-se oprimida pela dinâmica reificada da cidade, termina por suicidar-se; e Luciana (Eva Wilma), moça pequeno-burguesa com quem Carlos se casa e cujas aspirações restringem-se à estabilidade do casamento convencional e à ascensão social que almeja mediante uma possível sociedade entre seu marido e o patrão.
Carlos é um personagem insatisfeito e angustiado, levado pela força das circunstâncias, seja no âmbito profissional, seja no âmbito familiar. Sua vida, como a dinâmica da cidade, segue num movimento maquínico que escapa ao seu controle. Ele percebe a mesquinhez de sua vida e não consegue se satisfazer com os horizontes do homem de classe média bem-sucedido, mas também não consegue vislumbrar saída; não tem um projeto alternativo. É emblemática a cena em que, transitando a pé e apressadamente pelo Viaduto do Chá, o personagem dialoga consigo mesmo, quase num delírio, sobre sua situação:
 
Carlos: Recomeçar, trabalhar, mil vezes tentar ser um homem. Trabalhar com Arturo, esquecer Ana, apagar Luciana. Não lembrar-se senão do trabalho, das cinquenta obrigações diárias. Lembrar-se somente das mil chateações diárias do trabalho. Lembrar-se de uma engrenagem, e mais outra, e mais outra, e mais outra! De uma engrenagem e depois de um eixo que devem ser entregues dentro do prazo estabelecido. Mil vezes recomeçar. Recomeçar de novo. Recomeçar sempre. Esquecer Ana, apagar Luciana. Lembrar-se das cinquenta obrigações diárias do trabalho. Recomeçar. Recomeçar. Aceitar. Aceitar. Aceitar! Recomeçar, recomeçar... Aceitar!Aceitar!!
 
A voz de Carlos ecoa pela cena num encadeamento maquínico, em ritmo duro e entrecortado, enquanto a montagem do filme alterna as imagens do personagem caminhando rapidamente entre outros passantes apressados com as imagens das engrenagens fabris em funcionamento, associando-se a situação de Carlos à lógica estrutural do capitalismo industrial.
Conforme analisa Ismail Xavier (2006), a relação homem-máquina é neste filme paradigma para a representação da vivência na metrópole paulistana,“cidade-máquina” onde os “homens-série”, que compõem uma multidão de anônimos, não passam de peças de uma grande engrenagem. A experiência do protagonista não é apresentada meramente como um drama individual. Há uma identidade profunda entre Carlos e os demais membros dessa sociedade anônima, que igualmente seguem suas rotinas de eterno recomeçar, como evidenciam as várias sequências que inserem o protagonista em meio a transeuntes anônimos e atomizados que circulam pelas ruas da cidade. Nas palavras de Xavier: “Eles partilham o espaço público que se vê aí representado como linha de montagem, movimento maquínico totalizante” e o filme “insiste na sensação de ultrapassamento, na dor do trabalho industrial e sua administração, solo de experiência a contaminar todos os as aspectos da vida”. (Xavier, 2006: 20). Em outras palavras, podemos considerar que em São Paulo Sociedade Anônima uma perspectiva que remete às considerações de Lukács (2003) – a condição reificada não se apresenta apenas como a condição do operário diante da máquina; mas sim como a condição geral no capitalismo moderno, em que há um “reforço da estrutura reificada da consciência como categoria fundamental para toda a sociedade” (Lukács, 2003: 221). – n
A esses “homens-série”, elementos subordinados ao movimento das mercadorias, a   reprodução do sistema parece inexorável. Sem vislumbrar horizonte possível de transformação, só lhes parece possível “aceitar”, como coloca Carlos ao final de seu solilóquio. E a cena imediatamente posterior o coloca chegando ao curso de inglês; na lousa a frase: “English, is the commercial language used in Brazil. We must therefore learn English”. Carlos aceita submeter-se aos desígnios que lhe parecem “naturais”; busca a estabilidade, financeira e pessoal: “quero organizar a minha vida, pôr as coisas em ordem”, diz ao pedir Luciana – moça conhecida justamente no curso de inglês – em casamento. Não a ama e em determinada cena declara que se casou por “cansaço e preguiça de escolher coisa melhor”. Cumpre o objetivo de colocar a vida “em ordem”: casado e com um filho, ascende socialmente, tornando-se o braço direito de Arturo na fábrica que se expande a cada dia. O filme transcorre, de maneira fragmentária, entre 1957 e 1961, e, neste ínterim, um índice importante da ascensão financeira de Carlos é a mudança na sua forma de locomoção: primeiro a pé, depois de lambreta e, por fim, de automóvel. Enquadrado na lógica de produção e consumo que faz girar a roda do capital, as perspectivas de ascensão estão abertas para ele. Ele pode se tornar um novo Arturo e é isso que Luciana espera dele. A construção fílmica, entretanto, apresenta uma perspectiva agudamente crítica e irônica a esse ideário pequeno-burguês. É particularmente significativa neste sentido a sequência em que a voz de Carlos paira sobre um alegre almoço de domingo que reúne a sua família à de Arturo. A voz off do protagonista dialoga imaginariamente com a voz de Luciana, enquanto transcorre o almoço:
 
Carlos: Parece que caminhamos para isso, Luciana. O nosso trabalho é recompensado. Agora você pode descansar nos fins de semana, como sugeria a publicidade dos jornais. Não temos ainda o apartamento à beira mar, mas podemos fazer nosso filho respirar o ar puro do campo. Arturo é o grande exemplo que você toma. Tudo o que você deseja na vida é que eu seja como ele, não é mesmo? Arturo é bom; Arturo é rico; massacra seus operários; rouba quanto pode; tem grandes e desonestas ambições. Mas Arturo é o exemplo. Veja como trata seus filhos, só quer o bem para eles, fazer sua família feliz, é tudo que Arturo deseja.
Luciana: E assim será para você Carlos. E eu serei feliz. E todos em torno a nós dois serão felizes. Será assim, amém.
 
Carlos, porém, não consegue satisfazer-se com as medíocres perspectivas que se apresentam para ele. Não se realiza no trabalho, nem na vida pessoal, sendo que o ápice de sua crise ocorre precisamente quando Luciana, com dinheiro da venda da loja de ferragens de seu pai, propõe sociedade a Arturo, assinalando que ele estaria ainda mais enredado nesse universo alienado e reificado do qual já não conseguia se desprender. Num ato desesperado, ele então resolve abandonar tudo e fugir de São Paulo. Para isso, mesmo tendo seu próprio carro, rouba um automóvel, ato de impotente subversão numa tentativa inócua de libertar-se daquela vida administrada. A cena, conforme assinala Jean-Claude Bernardet é de grande significação. O roubo do carro representa, segundo Bernardet:
 
[...] um ataque dos mais primários, quase visceral, contra aquilo que o esmaga. Rouba o carro num estacionamento onde se encontram milhares de carros, ‘contidos em filas, frente a frente’, no meio dos quais Carlos está isolado; esse plano adquire assim um valor simbólico e irônico: Carlos perdido no meio de e por justamente aquilo que ele constrói, esmagado pela quantidade e pela produção em série, rouba o que fabrica. O plano condensa toda a situação de Carlos e sua impotência. (Bernardet, 2007: 139-140).
 
O desfecho é desolador. Na fuga, Carlos resolve abandonar o carro na estrada e, ao pegar carona num caminhão, acaba voltando, sem saber, a São Paulo, encerrando-se o filme com uma sequência análoga àquela passagem do Viaduto do Chá com a voz off de Carlos falando no eterno “recomeçar” ao mesmo tempo em que as imagens focalizam os vários anônimos que transitam pelas ruas da metrópole paulistana.
Ainda recorrendo a Jean-Claude Bernardet (2007), devemos destacar um outro aspecto do filme de Person, que diz respeito especificamente ao contexto brasileiro e à abordagem da classe média. Conforme salienta o autor, um elemento fundamental de São Paulo Sociedade Anônima é a caracterização crítica da classe média brasileira como uma classe sem projeto próprio, que, mesmo se vendo esmagada, não tem perspectiva, não tem proposta, deixando-se levar pelas circunstâncias e atrelando-se à burguesia, esta por sua vez aliada ao capital estrangeiro. Essa questão é particularmente importante se considerarmos que o roteiro do filme foi escrito em 1963[2], portanto antes do golpe civil-militar de 1964, e vai na contra-corrente das apostas revolucionárias que caracterizavam os filmes da primeira fase do Cinema Novo, como Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, por exemplo, que apontava para um horizonte utópico. São Paulo Sociedade Anônima, ao contrário, é um filme bastante cético e que de alguma forma já captava os indícios do horizonte ideológico conservador que tomaria forma nas “Marchas da Família com Deus” e outros movimentos civis em apoio ao golpe de direita que derrubou o presidente João Goulart. Bernardet (2007) constroi uma frase forte nesse sentido: “Totalmente indefeso, Carlos tem os braços abertos para o fascismo”. (Bernardet, 2007: 140).
Outra questão que aparece em São Paulo Sociedade Anônima, ainda que de maneira mais lateral, concerne à indústria cultural que, nos 1960, se consolidava no Brasil[3]. Em meio à problemática central acerca do movimento maquínico e alienante da metrópole, de cujas engrenagens o protagonista busca sem sucesso se desprender, a tematização da indústria cultural se faz presente por meio da  personagem Ana que utiliza o próprio corpo como meio de ascensão social, seja em relações utilitárias, seja como garota-propaganda da indústria de autopeças de Arturo. Por intermédio deste, que se diz bem relacionado com altos escalões da TV Tupi e de quem ela se torna amante, Ana busca conseguir ainda um emprego para uma amiga na televisão. E o televisor figura como um elemento cênico importante para caracterizar a alienação da família pequeno-burguesa de Luciana, sendo os vínculos entre capital, indústria cultural e reificação assim evidenciados, como elementos estruturais do capitalismo moderno.
Em Bebel, garota propaganda, a temática da indústria cultural retorna ao cinema paulista, dessa vez com centralidade. Realizado em 1967 – portanto já após o golpe de 1964, mas antes do decreto do Ato Institucional n.5, de 1968, que recrudesceu ainda mais o caráter repressivo do regime – este filme, baseado no romance Bebel que a cidade comeu de Ignácio de Loyola Brandão (1968)[4], retrata a trajetória de rápida ascensão e declínio de uma moça de origem pobre alçada à celebridade midiática.
A trama desse filme de Maurice Capovilla deixa bastante evidente a lógica sistêmica da indústria cultural, articulada à publicidade, seu “elixir da vida”, para utilizarmos a expressão de Adorno e Horkheimer (1985:151)[5]. A moça revelada pela publicidade, torna-se uma “estrelinha” da televisão, onde faz também participações como cantora ao estilo “jovem-guarda”. O processo de reificação por que passa a protagonista é também bastante evidente. Como garota-propaganda, Bebel (Rossana Ghessa) vende não apenas sua força de trabalho, mas também seus próprios atributos físicos que conferem valor à mercadoria anunciada e se separam da constituição dela enquanto sujeito[6], tornando-a um mero objeto que se confunde com a mercadoria: exibida, desejada e consumida por todos. A promessa da publicidade é que por meio do consumo do produto anunciado, consuma-se Bebel – promessa que, segundo a lógica da indústria cultural, tão bem analisada por Adorno e Horkheimer (1985), é continuamente alimentada e continuamente frustrada para a maioria dos consumidores[7], que devem se contentar em observá-la nos outdoors, nas revistas e na televisão, mas que para os detentores do poder é uma promessa concretizável, como fica explícito quando na ocasião da apresentação de seu projeto aos empresários responsáveis pelo sabonete anunciado, o publicitário Marcos, após descrever as “medidas perfeitas” do corpo de Bebel, divulga a eles o endereço onde ela pode ser encontrada: R.Sampaio Vidal, 26. Algo análogo ocorre quando para manter seu emprego na televisão, Bebel sujeita-se a manter relações sexuais com o produtor e quando é incitada a seduzir eventuais patrocinadores para manter seu programa televisivo no ar.
A voraz lógica da indústria cultural, entretanto, é implacável. Buscando uma aparência de novidade, descarta Bebel para substituí-la por novos rostos e novos corpos, num processo que parece ilustrar bem a conhecida passagem da Dialética do esclarecimento em que Adorno e Horkheimer afirmam que:
 
[...] A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo mediante o qual pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada [...](Adorno; Horkheimer, 1985: 136).
 
Bebel, sem nenhum controle sobre seu destino, vê então seu efêmero sucesso se esvair. Com cada vez maiores dificuldades em conseguir trabalho, volta a morar no subúrbio da cidade e, sem vislumbrar alternativa, acaba por aceitar a proposta de ser “rifada” como prêmio a frequentadores de uma casa noturna. O filme termina justamente com o sorteio de Bebel, explicitando de maneira exacerbada a condição de mercadoria que caracterizava a trajetória da personagem desde o início.
Entendemos que esses dois filmes aqui focalizados apresentam questões e enfoques diferenciados daqueles que marcaram o cinema brasileiro dos anos 1960, particularmente em relação aos principais filmes do Cinema Novo, cujo núcleo esteve estabelecido no Rio de Janeiro. Os filmes da primeira fase do Cinema Novo estiveram marcados por aquilo que Marcelo Ridenti (2010) denominou de “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária”, no sentido de que continham implicitamente uma aposta utópica no resgate das raízes populares brasileiras como base para uma revolução nacional modernizante em direção à superação do subdesenvolvimento; enquanto que os filmes da segunda fase do Cinema Novo, pós-golpe de 1964, dedicaram-se a colocar em questão a frustração daquele projeto e analisar de maneira (auto)crítica o papel do intelectual de esquerda em relação ao “povo” e ao poder. [8] Já os filmes de que tratamos aqui, ao lado de outros filmes paulistas da mesma época, trazem às telas uma abordagem mais diretamente voltada às contradições da modernidade urbana capitalista, notadamente no que diz respeito ao trabalho e à indústria cultural.
Parece-nos que a metrópole paulistana, com sua dinâmica movida pelo capital, constituía-se naquele momento como lugar privilegiado para se apreender essas questões uma vez que além de ser a principal sede da indústria brasileira, foi também berço das primeiras grandes produtoras de filmes publicitários que surgiram em 1957, absorvendo mão de obra da falida Companhia Cinematográfica Vera Cruz, e que se proliferaram nas décadas seguintes, chegando a cerca de 70 a 80% das 150 empresas do ramo nos anos 1980, segundo dados de José Mário Ortiz Ramos (2004: 64).
Outro fator importante a se considerar na compreensão do contexto de produção desses filmes é a posição que esses cineastas paulistas ocupavam no meio cinematográfico. Sem desfrutar do mesmo prestígio e influência dos cineastas que compunham o núcleo do Cinema Novo, esses cineastas paulistas, via de regra, não contavam com apoio de órgãos estatais como a CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica) e a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), no financiamento de seus filmes, o que dificultava a constituição de uma filmografia coesa e regular e impelia-os a outras atividades que não somente a direção cinematográfica. Luiz Sérgio Person, diretor de São Paulo Sociedade Anônima e Maurice Capovilla, diretor de Bebel, garota-propaganda, assim como outros cineastas paulistas como Roberto Santos, Francisco Ramalho Jr. e João Batista de Andrade, foram mão-de-obra da indústria cultural, não só como cineastas – no caso do cinema há que se considerar a dicotomia entre “cinema comercial” e “cinema de autor” – mas porque trabalharam na publicidade e/ou na televisão. No caso de Person cabe mencionar ainda a passagem dele pela empresa de seu pai, a Person-Bouquet, fábrica de ferramentas diamantadas para a indústria de vidro e de construção. Desse modo, embora esses cineastas apresentem uma visão agudamente crítica das questões tratadas nos filmes, eles estão intimamente inseridos no processo que retratam, com as contradições que isso implica. Trata-se, assim, de uma crítica aguda, mas impotente, inclusive pelo fato do cinema também ser parte quase que indissociável da indústria cultural. Um aspecto sintomático dessa inter-relação é que as atrizes que interpretam as garotas-propaganda nesses filmes – Darlene Glória que faz Ana em São Paulo Sociedade Anônima e Rossana Ghessa que encarna Bebel – têm trajetórias semelhantes com as de suas personagens, com experiência em concursos de miss, como modelos publicitárias e como vedetes, antes de se tornarem atrizes de cinema e de televisão.Rossana Ghessa, mesmo depois de premiada no Festival de Brasília pela interpretação de Bebel, teve sua carreira de atriz atrelada predominantemente a “pornochanchadas”, comédias eróticas que tinham nas formas femininas o seu principal atrativo[9]. Ademais, as próprias filmagens de Bebel, garota-propaganda transcorreram em intensa relação com o universo da indústria cultural. Contatos com figuras do show business da época permitiram a utilização de locações para a gravação das cenas, inclusive com a inserção da personagem Bebel em meio às filmagens reais de uma campanha publicitária da Lynx Film. E figuras de destaque naquele meio fizeram participações no filme como, por exemplo, Apolo Silveira que, segundo Capovilla, era “o mais importante fotógrafo publicitário de São Paulo na época” e atua no filme interpretando seu próprio papel, assim como o maquiador Gilberto Marques.[10] No caso de São Paulo Sociedade Anônima, os contatos de Person e do produtor do filme Renato Magalhães Gouvêa com o meio empresarial franquearam o acesso da equipe de filmagem ao interior de uma fábrica da Volkswagen bem como permitiram que o personagem Carlos trajasse um jaleco de funcionário com o logotipo da empresa. O filme foi financiado por meio de cotas oferecidas a investidores, a maioria dos quais empresários e profissionais liberais paulistanos, e valeu-se também de outras estratégias para viabilizar-se, como o merchandising em troca de apoio logístico, como ocorre em relação ao restaurante em que os personagens Ana e Carlos almoçam e cujo prato com o logotipo do estabelecimento é focalizado em close pela câmera no início da cena e em relação à empresa Novelli, que confeccionou uma placa de divulgação para a fictícia fábrica de Arturo e teve em troca seu nome colocado em destaque no filme. Cabe mencionar também que o responsável pela música do filme, Cláudio Petraglia, era também diretor de televisão, sendo inclusive citado dentro da diegese do filme como o contato importante que o personagem Arturo teria dentro da TV Tupi e que possibilitaria conseguir um emprego para a amiga de Ana na emissora – emissora esta na qual o próprio Person trabalhara como ator e diretor de teleteatro antes de estabelecer-se como cineasta. Todos esses são indícios que permitem questionar qual é o alcance desse cinema como meio de crítica e desmistificação, uma vez que ele também está enredado na lógica reificante da indústria cultural, inserido e atado à estrutura de funcionamento do capitalismo moderno.
 
 
Referências
Adorno, Theodor; Horkheimer, Max, “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”. Trad. Guido Antonio de Almeida. In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.113-156.
Bernardet, Jean-Claude,Trajetória crítica. São Paulo: Polis, 1978.
e Galvão Maria Rita Eliezer, Cinema, repercussões em caixa de eco ideológica:as ideias de ‘nacional’ e ‘popular’ no pensamento cinematográfico brasileiro. São Paulo; Rio de Janeiro: Brasiliense; Embrafilme, 1983.
Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das letras,2007.
Brandão, Ignácio de Loyola, Bebel que a cidade comeu. São Paulo: Brasiliense, 1968.
Lukács, Georg, História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Trad. Rodinei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Mattos, Carlos Alberto, Maurice Capovilla: a imagem crítica. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. (Coleção Aplauso - Cinema Brasil).
Moraes, Ninho, Radiografia de um filme: São Paulo sociedade anônima. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. (Coleção Aplauso – Série Perfil).
Ortiz, Renato, A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Ramos, José Mário Ortiz, Cinema, televisão e publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.
Ridenti, Marcelo, Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.
–, Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
Xavier, Ismail, Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo,tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
, Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
, São Paulo no Cinema: expansão da cidade-máquina, corrosão da cidade-arquipélago” In: Revista Sinopse, v. 8, n. 11, (set. 2006), p. 18-25.
 
Fichas técnicas dos filmes analisados:
Bebel, garota-propaganda. Direção: Maurice Capovilla. Roteiro: Maurice Capovilla; Roberto Santos; Afonso Caoracy; Mario Chamie, baseado no romance “Bebel que a cidade comeu” de Ignácio de Loyola Brandão. Produção: Ivan Souza. Fotografia: Waldemar Lima. Música: Carlos Imperial. Som direto: Sidney Paiva Lopes. Montagem: Sylvio Renoldi. Cenografia: Juarez Magno. Elenco: Rossana Ghessa; John Herbert; Paulo José; Geraldo del Rey; Washington Fernandes; Maurício do Valle; Fernando Peixoto; Joana fomm; Marta Greis; Osmano Cardoso; Norah Fontes. São Paulo: Difilm Distribuidora e Produtora de Filmes Brasileiros; Saga Filmes, 1967. (103 min), son. p&b.

 

São Paulo Sociedade Anônima. Direção: Luiz Sérgio Person. Roteiro: Luiz Sérgio Person.  Produção: Renato Magalhães Gouvêa. Fotografia: Ricardo Aronovich. Música: Cláudio Petraglia. Som Juarez Dagoberto da Costa. Montagem: Glauco Mirko Laurelli. Direção de arte: Jean Laffront. Elenco: Walmor Chagas; Eva Wilma; Darlene Glória; Ana Esmeralda; Otello Zelloni; Osmano Cardoso; Nadir Fernandes; Armando Sganzerla; Silvio Rocha; Altamiro Martins. São Paulo: Socine Produções Cinematográficas, 1965. (111 min.), son. p&b. 
 


[1] Doutoranda em Sociologia,Instituto de Filosofia e Ciências Humanas  - IFCH/Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP; Rua Cora Coralina, s/nº Cidade Universitária Zeferino Vaz - Barão Geraldo - Campinas - São Paulo - Brasil - CEP 13083-896; Fone +55 (19) 3521-1614; e-mail: [email protected]
[2] Cf. Ninho Moraes (2010: 21).
[3] Sobre a formação da indústria cultural no Brasil ver Renato Ortiz (1988).
[4] O diretor Maurice Capovilla, amigo do escritor, teve acesso ao romance antes da publicação, quando o texto ainda estava em seu formato original datilografado e sem título (Cf. Capovilla apud Mattos, 2006, p.101).
[5] De acordo com Adorno e Horkheimer: “Tanto técnica quanto economicamente, a publicidade e a indústria cultural se confundem. Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de manipulação das pessoas. Lá como cá, reinam as normas do surpreendente e no entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do sofisticado e no entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se imagina como distraído ou relutante”. (Adorno e Horkheimer, 1985: 153)
[6] Podemos nos remeter aqui a Lukács, quando ele afirma que no capitalismo moderno não só são transformados em mercadoria todos os objetos destinados à satisfação das necessidades humanas, como também essa forma mercantil infunde-se sobre a consciência humana, de modo que “as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode ‘possuir’ ou ‘vender’, assim como os diversos objetos do mundo exterior. E não há nenhuma forma natural de relação humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas 'propriedades' físicas e psicológicas que não se submetam, numa proporção crescente, a essa forma de objetivação”. (Lukács, 2003: 222-223).
[7] Segundo Adorno e Horkheimer: “A indústria cultural não cessa de lograr seus consumidores quanto àquilo que está continuamente a lhes prometer. A promissória sobre o prazer, emitida pelo enredo e pela encenação, é prorrogada indefinidamente: maldosamente, a promessa a que afinal se reduz o espetáculo significa que jamais chegaremos à coisa mesma, que o convidado deve se contentar com a leitura do cardápio. Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheios de brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar”. (Adorno; Horkheimer, 1985: 130-131).
[8] Referimo-nos aqui a obras como obras como O desafio (Paulo César Saraceni, 1965); Terra em transe (Glauber Rocha, 1967); Fome de amor (Nelson Pereira dos Santos, 1969); O bravo guerreiro (Gustavo Dahl, 1969); Os herdeiros (Cacá Diegues, 1969) e Os inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972). Para uma visão geral sobre o Cinema Novo ver os trabalhos de Jean-Claude Bernardet (1978); Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão (1983) e Ismail Xavier (1993, 2001).
[9] Títulos como As Secretárias que fazem de tudo (Alberto Pieralisi, 1975); Tem alguém na minha cama (Pedro Camargo, Francisco Pinto Jr e Luiz Antônio Piá, 1976);  A pantera nua (Luiz de Miranda Corrêa, 1979); A virgem e o bem-dotado (Edward Freund, 1980); Mulheres liberadas (Adnor Pitanga, 1982).
[10] Cf.Capovilla apud Mattos, 2006: 107.

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